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“Ou joga por amor ou joga por terror” (parte II)

Fabio Perina 19 de abril de 2022

Em texto anterior, cerca de 4 anos atrás, tratei do sempre polêmico tema de protestos de torcedores contra jogadores, treinadores e dirigentes diante de uma variedade de “causos” ao longo de vários anos. Esbocei a sua dimensão lúdica “memeficada”, afinal o lúdico e a revolta são energias vitais que podem ou não ser mobilizados contra a pretensão de controle de todas as situações em todos os espaços. E também propus como chave de leitura analítica a referência antropológica de expiação (ou simplesmente o “bode na sala”) como um elemento inescapável a todos os sujeitos envolvidos.

Diante dos casos de protestos, sobretudo no Corinthians e no Flamengo no início de abril e justamente em dois dias seguidos, percebi a necessidade de retomar meu primeiro texto para ser mais rigoroso com a análise. (Afinal, no caso alvinegro a nota de protesto literalmente retoma a famosa frase que dá título ao meu texto). A começar pela posição dos sujeitos envolvidos, sendo que os protestos contra treinadores e dirigentes parecem ser cada vez mais raros. (Obs: embora seja comum a mídia declarar que não se dá tempo aos treinadores, inversamente nos dois casos recentes dos portugueses Vitor Pereira e Paulo Sousa, respectivamente, vem sendo poupados de críticas e protestos de parte significativa da torcida por confiarem no projeto). Enquanto os protestos contra jogadores parecem ser cada vez mais frequentes e cada vez mais intensos. O que reforça a hipótese da conveniência dos dirigentes de que hajam protestos apenas contra jogadores e ao mesmo tempo eles próprios sejam, mais do que poupados, mas isentados. O que torna inescapável trazer à tona a premissa da determinação de classe social envolvida: os dirigentes como dominantes e os jogadores e principalmente os torcedores como dominados. Vide a tão improvável união entre jogadores de diversos clubes superando seus interesses particulares em suas carreiras para que tivessem ao menos condições mínimas de segurança para trabalhar, já que seus patrões parecem pouco se importar…

Ora, se a exclusão do torcedor popular da vivência nos estádios e principalmente da política interna nos clubes já era significativa, a tendência que esse processo seja ainda mais visível de agora em diante (e pelos protestos se têm evidências ainda mais concretas) por conta do novo cenário no futebol brasileiro com a nova onda de empresarização através da lei de SAF. Grosso modo, a SAF é como se fosse a nossa nova “atmosfera”, pois mesmo que discreta está aí sempre presente. Com o prejuízo do debate ser obstruído pela dimensão da segurança resguardando e ocultando a dimensão da economia. Ou seja, a referência antropológica ainda está presente, mesmo que implícita, de um drama ao colocar em cena posições e disputas.

torcida Grêmio
Foto: Wikipédia

Se os protestos tem sido cada vez mais intensos, evidente que a dimensão criminalizante também aumenta. E como sempre proponho como chave de leitura a individualização de punições ao invés da generalização. Primeiro, pela consideração bem palpável que, indo direto às condições do fato, na prática os protestos são feitos por poucas dezenas de torcedores. Sendo leviano e desonesto declarar que “a torcida do clube X…” por sub-entender milhões de potenciais culpados como se fossem “milícias digitais” que supostamente encorajassem a ação da minoria. Segundo, a troca de estádios para arenas impactou toda a lógica do futebol para além dessas instalações, impondo aos torcedores uma condição totalmente desfavorável em que houve a “troca” (evidente que não fomos chamados a negociar nesses termos) em perder a massificação e a carnavalização diante de uma hiper-vigilância, porém sem ganhar sequer condições mínimas de segurança para todos (mas apenas uma fachada de conforto apenas a quem puder pagar).

Diante dessas considerações, passarei para a análise de alguns artigos de blogs do UOL Esporte que considerei relevantes para tratar de como as várias disputas de sentidos se esboçam:

A começar por Andrei Kampff pela abordagem jurídica que tenta enquadrar os protestos apenas na dimensão da criminalização. Positivo por afirmar pelo menos uma menção técnica ao respaldo que a Lei Pelé, o Estatuto do Torcedor (vide sua recente tipificação de protestos em qualquer lugar fora dos estádios como no patrimônio dos clubes) e até o Código Penal. Porém muito negativo pela repetição vaga dos termos de sempre como “cultura da impunidade” e “até quando?”. O que esses dois elementos somados dão a entender que a lei é adequada, mas falta ser aplicada. Assim como o desfecho propositivo é a da criação de (também vagos) “mecanismos de governança”.

A seguir, Danilo Lavieri em outro artigo também reivindica que haja algum novo tipo de relação do clube com seus torcedores. Sem desenvolver propostas concretas, se limita a esboçar o contraste entre uma minoria reduzida de torcedores organizados terem acesso privilegiado às instalações do clube para protestar contra jogadores e até para se reunir com dirigentes, enquanto a imensa maioria dos demais sócios e torcedores não têm. Não dá indicações de soluções jurídicas, mas ao menos de premissass lógicas por cobrar dos dirigentes passarem a ser de fatos responsáveis pelas situações que levaram aos protestos ao invés de como sempre se esconderem atrás de “notas de repúdio” inertes.

Por fim, Milly Lacombe escreve o artigo mais positivo. Embora haja elementos negativos como o uso do clichê pseudocrítico de “tratar torcedores como animais os torna um deles”. Negativo pois a experiência histórica, sobretudo dos casos inglês e brasileiro nas últimas décadas, revelou que tornou o horizonte de direitos restrito apenas aos do consumidor e não aos de segurança e participação. Positivo a começar pela ressalva contra a generalização: “não tomar o todo pela parte” e reconhecer o legado histórico das torcidas organizadas com décadas dedicadas aos clubes. A seguir, o contraste na relação clube-“torcida” (em sentido amplo) do artigo anterior é ampliado através de um questionamento tão profundo quanto ocultado por demais jornalistas e comentaristas: porque parece uma aberração os dirigentes terem relações promíscuas com seus torcedores mais fanáticos, mas são toleráveis as mesmas relações com empresários ou até políticos que ou extorquem os clubes ou aproveitam sua imagem popular legítima?! O que está implícito ao texto é que essa seletividade contém uma determinação de classe, conforme tratei nas considerações iniciais. Afinal, para esse e diversos textos da autora o que fica explícito como principal chave de leitura não é a criminalização nem mercantilização, mas é a paixão dos milhões de torcedores e de um ídolo (no caso o goleiro Cássio como o “alvo”) por um clube. E mais positivo ainda que questiona o papel meramente figurativo ocupado pelos sócios-torcedores. O que retomo também das considerações iniciais que a tendência nas últimas décadas é da lógica excludente da política interna dos clubes ao tratar os sócios como uma simulação de representação com apenas direitos comerciais, mas poucos (ou inexistentes) direitos políticos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Ou joga por amor ou joga por terror” (parte II). Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 26, 2022.
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