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Os últimos reis da Escócia

Leandro Vignoli 8 de dezembro de 2019

Como é a vida no Queens Park, clube pioneiro que inventou o futebol moderno mas prefere conservar o amadorismo, disputando competições profissionais somente com atletas que não recebem nada para jogar

O Queen’s Park celebrou seus 150 anos no dia 9 de julho passado. Embora seja o clube mais velho da Escócia, trata-se do “outro time” de Glasgow, aquele que não é o Celtic ou o Rangers. Aquele cuja torcida inteira cabe dentro de um vagão de trem. Que inventou o conceito de toque de bola. Que joga em um dos templos do futebol europeu para públicos de centenas de pessoas. Ou aquele que até agora estava sendo ignorado e confundido com o Queen’s Park Rangers.

Só que a história do Queen’s Park é tudo menos algo para ser ignorado. De sua enorme lista de legados ao futebol, foi do clube que partiu a ideia dos amistosos entre seleções, quando Escócia e Inglaterra se enfrentaram em 1872, em Glasgow, com os jogadores do Queen’s Park representando o país. O uniforme azul-marinho se tornou também a camisa da seleção escocesa, embora o clube viesse a mudar para o hoje tradicional branco e preto em linhas horizontais, pelo qual tem o apelido de “Spiders”- em 2017 o clube retornou ao uniforme original em comemoração ao 150º aniversário. Na época em que os jogadores de futebol ainda corriam com a bola nos pés feito doidos até onde conseguissem (como no rúgbi), foi o Queen’s Park que introduziu a troca de passes, o que já lhe rendeu descrições como o “Barcelona do Século XIX”, “o inventor do tiki-taka” e outras definições igualmente medonhas. Também foi o clube que sugeriu o intervalo entre os dois tempos e as cobranças de faltas, regras que busca patentear junto à FIFA, o que ainda não foi reconhecido oficialmente.

O Queen’s Park era sem dúvida o time mais importante e popular do país antes da virada do século XIX para o XX. Foram dez títulos de Copa da Escócia, além da relevância continente afora. Existe um precedente ainda mais histórico. Foi no Queen’s Park que jogou o primeiro negro no futebol da Escócia, Andrew Watson, que também se tornou o primeiro negro a ganhar um campeonato e o primeiro na seleção. Tudo isso aconteceu em um intervalo de apenas 20 anos, entre as décadas de 1870 e 1890.

Porém, o novo século chegou e o clube se negou a participar da Liga Escocesa. Motivo: a proposta ia contra seus princípios de amadorismo. Se hoje virou uma febre ser “contra o futebol moderno”, digamos que o Queen’s Park era literalmente contra, só que 100 anos atrás. E continua sendo até hoje: os jogadores não recebem salário para conservar esse perfil amador. Que fique claro: o clube joga torneios profissionais — atualmente está na terceirona do Escocesão — só que com atletas amadores. “Jogar pela vontade de jogar”. Esse é o lema do Queen’s Park, replicado no seu escudo, do latim “Ludere Causa Ludendi”.

 

Catedral do futebol

Em 2017, a hegemonia em Glasgow é logicamente outra. Enquanto esperava no lobby do estádio Hampden Park para falar com um dos diretores do clube, na TV assisti ao Rangers meter 6 a 0 no glorioso Hamilton Academical pelas quartas de final da Copa da Escócia, no Ibrox Stadium. No dia seguinte eu veria o Celtic in loco bater em casa o majestoso St. Mirren por 4 a 1. Quem me recebeu no estádio do Queen’s Park foi Garry Templeman, um gerente corporativo de banco que desde 1999 faz parte do conselho administrativo do clube. A ideia era apenas entender como funciona a gestão de um clube amador, mas quando percebi já estava caminhando por vestiários, sala de imprensa, almoxarifado, estacionamento subterrâneo (que segundo Garry serviu de modelo para todos os estádios da Europa) e gramado.

O Hampden Park é também o estádio nacional da Escócia e chegou a ser o maior do mundo até a inauguração do Maracanã, em 1950. Um dos mais modernos da Europa, já sediou três finais de Liga dos Campeões, a mais famosa em 2002, quando o Real Madrid foi o campeão com aquele voleio sensacional de Zidane.

Parece estranho, mas o Queen’s Park é de fato o dono do Hampden, ainda que pareça ilógico uma partida para 701 pessoas em um estádio com capacidade para 51 mil. Ele virou a casa da seleção como parte de um acordo em que a Federação Escocesa se tornou a locatária após reformar o estádio em 1997, com Queen’s Park cedendo a sua administração até 2020, com a opção de renovar por outros 20 anos. Em resumo, a Federação faz tudo o que quiser no estádio, mas o dono segue sendo o Queen’s Park, relação um tanto parecida entre construtoras e alguns times do Brasil. “O clube foi obrigado pelo governo a fazer a reforma para se adequar aos padrões modernos de segurança, então surgiram as dívidas. Era algo que não tínhamos a menor culpa, e esse foi o jeito encontrado. O clube sobreviveu, e agora está vendo cada centavo do negócio”, explica Garry.

No estádio também fica o Museu do Futebol Escocês, quase uma extensão da história do próprio Queen’s Park, com o primeiro troféu vencido no país, em 1873, uma Copa da Escócia devidamente exposta na sala. Do complexo do Hampden, no sul de Glasgow, ainda faz parte o Lesser Hampden, um estádio com capacidade para cerca de 800 pessoas e que é usado como centro de treinamento, além dos jogos das categorias de base do Queen’s Park — rodeado de casinhas do século XIX por todos os lados, acredita-se que o vestiário do estádio é o mais antigo do mundo.

Com o vultuoso cheque do aluguel que entra todo mês, Garry estima que cerca de 600 torcedores por jogo já são suficientes para o clube não ter prejuízo com a manutenção do Hampden e com o staff de funcionários, como os 37 seguranças contratados por partida — o que honestamente pareceu até muito. E por que jogar em um estádio desse tamanho? “Porque ele é nosso, e é aqui que a gente joga há mais de 100 anos”, responde. A torcida do clube chegou a ser representativa, mas durante os anos 50, quando Celtic e Rangers já eram as potências da era profissional, a média de público do Queen’s Park caiu para dez mil pessoas. Isso despencou para 1,5 mil dez anos depois, e definhou para menos de mil desde os anos 70.

Keith McAllister não perde um jogo do Queens Park desde 1978. No alto, à direita, a última participação na primeira divisão, em 1957. Acima, o último título, a terceirona de 2000 | Crédito: arquivo pessoal e Queens Park

Quase sempre amor

“Somos poucos, mas como nenhum outro”, diz Keith McAllister, um torcedor que definitivamente não é como nenhum outro. Aos 59 anos, diz a lenda que Keith não perde um jogo do Queen’s Park desde 1979, seja ele disputado em casa ou fora — desde 1973, a conta é que ele deixou de ir em apenas três partidas. A estimativa é de que ele já tenha visto cerca de 1,9 mil jogos oficiais do time desde 1963, quando tinha sete anos. “Ao longo do tempo tivemos mais anos ruins do que bons, mas você apenas aceita. Ganhando ou perdendo, eu procuro aproveitar o dia. É o que eu faço aos sábados.” Keith não fala com grande fanfarra ou como se fosse algum ato de devoção. Também não está tentando quebrar algum recorde ou algo assim. “Seria um recorde meio estranho esse, mas como vou a muitos jogos desde criança o número foi crescendo. O Queen’s Park tem uma história fantástica e espero que ele nunca se torne profissional, pois isso é o que faz dele algo especial”, diz.

“O clube se tornaria apenas mais um clube de futebol e não há nada de especial nisso.”

Ao contrário do que a obsessão sugere, Keith é um sujeito bem normal. Grisalho, óculos, um cavanhaque estilo Visconde de Sabugosa, que trabalha como contador. Antes dos jogos e nos intervalos, é voluntário na banquinha que vende os artigos do clube — não há uma loja oficial no estádio -, além de fazer parte da associação dos torcedores. “Você releva as baixas porque sempre espera pelas altas. Isso é o futebol. Esse é meu time. Às vezes tem sido muito trabalho, mas na maior parte do tempo tem sido amor”, diz, sempre filosófico.

Esse status do amadorismo é algo especial para os torcedores do Queen’s Park, pois é o mais perto do futebol de verdade que existe, aquele em que a maioria dos clubes não vence, a maioria das torcidas é pequena e as pessoas ficam contentes em vencer a terceira divisão, como no último título oficial do clube, em 2000. Os Spiders não disputam a primeira divisão desde 1958 e seu último título nacional aconteceu há mais de 120 anos. “Apesar disso, até hoje ninguém venceu mais Copas do que nós, além de Celtic e Rangers”, ressalva Keith. “Não estamos mais no topo, mas acho que não somos tão prestigiados quanto se deveria. Nossa contribuição ao futebol é subestimada, o que é uma vergonha”.

Um ávido patriota, ele é daqueles que vai aos jogos da Escócia de kilt e, afinal de contas, o Hampden é quase como a sua segunda casa. No braço ele mostra uma tatuagem com uma frase extraída de um poema de Hugh MacDiarmid — escocês, é lógico — a qual diz resumir seu amor pela Escócia e pelo Queen’s Park: “A rosa do mundo não é para mim. Eu quero apenas. A pequena rosa branca da Escócia. De cheiro doce e cortante — e que parte o coração” (em minha tradução literal). Na perna, o símbolo do Wattenscheid 09, um clube alemão da quarta divisão que se tornou uma espécie de torcida-irmã do clube — mal posso esperar quando ele conhecer a história do, sei lá, XV de Piracicaba.

Uma reclamação constante dos escoceses sobre o Hampden é que ele não favorece a seleção pelo clima neutro devido ao seu tamanho (talvez eles pudessem pensar que o futebol tosco é que não favoreça a Escócia, mas deixa pra lá). Nos jogos do Queen’s Park, porém, com apenas 700 pessoas, a torcida até que fica razoavelmente perto do gramado. Não há lugar marcado e apenas uma fração do estádio é aberta ao público, amontoado na parte central. Não há separação com os torcedores visitantes, pela simples falta de necessidade. Estava frio e com ameaça de chuva — está sempre frio e com ameaça de chuva em Glasgow — e a impressão é que nenhuma das pessoas tinha entre 20 ou 40 anos. É como se todos fossem muito velhos ou ainda crianças. Novos demais para entender, ou velhos o bastante para não dar mais tempo de desistir. Ouve-se praticamente tudo, desde o barulho dos chutões, os jogadores falando, os técnicos gritando, e os xingamentos da torcida. “Por isso que todo mundo te odeia, seu punheteiro”, grita um senhor idoso ao juiz, como se a coisa fosse realmente pessoal. E talvez fosse mesmo.

Todas as fotos da torcida nas redes sociais são sempre as mesmas pessoas. No estádio não existem cantos ou qualquer atmosfera de um jogo de futebol com torcida — é como em um jogo do Real Madrid, só que neste caso é porque não tem ninguém lá. Vez ou outra ouve-se um incentivo, “Mon the Spiders!”, mas é apenas isso aí. A torcida explode apenas na hora do gol, logo abafada pelo som de “Enjoy Yourself”, do The Specials — uma ótima música ainda que eu não entenda como um clube de tantas tradições nostálgicas toque música após o gol, a coisa mais moderna entre as coisas do futebol moderno. Além de amador, o clube conserva a tradição da numeração de 1 a 11 e o calção para dentro da camisa, ainda que não tenham convencido os jogadores a não usarem chuteiras coloridas.

O gramado perfeito contradiz a qualidade do futebol, em um jogo truncado, cheio de chutão, com divididas fortes e muita bola aérea. Na terceira divisão da Escócia definitivamente não chegaram conceitos como “pressão alta”, “linha de quatro avançada”, “pivote e interiores”. Apesar disso, o gol do Queen’s Park saiu de uma bela tabela em frente à grande área, em que o canadense Dario Zanatta driblou o zagueiro e mandou um tirambaço de direita. O gol do Livingston foi mais com cara de Escócia: o bom e velho chuveirinho.

Entre todos os clubes nas ligas profissionais da Escócia, o Queen’s Park é o único com o status amador. “Nossa filosofia não permite que jogadores recebam salário, mas eles optam por jogar aqui por causa do Hampdem. Eles ganham em forma de despesas, como transporte, material esportivo, e esta aqui é uma estrutura que não existe nem mesmo em outros clubes da primeira divisão. A chance de jogar no estádio nacional é um sonho de quase todo profissional na Escócia”, explica o diretor Garry Templeman. Para o clube ficar de acordo com as leis trabalhistas, os jogadores na verdade assinam um contrato de 1 libra por semana. Uma nova cláusula permite que o clube contrate ex-profissionais, desde que a transferência seja de graça. Ainda assim, ele saltou da quarta para a terceira divisão na temporada 2015/16, e ao final da última ele chegou bem perto de subir para a segundona. “Tão perto, mas ainda assim tão longe”, escreveu Keith McAllister depois, por email.

Jeff Templeman, os irmãos Docherty e Pat McGeady: aula sobre costumes escoceses | Foto: Leandro Vignoli.

É pelo futebol

A maioria dos jogadores são jovens em busca de jogo. Ryan McGeever, 23 anos, 1,93m e com mais jeito de zagueiro escocês do que se poderia esperar de um zagueiro escocês, começou no clube aos 16 anos, rodou por alguns times da terceira divisão, e voltou após algumas lesões. “As vantagens de um time profissional é o de se focar apenas naquilo. Aqui a gente fala com o treinador apenas quatro ou seis horas por semana”, explica. “Mas isso exige que a gente trabalhe mais forte o conjunto, o que de certa forma contribui que o nosso nível individual melhore.” O clube virou uma escada para jogadores em busca de um clube grande. Ryan fala sobre torcer para o Celtic abertamente, no qual ele sonha em jogar um dia, e diz que voltou à Glasgow para terminar a faculdade. Ele terminou o ano na seleção do campeonato, e assinou com o Brechin City, da segunda divisão. “A minha vontade é viver só do futebol. Mas sem jogar as principais divisões é muito difícil fazer uma carreira onde não se precise trabalhar depois. É preciso ter um plano alternativo sempre.”

No intervalo da partida, Garry Templeman me levou ao espaço VIP do Hampden, onde ficam todos os diretores e integrantes do conselho, além de convidados, como empresários e estrangeiros. Antes de piscar, já tinha colocado um pint de Tennent na mão, a mais popular cerveja escocesa, que é produzida em Glasgow — no Reino Unido é proibido o consumo de cerveja nos estádios, com a exceção logicamente dessas salas estilo “skybox”. Também fui intimado a provar a famosa torta escocesa, que ao contrário de todas minhas crenças sobre uma torta, consiste de massa e guisado, e não algo doce. Não era ruim, mas também não era muito boa — ainda que de aspecto menos horrível que o “pudim negro”, uma mistura de aveia com embutido e sangue de porco (aquilo que os gaúchos chamam de MORCILHA), o que também contrariou todas as minhas crenças sobre o que é um pudim. “Na Escócia faça como os escoceses” é um conceito bem radical, e basta você dizer que não conhece alguma coisa para ter de experimentar no minuto seguinte. Também foi o caso do refrigerante Irn Bru (“aín-brú”), uma espécie de Fanta com um sabor que não deu certo, que patrocina do Queen’s Park desde 1997. É tão popular na Escócia que, segundo consta, é o único refrigerante a bater a Coca-Cola como mais vendido de um país.

Essa aula de Introdução À Culinária da Escócia recebi em uma mesa onde estavam o filho de Garry, Jeff Templeman, 24, e os irmãos Alan, Tom, e Gerry Docherty, todos na casa dos 60 anos, esse último trombonista na gravação do hino do Queen’s Park — ele fez questão de me entregar o CD. Todo mundo parece conectado ao clube de alguma forma. Pat McGeady, 57 anos, um sujeito calvo e sorridente do tipo “enciclopédia do futebol”, vestia uma jaqueta do Third Lanark, um extinto clube de Glasgow — se parece inusitado torcer por um time que leva 700 pessoas a um estádio para 51 mil, o que dizer de alguém que ainda torce para um time que nem existe mais? Ele é tio de Aiden McGeady, o meia da seleção irlandesa que começou a carreira no Queen’s Park, aos 14 anos. Como eu disse, está todo mundo conectado.

Uma vez Queen’s Park, sempre Queen’s Park aplica-se em quase todas as pessoas na sala. Peter Buchanan, 78, é o maior artilheiro na história do clube, com 160 gols marcados durante sua passagem de 11 anos nos anos 60. “Eu tinha um bom trabalho na época, e não podia conciliar com o futebol profissional. Tive ofertas de alguns times, mas se eu quebrasse a perna ou algo assim não tinha nenhuma garantia. Então preferi ficar no meu trabalho e jogando aqui”, conta Buchanan. Ele trabalhava com venda de uísque, e assim como o pai William (jogador na década de 30) e o avô Peter (conselheiro nos anos 1910), permaneceu no Queen’s Park a vida toda. Buchanan jogou ao lado de Alex Ferguson, que é de longe a figura mais famosa do clube escocês. “Eu joguei com ele quando voltei do exército. Ele era apenas um garoto de 16 anos e nunca conseguiu se firmar como titular e preferiu sair”, conta Buchanan, que não dá a mínima para o figurão do Manchester United e faz questão de lembrar os 33 gols que fez em uma temporada, um recorde no Queen’s Park. Após encerrar a carreira, Peter Buchanan foi presidente e hoje é um dos conselheiros.

O mesmo caminho percorreu Ross Caven, o jogador que mais vestiu a camisa do clube, em inacreditáveis 20 anos seguidos, entre 1982 e 2002. “Adoro esse clube e ele foi muito conveniente para minha vida pessoal. Sou consultor de negócios e sempre precisei viajar muito ao longo dos anos”, explica. “Quando se tem obrigações contratuais isso não é possível, mas o Queen’s Park sempre foi compreensível. Funcionou para minha carreira”.

Vinte anos em um mesmo clube já é algo raro no futebol, agora imagine 20 anos em um clube amador. Ross conta que antes de completar 18 anos chegou a fazer um teste no Queen’s Park Rangers, de Londres, mas que não foi aceito. “Provável que eu teria ficado se tivessem me aceitado. Mas a verdade é que o futebol nunca me seduziu tanto quanto aos outros meninos, e desde cedo comecei uma outra carreira.” Sobre o clube estar nas penumbras da Old Firm, como é chamado o clássico entre o Celtic e o Rangers, o ex-zagueiro corrobora uma ideia bastante comum no futebol “alternativo”. “Para falar a verdade eu gosto é de competição, e isso é o que me proporciona as ligas menores. Claro que eu entendo o aspecto financeiro do futebol, mas se você olha os 30 pontos de vantagem do Celtic para o vice-líder no campeonato, isso não é futebol. Se é dessa forma que vamos caminhar daqui em diante, os torcedores vão perceber que não é atrativo, e que não tem o porquê de competir. Eles deixarão de ir aos jogos, o que pode ser tarde até os clubes perceberem.”

Em sentido horário: Gus MacPherson, técnico desde 2014; o capitão Ryan McGeever; e Anton Bradym, premiado com uma garrafa de champagne pela atuação no empate do Queens Park contra o íder Livingston | Crédito: Queens Park

Trampolim

Corta para o Celtic Park, um dia depois, uma vitória do Celtic por 4 a 1 sobre o St. Mirren pelas quartas de final da Copa da Escócia, e um até “modesto” público de 27 mil pessoas. Conhecida por uma das torcidas mais fanáticas do mundo, visitar Parkhead vale pela experiência. Era um jogo com preço promocional único a 20 euros, e pedi à menina da bilheteria “um lugar para curtir uma boa atmosfera”, o que provavelmente fosse uma senha para ver a partida atrás de um pilar de concreto. Neste caso, porém, ela me colocou na parte central da arquibancada, parte inferior, perfeito até demais para acreditar, rodeado por velhinhos que sentam ali por algumas décadas — a minha cadeira foi a do sócio ausente, como é bem comum na Europa.

A despeito do ambiente e toda vibração, era evidente aquele sentimento de “só mais um jogo”, como se o Real Madrid encarasse o Granada. A grande verdade é que a torcida do Celtic não vai ao estádio para saber se vai ganhar, mas como e quando. Nesse caso até que sofreu um pouco: o time perdia a partida até os 20 minutos do segundo tempo, quando o cansado adversário da segunda divisão resolveu entregar rapadura ao tomar três gols em dez minutos.

O senhor à minha frente, na casa dos 80 anos e lá vai pedrada, era o nato corneteiro que não parou de reclamar um minuto até o empate, mas também me saudou com entusiasmados hi-fives a cada gol do Celtic. Talvez seja a coisa mais entediante para quem assiste de fora, mas não é bem o que pensa a torcida do time que sempre ganha.

Corta de volta para o Hampden e as 701 pessoas. O segundo tempo, mais frio e agora com a chuva que antes só ameaçava, deixou o jogo mais truncado, com mais bola aérea e buracos no gramado. Quando tentei filmar alguns lances fui advertido pelo segurança de que era proibido, provavelmente para não burlar os direitos de imagem, para tristeza de toda uma humanidade só esperando pelos melhores momentos de uma partida aleatória da terceirona escocesa.

A imprensa, aliás, fica em um pequeno espaço com tomadas e microfones misturada aos torcedores — eram seis jornalistas, mais ou menos. Do alto-falante, cada anúncio parecia como se o equipamento dos Rolling Stones estivesse sendo usado para chamar números de bingo. O tamanho do estádio amplifica a bizarrice, ainda que em números absolutos o Queen’s Park teve a terceira maior média de público da terceira divisão, que gira em torno dos 540 torcedores. Em uma cidade dividida em duas, o Queen’s Park não é nem mesmo a terceira força em Glasgow, sendo esse posto do Partick Thistle, que geralmente está na primeira divisão e atrai cerca de cinco mil torcedores por jogo no extremo norte da cidade.

O único suspiro de público no Hampden em jogos do Queen’s Park aconteceu quando o Rangers jogou a quarta divisão devido aos problemas financeiros do clube. Essa seria a “Old Firm” original, pois foi um jogo que aconteceu nove anos antes de Celtic e Rangers se enfrentarem pela primeira vez. A partida atraiu um total de 30 mil pessoas, mesmo que apenas duas mil fossem os torcedores dos donos da casa. Já contra o Celtic, o último “clássico” aconteceu em 2009 pela Copa da Escócia, só que jogado no Celtic Park. E ao contrário de clubes pequenos que se tornam o “segundo time” de todo mundo, a real é que em Glasgow ninguém se importa. No jogo em Parkhead apenas um que outro torcedor do Celtic me disse já ter ido ao Hampden Park para assistir ao Queen’s Park.

O apito final foi seguido por um salva de palmas pelo bom resultado de 1 a 1 contra o líder Livingston. Ainda em campo, Anton Brady recebeu uma champagne como o melhor jogador da partida. De volta à sala dos conselheiros, o técnico Gus McPherson, de paletó e traje social, parecia uma outra pessoa comparada aquela que eu vi à beira do gramado, de jaqueta e chuteira, gritando e gesticulando feito um louco. “Aquele era eu sendo calmo”, brinca. “Exigente e apaixonado, esse é meu estilo”. Toda uma vida jogando pelo Kilmarnock, o técnico é um dos poucos sem relação anterior ao clube ou esse status amador, recebendo um salário compatível com o de seus colegas da terceirona escocesa.

“A parte difícil de treinar aqui é que os jogadores ficam muito pouco tempo. Todos almejam jogar em um nível mais alto, então se acontece como na temporada passada onde conseguimos o acesso, esses jogadores chamam a atenção e é natural que eles saiam para buscar sucesso. Alguns decidem ficar mais tempo porque eles têm a chance de jogar, mesmo ainda muito novos”, analisa McPherson.

Uma das coisas que os torcedores têm muito orgulho são histórias como a de Andy Robertson. Em apenas um ano o lateral saiu da quarta divisão para a seleção e, depois de três anos no Hull City, foi anunciado pelo Liverpool no dia 21 de julho. “Aqui é um ambiente ótimo para o desenvolvimento dos jogadores”, afirma MacPherson. “São as melhores instalações do país junto com Celtic e Rangers, mas sem a mesma pressão. Então eles podem se concentrar no aspecto mais tático e técnico do jogo, e a gente tenta não sobrecarregar o físico dos jogadores. Eles precisam aprender rápido, já que em geral ficam aqui por um período curto.” O caso de Robertson reflete bem essa ideia. Ele chegou ao Queen’s Park aos 18 anos após ser dispensado no Celtic por ser “baixo demais” (ele tem 1.78m). Sua meteórica subida ainda contou com um trabalho no call center do próprio Hampden Park, onde vendia ingressos para shows e eventos.

Gus McPherson dirige o time há três anos e faz parte de uma estrutura onde treinadores raramente são trocados. Nos últimos 40 anos, para se ter ideia, o Queen’s Park teve oito técnicos, o mais famoso é Eddie Hunter, que entre 1979 e 1994 teve 283 derrotas e 227 vitórias.

Após o jogo entrei ao vivo no programa “Off the Ball” para contar a minha experiência no que vim a saber é um dos mais tradicionais da BBC Radio Scotland. As exatas palavras que respondi para descrever o jogo foram que “é como assistir o teu sobrinho jogar um torneio interséries no Maracanã”, e acho que fui justo. Os apresentadores ainda quiseram saber as semelhanças entre o futebol escocês e brasileiro — no caso, nenhuma — além do que eu achava do Pelé. Isso porque na Escócia existe uma grande admiração e até obsessão com o que o Brasil representa para o futebol. McGeady, o torcedor do extinto Third Lanark, considera Rivelino o melhor que já viu, descrevendo em detalhes algum lance do 0 a 0 entre Brasil x Escócia na Copa de 74. Essa admiração é tanta que um ex-chefe, Roddie McVake, contou que quase se chamou Júnior em homenagem ao lateral. Roddie foi meu editor nas Olimpíadas do Rio, onde conheceu algum produtor da TV Globo, que fez Júnior não apenas assinar uma camisa, como gravar um vídeo para o pai dele que, fanático pelo jogador, chorou de alegria. Perdi a conta de quantas vezes rolou um “Pelé ou Maradona”. Respondi o que todos sabem: Maradona não foi o melhor nem da Argentina.

No bar, que fica nas dependências do Hampden Park, uma frase de Ferguson e homenagens a ídolos do passado, como Ross Caven, que defendeu o Queens Park por 20 anos | Foto: Leandro Vignoli.

Pretexto para o uísque

Após o jogo ainda fui a uma espécie de bar dos torcedores, nas dependências do estádio. Muitos jogadores “históricos” estão representados nas paredes, além de uma frase de Alex Ferguson, que por lá jogou durante três anos: “Se você joga pelo Queen’s Park, você precisa lutar em cada partida que joga”. Foi onde reencontrei Keith, o homem que não perde um jogo desde 79, e vários outros Spiders: Andy, Shepa, Ian, Higgy e Fergah.

“É preciso entender que o futebol aqui é secundário. Digo, nós falamos sobre futebol o tempo todo, e queremos que o Queen’s Park ganhe os jogos, é claro, mas todo sábado a gente estará aqui não importa o resultado. A única coisa que varia [de acordo com o resultado] é quanto tempo nós ficamos nesse bar”, explica Andrew “Andy” McNaught. Ele é interrompido por Colin Shepard, vulgo Shepa, um sujeito ruivo, de barba, dreadlocks e BANDANA, dizendo que os velhos — olhando para o Andy — não aguentam ficar muito tempo. Ian então complementa que é mais fácil para os que não tem mulher em casa, apontando para o Shepa. É um enorme clima de churrasco, com amigos fazendo piada uns com os outros, risadas e muita cerveja.

Ian Nicolson é um ex-torcedor do Hibernian, de Edimburgo, que virou a casaca. “Prefiro muito mais esse ambiente das ligas menores. É um futebol mais próximo da realidade, mais perto do que se conhece e se joga. Ninguém aqui tá dizendo que não assiste Premier League, ou o Barcelona, coisa e tal, apenas que esse tipo de clube como o Queen’s Park combina mais com a nossa vida.” Esses caras são todos classe média, o típico trabalhador das 8h às 17h. Michael “Higgy” Higgins, que trabalha na companhia de trem em Glasgow, esclarece que aquele pessoal com quem eu estava conversando antes — no caso Garry Templeman, o filho e os irmãos Docherty — “não são torcedores como a gente”, por ficarem no espaço VIP em vez da arquibancada. Então ele me perguntou sobre uísque, a primeira coisa que me veio à cabeça foi Jack Daniels, e então ele fez uma cara de nojo como poucas vezes vista. Então me trouxe um Glengoyne, um “uísque de verdade”, da região. O que explica mais ou menos o motivo de eu ter me perdido pelas ruas na hora de ir embora.

As conversas do grupo variam sobre os mais diversos temas, de futebol à música, ao clima horrível de Glasgow, à Seleção de 82 — mas é óbvio — à independência da Escócia. Todos são unânimes pelo sim, o que de certa forma os conectaria mais com o Celtic do que os Rangers, ainda que este sectarismo em Glasgow seja justamente um dos motivos de a maioria escolher torcer pelo Queen’s Park. “Esse lance de Rangers e Celtic deixam todos presos a uma ideia que nem ao menos tem a ver com futebol”, diz Andy. “Por coincidência, eu sou ateu. Ou talvez não seja apenas uma coincidência”, ele diz às gargalhadas. Existe até uma piada sobre a rivalidade. “Nos anos 80 em uma escola católica era impossível encontrar um torcedor do Rangers. Hoje não é mais tanto assim: é possível encontrar um ou dois”.

Nove entre dez torcedores do Queen’s Park moram no próprio bairro onde fica o estádio, e torcer para o clube é apenas conveniente para o estilo de vida de todos. É isso o que eles gostam e não estão interessados em mudar. “Os outros dois times têm uma liga própria entre eles, e em Glasgow todo mundo é uma coisa ou outra. Não tem como escapar a menos que você seja meio doido, o que acredito ser o nosso caso”, diz Andy. Passei o dia com esses caras, e ninguém quis vender a ideia ou tentou me convencer de que é melhor ser torcedor do Queen’s Park, apenas que eles não sabem ser outra coisa. Para mim foi apenas um sábado muito divertido, não tanto pelo calamitoso futebol visto dentro de campo, mas pelo enorme clima de camaradagem. Só que para eles é assim todos os sábados.


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2017, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

VIGNOLI, Leandro. Os últimos reis da Escócia. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 8, 2019.
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