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Os usos políticos do esporte: a realidade brasileira

Gabriel Assis Farias 5 de outubro de 2020

O primeiro artigo sobre “Os usos políticos do esporte” abordei sobre alguns eventos mundiais que demonstram a instrumentalização do esporte pelo poder institucional e, em contrapartida, também por grupos que buscam reivindicar direitos políticos e transformação social. Neste segundo artigo, falarei apenas sobre a realidade brasileira, isto é, casos que aconteceram e acontecem no Brasil. Lembrando, mais uma vez, que ambos os textos utiliza-se de breves recortes sobre os eventos, pois o intuito destas publicações é entender e analisar o esporte como um fenômeno social e político, percebe-lo como um vasto campo de estudos. 

O desenvolvimento do esporte profissional no Brasil está intimamente atrelado ao suporte estatal, isto é, desenvolve-se a partir de investimentos advindos da iniciativa pública, muito semelhante ao desenvolvimento da infraestrutura urbana e industrial do país, sendo que os investimentos oriundos da iniciativa privada são apenas complementares no processo. Deste modo, não raro podemos perceber que o esporte é instrumentalizado pelos governos de maneira que respalde as ações políticas e a contribuir na imagem da administração diante a população, ou seja, o esporte passa a ser utilizado como ferramenta política e ideológica.

Nesse sentido, devemos lembrar-nos do ciclo dos grandes eventos-competições internacionais que o Brasil sediou, entre os anos de 2007 e 20161, e como estes episódios foram influenciados pelas conjunturas político, econômico e social do Brasil, além de como induziram as mesmas estruturas do país. Configurando-se uma via de mão dupla, onde a situação do país teve peso na escolha do Brasil para sediar esses eventos e como a realidade brasileira foi transformada neste ciclo.

Entre os anos de 2003 e 2012, o Brasil constatou um grande crescimento econômico, alcançando em 2011, o 6º lugar entre as maiores economias do planeta, legando a nação brasileira um enorme otimismo sobre o desenvolvimento do país. Neste contexto de crescimento e otimismo acontece os Jogos Pan-Americanos de 2007, na cidade do Rio de Janeiro, com grandes investimentos para a realização dos jogos, foi considerado um sucesso. No mesmo ano, o Brasil é escolhido como sede da Copa do Mundo FIFA de 2014 e, consequentemente, passa a ser sede da, até então, Copa das Confederações FIFA de 2013, evento-teste para o mundial realizado sempre no ano seguinte.

Por fim, no ano de 2009 o Rio de Janeiro é escolhido à cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, ou seja, em um intervalo de quatro anos – 2013/2016 –, o país receberia três grandes eventos esportivos internacionais. Estes eventos serviriam como a imagem e porta de entrada do Brasil, em passos largos para o desenvolvimento, para o mundo, e os governos petistas utilizaram desses eventos e narrativas para fundamentar sua política internacional.

O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e membros da delegação brasileira comemoram a escolha do Rio de Janeiro. Foto: Wikipedia.

Portanto, em 14 anos entre preparação e concretização destes eventos, o poder público instituiu uma política de investimentos de capital tanto na infraestrutura para receber os jogos quanto na formação de atletas, pois seria necessário preparar os competidores para que o país tivesse grandes resultados. Estes investimentos atingiram o resultado esperado, pois o Brasil teve sua melhor participação em uma edição de Jogos Olímpicos, nas Olimpíadas de 2016, no entanto, uma das maiores críticas dos atletas pós-ciclo é que os altos investimentos no esporte olímpico que aconteceram neste intervalo teriam sido diminuídos drasticamente após os jogos de 2016.

Se a economia brasileira teve surto de crescimento nos dois governos de Luiz Inácio “Lula” da Silva, entre 2003 e 2010, não se pode dizer o mesmo dos governos sucessores de Lula. A partir de 2012, já nos governos de Dilma Roussef, o cenário econômico brasileiro passa a sofrer com instabilidades e, em consequência dos altos investimentos – alguns superfaturados – na construção de estádios para a Copa do Mundo, instala-se no Brasil uma crise social e política que leva o povo às ruas, primeiramente em 2013 no período dos jogos da Copa das Confederações, também em 2014 e, para finalizar o ciclo dos eventos-competições, em 2016. Neste período de manifestações populares, houve rejeição em partes da sociedade mediante a estes eventos, manifestos dentro dos estádios contra a presidenta, casos de corrupção expostos, início de um período de recessão econômica e, por fim, o impedimento de Dilma Roussef no ano de 2016.

O esporte esteve envolvido em todo o processo político e social desencadeado no Brasil nos últimos anos, é interessante notar que a mudança de conjuntura do país, transformou as expectativas otimistas do povo em um processo de desilusão com os eventos e, mais além, com as instituições políticas. Então, se no início os governos petistas utilizaram as competições de maneira a exaltar o crescimento econômico do país, culminou no processo de desgaste da imagem do partido no cenário político nacional. 

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Espectadoras de Brasil 2-1 Uruguai estendem faixa de protesto no Mineirão. Foto: Wikipedia.

A importância do futebol para a cultura popular e o imaginário coletivo brasileiro é gigante, percebemos o quão importante é para figuras políticas buscarem atrelar suas imagens ao universo futebolístico. Explica-se, de maneira rápida e não tão profunda, a compulsão do atual presidente em aparecer vestindo camisas de variados clubes do Brasil, encontrar com atletas e dirigentes de clubes, apoiando a volta dos jogos em meio a uma pandemia não controlada – muito em função de sua péssima gestão baseada em sua postura negacionista, anticientífica e de desprezo à vida – e a assinatura de uma MP que mexeu nas estruturas de direitos de transmissão. A atitude do presidente em exercício em relação ao futebol é muito semelhante à postura dos governos militares (1964-1985), o que talvez não seja coincidência, tendo em vista a demonstração pública de admiração – que é reiterada sempre que possível – do chefe do Executivo sobre o período da ditadura empresarial-militar brasileira.

Outro ponto que pode servir de comparativo a administração deste governo com o período militar são as constantes tentativas de ataques às estruturas democráticas, além do apoio de uma elite ressentida e atrasada, que se encontram na administração das instituições públicas e as organizações esportivas (CBF e CBV, por exemplo).

O recente caso de censura à jogadora de vôlei de praia Carol Solberg, após a atleta gritar em uma entrevista pós-jogo “fora, Bolsonaro” e a postura, quase que imediata da CBV, lançando uma dura nota de repúdio a atitude da atleta, deixa evidente a infiltração de apoiadores do governo em buscar calar qualquer crítica ao presidente. Lembrando que na Liga Mundial de Vôlei masculino, em 2018, alguns atletas manifestaram apoio ao então candidato a presidência e a postura da CBV foi totalmente contrária. Para encerrar, o STJD denunciou Carol Solberg por manifestação política.

Deixando o momento atual de lado, recuaremos algumas décadas no tempo, outro caso de instrumentalização do esporte e, neste caso especificamente, do futebol pelo governo é o da criação do campeonato brasileiro de futebol, em 1971. O torneio nacional foi criado no governo militar do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), com o intuito de impulsionar sua administração e de consolidar o regime militar. Este aparelhamento do futebol com o Estado no caso da criação do campeonato brasileiro não foi novidade nem para o regime militar, muito menos para o próprio Médici, que em 1970 teria influenciado nas decisões da CBD (órgão predecessor da CBF) no que diz respeito à seleção brasileira de futebol, que se consagraria tricampeã mundial naquele ano. Deste modo, a CBD passou a ser uma das ferramentas do governo Médici, buscando cooperar para o estabelecimento de uma boa imagem do governo e do regime.

O campeonato brasileiro foi idealizado a partir da narrativa de união nacional, no entanto, seu principal objetivo era angariar votos para o partido ARENA, situacional, em regiões onde o MDB, partido de oposição consentida, começava a crescer em apoio. É neste contexto que se origina um dos jargões mais famosos da história do futebol brasileiro: “Onde o ARENA vai mal, mais um time nacional”, pois ao instrumentalizar a CBD e, consequentemente o futebol, o governo militar organizou juntamente com o órgão desportivo nacional, e desenvolveram uma estrutura clientelística, onde era trocado os votos das regiões que o governo tinha interesse, por uma vaga no campeonato nacional. Este modelo de clientelismo vai ter como consequência, no fim da década de 1970, um campeonato brasileiro inflado, com um número elevadíssimo de clubes, o que levaria a uma diminuição do nível técnico da competição.

Contudo, o futebol também proporcionou ações que colocariam em xeque a estrutura social, política e econômica, além do próprio arranjo paternalista, clientelista e coronelista do futebol, imposta aos jogadores.

Neste sentido, devemos lembrar-nos dos embates dos clubes que representavam classes sociais diferentes – clubes da elite contra clubes proletários –, uma excelente metáfora que caracterizaria a luta de classes; Vasco e Bangu, os primeiros clubes brasileiros a aceitarem jogadores de futebol negros; e o emblemático caso de Afonsinho, um dos temas sobre futebol mais debatido na academia, sendo o primeiro jogador do futebol brasileiro a conseguir o passe livre, por determinação do STJD, em 1971, depois de muita luta.

Ainda que o contexto da ditadura militar brasileira o futebol funcione como mais uma instituição aparelhada pelo Estado para ser usada em seu benefício – com consentimento dos clubes –, o caso de Afonsinho e da Democracia Corinthiana não serão os únicos fenômenos de oposição produzida por este esporte no período.

Todavia, para não alongar ainda mais este artigo, destaco a ida dos jogadores do Atlético-MG, América-MG e do Cruzeiro – Reinaldo, Dario e Vitor, respectivamente – no comício em favor das eleições diretas em Belo Horizonte, os movimentos similares a Democracia Corinthiana desenvolvidos no Vasco e no Internacional, são alguns dos episódios que valem a pena serem citados.

No que tange o momento atual do futebol brasileiro, não vem havendo muitas manifestações de cunho político ou ao menos que busquem opor-se a ordem vigente, mesmo apesar da decadência e precariedade do futebol nacional, com a seleção brasileira colecionando resultados ruins, grandes jogadores saindo cada vez mais cedo do futebol nacional, falta de estrutura em grande parte dos clubes, além das enormes dívidas dessas instituições e, não o bastante, com o alto escalão da CBF envolvido em escândalos de corrupção.

No entanto, mesmo em momentos de escassez, destaca-se o movimento do Bom Senso F.C., movimento criado no ano de 2013 por alguns atletas de times das séries A e B do futebol nacional, que procurou pressionar a CBF para que algumas mudanças ocorressem na estrutura do futebol brasileiro, sendo a pauta o: “calendário do futebol nacional, férias dos atletas, período adequado de pré-temporada, fair-play financeiro e participação nos conselhos técnicos das entidades que regem o futebol nacional.” (SUZUKI, 2016), porém o movimento foi encerrado em 2016 pela falta de articulação dos atletas, o que é sintomático se pararmos para pensar sobre a alienação política dos atletas profissionais.

Outros acontecimentos contestatórios que merecem destaque aconteceram no campeonato brasileiro de 2019, ressaltando a postura progressista do EC Bahia, onde seu técnico Roger Machado, após o jogo valido pela 25º rodada do campeonato contra o Fluminense, na coletiva de imprensa pós-jogo expôs e debateu o racismo e a inserção do negro na sociedade brasileira2.

O Bahia também entrou em campo com uma camisa que protestava contra a crise das manchas de petróleo nas praias do nordeste e a equipe do Santos aderiu uma campanha contra o racismo, onde os números dos jogadores estampado nas costas estaria acompanhado com o símbolo da porcentagem, representando o racismo em inúmeros setores da sociedade.3 Por fim, no jogo Vasco x São Paulo válido pela 16º rodada do torneio, ficou marcado pela primeira paralisação, na história do Brasileirão, de jogo pelo arbitro, após gritos de homofóbicos vindo das arquibancadas.

Desta maneira, podemos perceber como o esporte e, principalmente, o futebol é um fenômeno social, político e econômico que é capaz de contribuir para que possamos compreender a sociedade brasileira em toda a sua complexidade e variedade. Todos os episódios expostos neste texto definem-se como um recorte das várias expressões desenvolvidas e articuladas na realidade brasileira, apresentando atividades de líderes no campo esportivo.

Notas de Rodapé

1- Jogos Pan-Americanos – 2007; Copa das Confederações – 2013; Copa do Mundo FIFA – 2014 e Jogos Olímpicos – 2016.

2- Até aquele momento, entre os 20 clubes que disputavam o campeonato da série A, apenas o Bahia e o Fluminense contavam com técnicos negros. No fim do campeonato, os números sobem para três técnicos negros, pois o Corinthians termina o campeonato com o técnico interino Dyego Coelho.

3- O Santos usou essa camisa no clássico contra o São Paulo no dia 16/11, coincidentemente o jogo teve a presença do atual presidente da República. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel José de Assis Farias

Licenciado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e apaixonado pelo esporte, futebol, História e o Corinthians. Assim, utilizei minhas paixões como tema de TCC, e deste modo, produzindo a pesquisa: "O esporte como ferramenta de contestação e mobilização social e política: A Democracia Corinthiana (1981-1985) e o apoio ao movimento popular 'Diretas Já'".

Como citar

FARIAS, Gabriel Assis. Os usos políticos do esporte: a realidade brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 12, 2020.
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