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Padrões de representação do racismo no futebol no caso Daniel Alves

Izadora Silva Pimenta 2 de fevereiro de 2021

O discurso midiático sobre futebol ao qual estamos acostumados na América Latina é carregado de uma emoção que pretende nos transportar para momentos exatos de uma partida e fazer com que eles também façam parte da nossa vida, seja em uma narração intensa do que está sendo realizado em campo ou um relato sobre o que já foi. Para conferir essa emoção, nós temos o papel de quem nos conta a história. Um discurso midiático carregado de valores, pressupostos e diferentes modos de contar essas histórias, de forma que mesmo as notícias factuais, as chamadas hard news, nunca são neutras – e, sim, passíveis de influenciar ou complementar a visão do leitor a respeito de um caso.

Quando o assunto é o racismo no futebol, a linguagem emocional do futebol também abre espaço para que ele se faça presente. Nos gritos das torcidas. Nos xingamentos dos jogadores de equipes adversárias. No apelido relacionado à cor, disfarçado de carinho, que está sempre ali, utilizado para demarcar o lugar ao qual ele pertence na visão dos outros. Logo, a expectativa social é de que, ao sofrer racismo, o jogador leve essa questão na chamada “esportiva”. Caso contrário – ou seja, se ele se posicionar devidamente enquanto vítima – corre o risco de ser criticado ou, até mesmo, de observar consideráveis prejuízos à sua carreira.

Considerando apenas hard news, minha pesquisa, portanto, tem sido voltada para entender alguns padrões de representação do racismo no futebol neste momento. Em minha dissertação de mestrado, tomei como ponto de partida o racismo sofrido por Daniel Alves em 27 de abril de 2014, em uma partida pelo Campeonato Espanhol entre Barcelona e Villarreal, quando um torcedor do Villarreal atirou uma banana em direção a Alves, que atuava pelo Barcelona. O jogador, por sua vez,  pegou a fruta, comeu e continuou a partida, ato visto e aplaudido como uma maneira de ignorar o racismo implícito naquele gesto, o que posteriormente rendeu a campanha #SomosTodosMacacos, capitaneada por Neymar.

Como a campanha teve forte presença nas redes, grande parte dos estudos relacionados a este caso estão diretamente ligados a ela. Neste estudo, no entanto, decidi entender como a imprensa relatou o ato ocorrido em campo em si e os desdobramentos dele, como forma de compreender esses padrões. Sendo assim, consegui identificar, por meio de uma análise linguística e sociológica, alguns destes pontos, que destaco a seguir:

Uma democracia racial imaginada

É possível perceber que há a dominação de um pensamento que visa fazer entender que há uma democracia racial no país. Esta democracia racial seria, assim, imaginada e repetida pela mídia de massa. Estes sentidos seriam impostos e preferidos neste consumo. Na famosa obra “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, a ideia da presença do negro no futebol, na visão das crônicas do autor, estaria colocando o povo negro em um patamar de celebração no Brasil – negros e brancos seriam iguais em campo, e, em consequência, na sociedade. Na mesma toada da campanha que sucedeu o ato, Daniel Alves tem sua atitude louvada por mostrar que está falando de igual para igual. E, de acordo com essa democracia racial imaginada, este é o padrão no qual os jogadores negros têm de se encaixar para não serem punidos – ou, até mesmo, banidos. Ser o negro que cabe no mundo dos brancos, como destacara Franz Fanon.

Embora este não fosse o exemplo em prática, considerando um histórico escravizado recente do povo negro e uma distância social entre negros e brancos carregando marcas deste histórico, pinta-se, portanto, uma ideia de que o processo de mestiçagem, fruto de uma tentativa de branqueamento da população, faz com que o Brasil seja um país no qual não se existe racismo. Entretanto, o racismo pelo fenótipos marcados, advindos da cor da pele, do formato do nariz, da espessura dos lábios, dos cabelos… Este se faz presente em uma sociedade que, ao mesmo tempo em que celebra a diversidade racial, afasta todos os elementos relacionados ao corpo negro de um padrão. 

No caso de Daniel Alves, sua característica enquanto homem pardo – fruto desta incensada mestiçagem – é ressaltado pelo discurso presente na mídia a todo momento. Sueli Carneiro, em “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil: consciência em debate”, ressalta o quanto é comum vermos este tipo de disparidade na mídia: a branquitude está sempre representada e retratada em toda a sua diversidade, enquanto o negro está sempre marcado a partir de estereótipos. A pluralidade do que é ser negro, portanto, é colocada debaixo de um tapete – e, no caso específico de Daniel, utilizada para suavizar o racismo sofrido, bem como trazer a imagem do jogador para um lado mais aceito da sociedade.

Foto: Reprodução Twitter

Negritude, força e masculinidade

Em parte das notícias analisadas, a adjetivação cumpre um papel crucial na segunda questão a ser discutida: a força e a inteligência de Daniel Alves ao lidar com o caso de racismo, muitas vezes interligadas com o fato de que houve um enfrentamento direto do jogador em relação à ação, por meio de um ato de reação à banana que lhe fora atirada em campo. Esta adjetivação contrasta com o ocorrido em casos de racismo nos quais o jogador aponta o fato de ter sido vítima. No corpus é possível observar que também é celebrada uma irreverência de Alves neste caso, diretamente relacionada com o “dar de ombros” para o racismo sofrido.

Nestes elogios, também há uma maneira de reforçar padrões esperados da masculinidade nos esportes de contato, sustentando não somente uma maneira desejada de se visualizar como um jogador lidaria com o racismo, mas também uma visão patriarcal de como o homem deveria se comportar em campo – uma máxima ainda mais potencializada pelo fato de se tratar de um homem negro, o que nos conecta diretamente com o padrão racista de suposição de que negros seriam mais fortes e resistentes. Esta força de Alves, como destacado, é bastante referenciada ao longo da análise.

Alves também é tido nestes discursos como uma espécie de negro-modelo, de um padrão a ser seguido no que diz respeito ao enfrentamento ao racismo no futebol. É interessante notar que no corpus há a fala de um entrevistado utilizada em uma matéria que compara o jogador com Mahatma Gandhi na Marcha do Sal – como se fosse este um gesto definitivo para colocar fim em uma questão latente. Este exemplo também esteve na capa da revista Veja que retratou o caso e afirmou que após o ato de Daniel “o preconceito quebrou a cara – talvez para sempre”.

Apagamento do racismo sistêmico

Nestes discursos, portanto, muito pouco entendemos do racismo como um problema sistêmico e, sim, algo feito por indivíduos específicos que pode ser combatido pelo indivíduo que o sofre, se este possuir estas mesmas “força e inteligência” celebradas. O racismo é tratado pelo discurso midiático como algo que existe, é dito por alguém que existe ou que é algo a ser combatido. Entretanto, sua condição de ato condenável é pouco destacada, tampouco suas consequências.

Há uma ideia geral de que Alves teria dado uma resposta “contundente” contra o racismo sofrido e que este ato, somado com a campanha #SomosTodosMacacos, que foi realizada após o ocorrido entendendo a situação a partir do problema – a suposta democracia racial existente no Brasil – seriam ações concretas para enfrentar este problema sistêmico (que em nenhum momento é tido como isso). Com isso, os discursos apagam e minimizam outros casos de racismo que tiveram desdobramentos diferentes.

A linguagem utilizada pelos discursos midiáticos, portanto, acaba operando para reforçar os padrões de representação acerca do racismo no futebol. O racismo seria um problema individual, os jogadores que não o enfrentam diretamente seriam tidos como fracos ou vitimistas e a sociedade brasileira seria um oásis de pluralidade racial no qual todos seriam iguais.

Do caso ocorrido com Alves para os dias de hoje, é possível perceber uma abertura maior – ainda que não tão grande quanto gostaríamos – para a discussão do racismo no futebol e na sociedade em si nos discursos midiáticos.

É um desafio futuro, portanto, procurar entender a evolução do tratamento deste assunto. Como a mídia de massa ainda tem papel relevante na construção de um pensamento coletivo, os padrões de representação do racismo em diversos momentos também podem nos informar, nas entrelinhas, o que pensamos coletivamente enquanto sociedade.

 

Referências

PIMENTA, Izadora Silva. O discurso midiático e o racismo no futebol: uma abordagem sistêmico-funcional para a análise dos padrões de Julgamento. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2019.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Izadora Silva Pimenta

Doutoranda em Digital Linguistics na Technische Universität Darmstadt. Doutoranda e Mestra em Linguística Aplicada na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bacharela em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2013). Bolsista de doutorado pelo Studienstiftung des deutschen Volkes. É integrante dos grupos de pesquisa MiDiTeS (Mídia, Discurso, Tecnologia e Sociedade) e SAL (Sistêmica, Ambientes e Linguagens). Seu interesse de pesquisa está voltado para o discurso midiático do futebol e suas instanciações de significados.

Como citar

PIMENTA, Izadora Silva. Padrões de representação do racismo no futebol no caso Daniel Alves. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 3, 2021.
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