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Os últimos campeões dos principais campeonatos europeus: mais uma oportunidade para repensar a cultura futebolística brasileira

Jojomar Lucena da Silva 1 de julho de 2021

Em quatro dos principais campeonatos nacionais da Europa, Espanha, França, Inglaterra e Itália, os times que se sagraram campeões não foram os times das estrelas, dos craques que desequilibram, dos gênios, mas de equipes com bons jogadores, cuja organização e trabalho coletivo, tático e técnico as levou a se impor diante de elencos melhor qualificados.

Atlético de Madrid (Espanha), Lille (França), Internazionale (Itália) e Manchester City desbancaram poderosos rivais, como Real Madrid e Barcelona, PSG, Juventus, Manchester United, Liverpool e Chelsea. E não é que os vencidos, com algumas exceções, tenham sucumbido ao mau futebol. Por exemplo, Real Madrid e Barcelona possuem elencos melhores qualificados que o Atlético de Madrid, com craques que fizeram boas ou ótima temporada. Benzema, desde a saída de CR7 vem sendo cada ano mais decisivo; Courtois vem mostrando a segurança dos tempos de Chelsea; o já histórico meio de campo com Modric, Kross e Casemiro, especialmente este último, teve algumas atuações dignas das temporadas das conquistas das Champions recentes pelo Real Madrid.

Messi continua decisivo e genial e, ultimamente, tem recebido uma contribuição relevante de Griezmann, que finalmente parece ter encontrado seu lugar no time. Dessa ótica, a conquista do Atlético de Madrid não ocorreu devido a um vácuo de poder, como ocorreu na Itália em que a Juventus teve um desempenho pífio, mas ao futebol competitivo e competente segundo o estilo impresso pelo técnico Diego Simeone. A conquista do Atlético não foi uma surpresa, como foi o caso do Lille.

Atlético de Madrid
Imagem: reprodução twitter

Já na Itália, o título da Internazionale só parece uma surpresa se olhamos exclusivamente para a Juventus, seu plantel e história dos últimos anos. Mas se olhamos para a Internazionale de Lukaku, Lautaru, Eriksen e sobretudo do técnico Antônio Conte, que criou mecanismos bem desenhados e eficazes de jogo para defesa, ataque e saída de bola, essa impressão desaparece. Contudo, a decepção com a Juventus permanece.

Se a conquista de Atlético e Internazionale não foram em sentido próprio uma surpresa, embora não fossem os favoritos, o Manchester City, desde a chegada de Pepe Guardiola é listado sempre entre os favoritos à Premier League. Essa percepção, entretanto, esconde um fato intrigante a respeito do rendimento da equipe. Tottenham, Liverpool e Manchester United possuem elencos tão bons quanto o City, com a vantagem de disporem também de mais jogadores com status de craque. E não se pode afirmar que Harry Kane e Son, Salah, Firmino e Mané, Cavani, Rashford, Bruno Fernandes e Pogba tiveram uma temporada, fraca tecnicamente falando. Por sua vez, o City, além de De Bruyne, que esteve ausente em várias partidas, não tem propriamente um craque. O que desequilibra é o conjunto e no conjunto, todos os jogadores se destacam e com um pouco mais de brilho Rúben Dias (zagueiro), Gündoan e Phil Foden.

De maneira poucas vezes vista antes no futebol, o City de Guardiola extrapola o conceito de propriedade emergente, o qual, segundo o economista Jeffrey Goldstein, corresponde ao surgimento de estruturas, padrões e propriedades novas e coerentes durante o processo de auto-organização em sistemas complexos. Entendendo um time como um sistema complexo, o trabalho de um bom técnico seria intervir nesse processo de modo a acelerar a auto-organização do sistema para que suas qualidades coletivas brotem e se fortaleçam.

Pep Guardiola. Foto Divulgação Manchester City
Pep Guardiola. Foto Divulgação Manchester City

Um bom técnico veria as potencialidades de um grupo e trabalharia em prol da maximização dessas potencialidades. Isso já é um grande resultado, especialmente tendo em vista um estereótipo de treinador, muito recorrente no Brasil, que se limitava a incentivar jogadores com frases do tipo: “faz o que você sabe”, esquecendo-se que, enquanto o conhecimento do jogador permanece individual, não se torna um saber compartilhado, integrado, coletivo. Assim, o grupo não desenvolve as qualidades emergentes.

Essas qualidades emergem como uma auto-organização do sistema. Por isso, enquanto atividade consciente, remetem às relações e ao conhecimento compartilhado pelos indivíduos envolvidos. E isso requer tempo e incentivo para que venham à luz e se tornem qualidades do sistema.

Contudo, no esporte profissional, esses prazos urgem serem encurtados. A auto-organização, por isso, dá lugar ao planejamento à luz do estudo das características das peças à disposição, dos padrões de jogo pretendidos, suas variações e a forja de qualidades individuais e coletivas via treinamento.

Quanto mais qualidades são forjadas, mais facilidade o grupo adquire de desenvolver novas qualidades: o padrão de jogo molda-se assim a particularidades de adversários e momentos das partidas. Em outras palavras, aumenta a inteligência de jogo da equipe, desenvolve sua capacidade de encontrar soluções a problemas não só porque a identificação desses problemas foram aprimoradas em treinamento, mas sobretudo porque quanto mais ferramentas de resolução de problemas se possui, mais fácil é desenvolver ou adaptar uma ferramenta para resolver um problema ainda não catalogado. Nesse sentido, a auto-organização não é espontânea, mas forjada segundo planejamento, estudo e treinamento.

Curiosamente, se a organização espontânea no esporte coletivo necessita tempo para ocorrer e manifestar-se, a forjada, em geral, ainda mais. A intervenção externa que busca intencionalmente a forja de qualidades emergentes requer tempo para estudar, cultivar, incentivar, corrigir, alterar e verificar o surgimento e fortalecimento dessas qualidades.

Divulgação/Inter de Milão
Imagem: Divulgação/Inter de Milão

O imediatismo – uma maldição do futebol brasileiro – frustra esse processo pelo erro de confundir qualificação da equipe com obtenção de resultados. Contudo, até que ponto o imediatismo que impregna a cultura futebolística brasileira não constitua uma manifestação da incapacidade geral de percepção dessa dimensão do esporte coletivo ou da convicção de dirigentes que os técnicos, em geral, não são habilitados a trabalhar assim, é difícil responder.

Desse modo, o futebol brasileiro parece ter ficado para trás. O futebol moderno exige maior inteligência dos indivíduos envolvidos e seus conjuntos. E o Brasil, como nunca valorizou a inteligência em seu aspecto de razão cultivada que atua segundo um método– de inteligência como esperteza, pronta à improvisação, sim –, parece ter ficado à margem do futebol moderno como um player secundário, enquanto países antes considerados periféricos, como Portugal e França, ascendem, considerados então grandes celeiros de jogadores e técnicos.

É preciso atentar para a necessidade da elevação do nível de inteligência do futebol brasileiro. Em particular, na seleção brasileira, atentar que, mantido o cenário internacional atual, nossas chances de ganharmos novamente uma copa do mundo aumentarão sensivelmente se dermos prioridade ao coletivo, deixando para trás os sonhos e expectativas dos jogadores heróis, dos craques que sozinhos resolviam e decidiam. O coletivo, hoje, impõem-se de maneira consistente ao talento individual, sem organização. Os resultados mencionados no início desse texto mostram isso.

O pior, ainda sobre o caso brasileiro, é que não temos mais os melhores jogadores, os mais talentosos, os atletas decisivos, do futebol internacional. Por isso, é preciso organização fora e dentro de campo: abandonar a crença que a habilidade e o improviso do jogador brasileiro resolve problemas e apostar mais que o coletivo inteligente gera soluções.

No futebol, quanto dito vem frequentemente recitado na forma do jargão que um time é mais que a reunião de onze jogadores. Isso pode parecer óbvio, mas se não superamos a impressão de evidência, as lições preciosas que ela retém não serão expostas.

O treinamento tático e o desenvolvimento técnico individual em função das necessidades do time, acaba gerando um padrão de jogo, que corresponde à identidade da equipe. Paralelamente, a variação desse padrão em vista da execução de estratégias alternativas aplicáveis a momentos ou adversários específicos enriquem ainda mais essa identidade.

Contudo, isso é inviável de maneira consistente sem muito treinamento. Uma identidade forte e consciente de si mesma torna mais fácil, e não o contrário, a flexibilização momentânea dessa identidade. E isso implica mais possibilidades de ação. A ausência ou o desconhecimento da própria identidade, deixa a sorte do jogo ao improviso das iniciativas de alguns indivíduos do grupo e, portanto, mais restrito enquanto possibilidades de ação coletiva.

Lille
Imagem: reprodução twitter

Por outro lado, a princípio, poderia parecer que o treinamento tiraria espaço à criatividade, à improvisação; mataria o talento nato. Não é preciso lembrar que esta é uma das crenças populares da cultura futebolística brasileira. E não só dos apreciadores não expertos. Sob a crítica de que o futebol contemporâneo é correria sem reflexão, fácil de ouvir de jogadores e técnicos mais antigos, esconde-se a incapacidade de se perceber que há uma correria que é, pelo contrário, fruto de extrema reflexão e repetição para condicionar respostas adequadas.

No fundo, trata-se da máxima cartesiana de que o método é a ferramenta que dirige a razão na busca por conhecimento certo e verdadeiro. No esporte, essa máxima se traduziria como o treinamento que imprime um padrão de jogo, que condiciona o comportamento individual em vista dos objetivos particulares de conversão das jogadas em gols, recuperação da posse de bola e defesa, o que otimiza os resultados positivos e minimiza os negativos.

É sabido que Descartes se inspirou no funcionamento de máquinas para inferir que o método asseguraria a execução eficiente do propósito. Isso já não é transladável para o esporte, pois este é sempre executado por humanos. O método aqui mostra-se como uma ferramenta que minimiza aspecto negativos e potencializa os positivos; não que garanta a vitória e o sucesso.

Toda ação humana é concebida pela razão em vista da consecução de um fim. O esporte é ação, é materialização da razão com vistas à realização de jogadas (de defesa e ataque), à superação de adversários e conquista de títulos. Futebol é inteligência e cada vez mais! Requer capacitação física, motora e intelectual: capacidade de aprendizagem sobre tática, estratégia e identificação de problemas novos. Talvez este seja um dos dramas do futebol brasileiro atual, reflexo de uma carência mais profunda. A inteligência precisa ser potencializada: tanto individual quanto coletiva pois num conjunto bem treinado, o saber individual integra-se com o coletivo, então o indivíduo passa a saber mais, a ser capaz de mais.

Tudo isso, porém, não significa que não ganharemos nesta década uma copa do mundo. O futebol continua sendo uma caixinha de surpresas. Mas não é este o ponto: o ponto é incrementar a possibilidade de vitórias. Não trilhar esse caminho, não nos renega a viver, enquanto seleção, do passado como ocorre, há décadas, com o Uruguai. Continuamos tendo bons jogadores, craques, mas hoje, parece ser necessário mais do que isso para se impor como força futebolística eficiente com condições reais de competir pelos maiores títulos do futebol internacional.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SILVA, Jojomar Lucena da. Os últimos campeões dos principais campeonatos europeus: mais uma oportunidade para repensar a cultura futebolística brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 2, 2021.
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