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Os três pulmões do lateral

Eduardo Parin, Renan Lira 3 de julho de 2020

A menor distância entre dois pontos sempre será uma linha reta, mas em futebol a física não é o bastante para explicá-lo. As linhas do campo são sinuosas e nem sempre certeiras, os matemáticos da FIFA determinam suas dimensões em respectivamente 64 metros de largura e 100 metros de comprimento, distâncias significativas para um esporte que é praticado em 90 minutos e que exige um ritmo extremamente intenso. Entretanto, essas medidas ficam pequenas comparadas às verdadeiras distâncias que essa posição responsável por marcar e atacar impecavelmente percorreu. O futebol vai além dos holofotes e para chegar até nele o lateral precisa dos três pulmões.

A canseira do lateral é a de ir e voltar e ir e voltar e ir e voltar. Assim como Fidípides, o homem que ocupa a extremidade da linha defensiva percorre longas distâncias e inevitavelmente mergulha nas jogadas de ataque, apoiando ou servindo os protagonistas – raríssimo o que supera a coadjuvação. Para cair no gosto da galera, deve ter a precisão de um torno mecânico, recorrendo à técnica em detrimento do improviso. Tal qual um músico persegue o compasso para evitar desconforto e mal-estar aos ouvidos, o ala está atento aos instantes perdidos no campo adversário que devem ser friamente calculados para impedir apelidos carinhosos e poéticos vindos da arquibancada, “Avenida”

Aliás, é de lá, das estruturas de concreto erguidas para o povo, que o lateral descobre a impiedade, a falta de compaixão do ser humano: a proximidade quase íntima dos torcedores o torna alvo predileto de xingamentos e sofisticados cantos depreciativos.

O lateral carrega em uma de suas orelhas a angústia confessa dos entusiastas e no seu peito, por vezes, a tristeza de estar deslocado de sua vontade futebolística. Há diversos relatos de atletas que um dia sonharam em vestir a dez e, por sugestão de algum treinador, foram reposicionados à linha lateral direita ou esquerda do primeiro terço. Características de marcação, obediência tática e velocidade pesam nessa transição, mas inevitavelmente fica a saudade e o instinto natural de subir, participar efetivamente da armação de jogadas e não querer voltar.

Está longe deste texto afirmar que os que ocupam os flancos estão lá por incapacidade técnica, afinal seria uma tremenda injustiça com Djalma Santos, Nilton Santos, Carlos Alberto Torres, Leandro. A canseira dos laterais, por outro lado, é, naturalmente, objeto de apreciação. Incontáveis alas extraordinários desfilaram suas habilidades mundo afora e são conhecidos por entortar adversários, deixando-os hipnotizados pela sensualidade do drible e rendidos diante de tanta inteligência e agilidade. Efeito similar às voltas e voltas e voltas dos cachos femininos em meros mortais.

Não é raro, no entanto, debates esportivos na rádio e televisão pautados por questionamentos como “E se Marcelo vestisse a 10 do Real Madrid?” – afinal bola o carioca tem. Bom, além de preencher as vazias grades dos canais esportivos de entretenimento, a incerteza, fundamentada no senso de que a posição de lado é insuficiente para o manejo da bola em alto nível, levanta mais um dos “E se?” sem respostas do futebol e teima empurrar os fora-de-série das extremidades da linha defensiva para posições de protagonismo, causando um esvaziamento do ofício.

Alguns já pelearam pelo direito de ocupar a meiuca, Léo Moura quando estava no conturbado fim de sua passagem pelo Flamengo, além de questões contratuais, exigiu tempo de jogo no terço central, devidamente rechaçado por Vanderlei Luxemburgo. O lateral que em 519 jogos vestiu vermelho e preto deu os primeiros passos na meia-cancha do Botafogo-RJ e nunca escondeu seu instinto ofensivo, vertical. Outros, por outro lado, na última curva da carreira, foram deslocados ao meio e tiveram sequência no alto nível do futebol. Daniel Alves, 37 anos, que foi um dos empecilhos para a sequência de Leonardo na Seleção, após uma história nas ligas de maior intensidade da Europa, embarcou em São Paulo e atualmente arma os ataques do tricolor ao lado de Tchê-Tchê e Igor Gomes no cadenciado futebol brasileiro: teria os 40 títulos do baiano o libertado do fatigante vai-e-vem da lateral?

No dinâmico campeonato inglês, fica evidente as guerras que eles precisam travar para ocupar o espaço dessa imensa faixa do campo e com um volume de jogo muito maior que os demais. Tal termo usado pelos acadêmicos da bola pode ser sintetizado por “a quantidade de suor entregue para buscar a glória”. A tecnocracia de Guardiola transformou Daniel Alves num autêntico atacante dos espaços vazios, a pulga de Rosário puxava seus “admiradores” para o lugar fora da sua oposição e Dani rasgava a linha defensiva com velocidade e muita técnica.

Hai daqueles garotos que almejam desde sempre a responsabilidade nas paralelas da cancha e, tal qual um evento astronômico raro e cíclico, são dotados pela primazia da técnica ou a gana inabalável. A Inglaterra, por exemplo, finalmente revelou um dos seus maiores talentos, não estamos falando de atacantes superestimados, e sim do normal lad de Liverpool que somente queria fazer lançamentos como Steven Gerrard. Alexander-Arnold é um lateral.

O Liverpool comandado pelo carismático alemão, Jürgen Klopp, tem os dois tipos de lateralidades no seu onze. Há Alexander-Arnold e sua lateralidade meio-campista e o antigo operário das fábricas britânicas, o escocês Andy Robertson, carregando a lateralidade dos 3 pulmões. O excelente desempenho dos laterais permite ao Liverpool atacar com sua intensidade maluca e um tanto anormal durante o jogo todo, mas esse desempenho despenca quando um dos dois não estão presentes no gramado, revelando o peso de jogar pelos lados – que no Brasil é muito maior.

Xavier e a ingratidão da lateral

O ano de 2005 ficou marcado na história do Tricolor do Arruda, a conquista do campeonato pernambucano depois de dez anos e o inesquecível acesso para a primeira divisão do campeonato nacional foram os ápices para cada coração do Mais Querido. 

Cléber; Osmar, Carlinhos, Valença e Xavier; Júnior Maranhão, Andrade, Lecheva e Rosembrick; Carlinhos Bala e Reinaldo, este era o escrete tricolor comandado pelo rei do acesso, Givanildo Oliveira. Um time marcado pela dupla boa de bola e carismática Carlinhos Bala e Rosembrick, contudo a epopeia do Santa precisava de fôlego e costas que não cedem à pressão que o Mundão do Arruda cobrava, e dessa vez a lateral é protagonista. 

Um outro tricolor, este das terras gélidas ao Sul do país, o Grêmio era o gigante na segundona. O time de Lucas Leiva provava que seu valor e lugar pertencia à primeira prateleira do nosso futebol, tanto que os gaúchos somavam doze jogos de invencibilidade naquela Série B, contudo o Santa Cruz tem nome Santo.

50 mil tricolores rezavam e apoiavam a Cobra-coral naquele 4 de outubro de 2005, um jogo equilibrado e truncado. Os sinais de zero a zero eram nítidos, ainda mais com a ótima atuação do arqueiro do Santa, Cléber, porém o Santa Cruz tem nome Santo. E tal qual um suspiro miraculoso digno dos mágicos da meiuca, o mago Rosembrick encontrou na faixa esquerda do campo o incansável Xavier. O mirrado e excelente lateral tricolor recebeu a bola e não titubeou, chutou da faixa do campo que ele mais entendia, um lugar longe dos holofotes da barra e da aclamação do gol, nada disso importava mais. Foi golaço e o Arruda balançou.

Estádio do Arruda em Recife. Foto: Wikipedia.

Quinze anos passaram e o time histórico do Arruda permanece na memória e coração dos tricolores. O merecido acesso era um sinal de mudança para os novos tempos, um Santinha buscando a estabilidade na elite do futebol brasileiro e pronto a traçar voos do tamanho do Arruda. Conhecemos o desenrolar desse pedaço da história, o Santa Cruz não conseguiu a estabilidade e nem retornar ao seu posto de clube importante para esse país. Além do desfecho melancólico para o Tricolor de Recife, temos um final não digno para os bravos e incansáveis heróis.

Aposentado do seu ofício e desempregado há mais de dois anos, o craque da lateral esquerda coral, amargura a sina do esquecimento dessa vida corrida e injusta. As vidas precoces do jogador de futebol são observadas em Xavier. O ex-lateral esquerdo trabalhava com transporte escolar para pagar o aluguel e as refeições do dia-dia, funções bem diferentes da sua antiga profissão, porém nunca deixou de carregar sonhos pelas avenidas recifenses.

Uma vaquinha virtual foi feita pelos torcedores do Santa Cruz para retribuir todo aquele esforço e suor dado na grama do José do Rego Maciel, os valores passaram dos nove mil reais. O engajamento atingiu até aqueles que vestem as cores que nunca se tocam no uniforme tricolor.

O capitão da Ilha do Retiro e lateral esquerdo, Sander, decidiu pagar os aluguéis atrasados de seu irmão de profissão. Assim como Xavier, Sander se destaca por sua imensa responsabilidade e gana por seu clube, o camisa doze leonino permanece em pé mesmo quando o Sport passa pela maior crise da sua história. O espírito do lateral é tão inerte em Sander que sua voluntariedade supera a rivalidade centenária entre o Leão da Ilha e a Cobra do Arruda. Tal ação benigna e valiosa é a recompensa do lateral por carregar sonhos nos 90 minutos, por nunca parar de correr, lutar e suar pelos onze em campo. O lateral recebeu o dom da empatia.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Eduardo Parin

Graduando em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Co-criador do projeto multimídia Descamisados.

Renan Lira

Estudante de jornalismo pela UFPE, co-criador do projeto multimídia Descamisados. Sabe que a Ilha do Retiro fica ao lado de Anfield.

Como citar

PARIN, Eduardo; LIRA, Renan. Os três pulmões do lateral. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 7, 2020.
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