151.5

Paisagem sonora

José Paulo Florenzano 6 de janeiro de 2022

No panorama musical do início da década de 1970, uma marcha futebolística expressava o clímax patriótico vivido pelo país com a conquista do tricampeonato. Escolhida entre mais de cem composições inscritas no concurso promovido pelas empresas de comunicação envolvidas na transmissão da Copa do México, “Prá Frente Brasil”, do publicitário Miguel Gustavo, logo ocuparia o topo das paradas de sucesso, esgotando rapidamente as cinquenta mil cópias distribuídas nas lojas de disco.[1]

Com efeito, a partir da Copa do Mundo ela passaria a animar os mais diversos eventos no Rio: desde a inauguração de trechos da Transamazônica, passando pelo desfile militar do 7 de Setembro até o baile de carnaval da elite carioca.[2] De fato, em fevereiro de 1971, as celebrações do Rei Momo no Sírio e Libanês transcorreram em meio à decoração baseada na campanha da Seleção Brasileira. Uma imensa tela instalada no salão projetava de tempos em tempos os gols do escrete nacional, enquanto no centro do palco Jairzinho comandava a marcha do tricampeonato. Onipresente, ela também ditava o ritmo nos bailes do Monte Líbano, onde, aliás, agentes do DOI-CODI encarregavam-se de zelar pela segurança dos ilustres convidados, enquanto a orquestra “repetia” a todo instante “Prá Frente Brasil”. [3] Mais do que a ubiquidade da composição, porém, o que chama atenção é o status oficial que lhe era atribuído pela ditadura militar.

Nesse sentido, no início de 1971, os ouvintes do noticiário a “Voz do Brasil” foram surpreendidos com a marcha futebolística na abertura, executada no lugar da ópera de Carlos Gomes, “O Guarani”, doravante deslocada para a seção do editorial no programa radiofônico.[4] Ecoando pelos mil alto falantes, a composição de Miguel Gustavo evocava a imagem de um país coeso, voltado para o futuro, unificado pelo projeto de poder representado pelo general-presidente Garrastazu Médici, o “torcedor número 1 do Brasil”, cujo radinho de pilha captava os acordes politicamente harmoniosos da canção do patriotismo engajado.[5]

Todavia, além de “Prá Frente Brasil”, a paisagem sonora do início da década abrigava também  “Eu Te Amo Meu Brasil”, a marcha composta pela dupla Don e Ravel.[6] Lançada na esteira do triunfo no México, a “musiquinha despretensiosa”, conforme a definia O Globo, obteve uma inesperada recepção do público.[7] Naquele começo de 1971, Don e Ravel compareceram à “Discoteca do Chacrinha”. À semelhança dos bailes carnavalescos, o auditório tinha sido decorado com “bandeirinhas e fitas” nas cores verde e amarelo, e,  de acordo com a reportagem de O Globo, Abelardo Barbosa iria “oferecer” ao general Médici o taipe da edição especial do programa, não por coincidência intitulado: “Noite do Eu Te Amo Meu Brasil”.[8]  

 Embora sem mencionar diretamente a conquista da Copa do Mundo, a marcha de Don e Ravel dialogava de uma forma muito evidente com a de Miguel Gustavo. Se esta, por exemplo, afirmava que o Brasil era “um só coração”, aquela reiterava o argumento, enfatizando que o “coração” possuía as cores: “verde, amarelo, branco, azul anil”. Porém, mais ainda do que a segunda, a primeira se desvelava como uma caixa de ressonância das palavras de ordem da ditadura militar, em especial, o famigerado “Ame-o ou Deixe-o”, ultimato que na letra da canção recebe a resposta afirmativa: “Eu vou ficar aqui/ Porque existe amor”. A exortação política à “juventude do Brasil” não podia ser mais clara, conquanto formulada em meio à pobreza estética de uma composição alinhada com o ufanismo patriótico do período.   

As duas marchas, a rigor, contribuíam para a adesão do público ao imaginário autoritário do Brasil Grande, embutindo uma pedagogia política em perfeita sintonia com os ensinamentos que a ditadura militar elaborava e difundia pelo país. De fato, como havia salientado o filósofo italiano Antonio Gramsci, a instituição escolar se constitui em uma organização cultural chave na batalha ideológica travada pelos grupos que disputam a hegemonia na sociedade.[9] Não admira, portanto, que o desfile de mais de vinte mil alunos das escolas públicas e privadas do bairro de Madureira, na Zona Norte, realizado dentro das comemorações da Semana da Pátria, tenha ocorrido sob ao som das marchas “Prá Frente Brasil” e “Eu Te Amo Meu Brasil”, executadas pelas bandas da Polícia do Exército e da Polícia Civil.[10]  Miguel Gustavo, aliás, dizia-se muito orgulhoso de ver a “garotada” hastear a bandeira nacional nos colégios da cidade, “cantando minha marchinha.”[11] O Globo, por sua vez, registrava a promessa feita pelo governo federal de converter “Eu Te Amo Meu Brasil” em “hino escolar”, introduzindo a canção no primeiro e no segundo graus para complementar as lições da disciplina de Educação Moral e Cívica.[12]  

Esta breve análise da paisagem sonoro dos Anos de Chumbo, no entanto, ficaria incompleta se não mencionássemos uma terceira canção cujo impacto não foi menor do que o provocado pelas referidas marchas. No final de 1970, selando uma guinada musical iniciada dois anos antes, no momento  em que se distanciava da Jovem Guarda para enveredar por um linha melódica centrada na canção romântica, Roberto Carlos lançaria “Jesus Cristo Eu Estou Aqui”.[13]

Com mais de duzentas e sessenta mil cópias vendidas em poucos meses, a canção obteve rapidamente o primeiro lugar nas paradas de sucesso, deixando, contudo, um rastro de discórdia no seio da Igreja Católica.[14] Criticado pela ala mais conservadora que a julgava um sacrilégio, ela, no entanto, era reivindicado pela ala mais “moderna” que a encarava como uma oportunidade de promover a renovação do culto e de incrementar a difusão da fé.[15]  A polêmica, a rigor, transcendia os limites da instituição religiosa e ganhava as passarelas do samba. Às vésperas do carnaval de 1971, o Rei Momo vinha a público exortar os foliões a se absterem de cantar a música de Roberto Carlos, “porque isso representa um desrespeito às nossas tradições religiosas”.[16] Em Niterói, o responsável pela Delegacia de Costumes prometia coibir a heresia:

Toda pessoa que usar fantasias imitando hábitos religiosos ou tentar cantar a música “Jesus Cristo Eu Estou Aqui” durante o carnaval, nas ruas ou nos clubes, será imediatamente presa e, depois, submetida a processo”.[17]

Ao mesmo tempo em que era censurada pela polícia moral e recebia críticas da hierarquia religiosa, a canção de Roberto Carlos despertava e atraía o interesse de grupos sociais muito diversos entre si, tais como os fiéis da igreja, os foliões do samba e os hippies do rock, neste último caso, diga-se de passagem, prenunciando o advento de um gênero musical destinado a ocupar um lugar de relevo na indústria cultural.[18] Com efeito, reunidos em Guarapari, no Espírito Santo, onde se realizava o Festival de Verão – a versão brasileira malsucedida de Woodstock – os adeptos da contracultura exibiam uma cruz na areia da praia em que haviam se instalado, acreditando, dessa maneira, esconjurar a ameaça da repressão.[19] A performance de um hippie suíço, ajoelhado diante dos policiais, mãos erguidas em direção ao céu, cantando “Jesus Cristo Eu Estou Aqui”,  revelar-se-ia inútil. O errante navegante, perdido na ditadura latino-americana, passaria a noite na cela de uma cadeia em Guarapari. Ali, talvez, lhe chegassem pelas ondas do rádio os versos da canção que o deixara em transe:[20]

Olho pro céu e vejo/ Uma nuvem branca que vai passando/ Olho na Terra e vejo/ Uma multidão que vai caminhando/ Como essa nuvem branca/ Essa gente não sabe aonde vai/ Quem poderá dizer o caminho certo/ É Você, meu Pai.

A canção anunciava o reino do pastorado cristão, isto é, o poder encarregado de governar as condutas das pessoas que “não sabem aonde ir”.[21] Tal parecia ser o caso, à época, do jogador Edu, do América Carioca, acuado pelas críticas que lhe eram endereçadas pela comissão técnica, pela crônica esportiva e pelo público torcedor. Em sua residência no bairro de Quintino, na Zona Norte, ele recebia a reportagem do Jornal dos Sports para explicar a crise de identidade que o afligia. Antes de iniciar a entrevista, o jogador pôs na vitrola da sala a música de Roberto Carlos, observando que ele era “o homem certo para dar os recados ao povo.”[22] Não estamos tão distantes assim dos Atletas de Cristo. Na segunda metade da década de setenta, os “irmãos” perdidos nos gramados de jogo atenderiam o chamado – como profetizava outro verso da mesma canção -, “aumentando sempre essa procissão.”


[1] Cf. Ângelo, Assis. “A presença do futebol na música popular brasileira”. São Paulo, O Autor, 2010, p.56.

[2] Cf. “Data reúne Armas e Povo”, O Estado de S. Paulo, 8 de setembro de 1970. Segundo a reportagem, “Prá Frente Brasil” foi a “marcha mais executada” no desfile militar de Brasília.

[3] Cf. “No Sírio o reforço da alegria” e “No Monte Líbano, polícia e bermuda”,  Jornal do Brasil, 25 de fevereiro de 1971.

[4] Cf. “´Prá Frente Brasil` toma lugar de ´O Guarani` no programa ´Voz do Brasil`”, Jornal do Brasil, 6 de abril de 1971.

[5] Sobre a expressão, “torcedor número 1 do Brasil”, ver “Médici cumprimentou atletas”, O Globo, 25 de outubro de 1971.

[6] Eustáquio Gomes de Faria e Eduardo Gomes de Faria, conhecidos como Don e Ravel, eram dois compositores cearenses, autores de diversa canções, como, por exemplo, “A Charanga”, cantada por Vanderléa no Festival da Canção de 1970. Ver também Ângelo Assis, op. cit., p.31.

[7] Cf. “Don e Ravel podem ganhar um carnaval de músicas fracas”, O Globo, 19 de fevereiro de 1971.

[8] Cf. “Chacrinha levará ´tape` da discoteca a Médici”, O Globo, 21 de janeiro de 1971.

[9] Gramsci, Antonio. “Cadernos do Cárcere”. Vol. I. “Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce”. 3º ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, p.112.

[10] Cf. “Prá Frente”, O Globo, 6 de setembro de 1971.

[11] Cf. “Autor de ´Prá Frente Brasil` quer povo cantando nas ruas”, O Globo, 23 de junho de 1970.

[12] Cf. “Chacrinha levará ´tape` da discoteca a Médici”, O Globo, 21 de janeiro de 1971.

[13] Cf. Napolitano, Marcos. “´Seguindo a canção`: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969)”. São Paulo, Annablume/Fapesp, p.101

[14] Cf. “Para Roberto, ´Jesus Cristo` é uma oração de paz e amor”, O Globo, 23 de dezembro de 1970.

[15] Cf. “Roberto Carlos, eu estou aqui”, O Globo, 23 de janeiro de 1971. “Arcebispo proíbe ´Jesus Cristo` em Igreja de Botucatu”, 7 de fevereiro de 1971 e “Igreja condena ´Jesus Cristo` em roupas e bailes”, 14 de fevereiro de 1971, ambas as matérias publicadas no Jornal do Brasil.  

[16] Cf. “Momo quer omissão de ´Jesus Cristo`”, Jornal do Brasil, 13 de fevereiro 1971.

[17] Cf. “Estado do Rio prende quem cantar ´Jesus Cristo`”, O Globo, 10 de fevereiro de 1971.

[18] Sobre o Rock de Cristo, ver Costa, Márcia Regina da. “Tribos urbanas, comunidade Zadoque e os Carecas de Cristo”. In: “Ciências Sociais na atualidade: percursos e desafios”. Teresinha Bernardo e Silvana Tótora (organizadoras). São Paulo, Cortez Editora, 2003, Conforme assinala a antropóloga, p.246: “em São Paulo, a primeira igreja a utilizar o rock para atrair os jovens, tendo como foco os hippies e os usuários de drogas, foi a igreja evangélica Cristo Salva, fundada em 1975 por Cássio Colombo”.  

[19] Cf. “Festival enche Guarapari de ´hippies`”, Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 1971.

[20] Cf. “Polícia invade acampamento em Guarapari para prender ´hippie` e promove tumulto”, Jornal do Brasil, Wilson Costa, Silvio Bocanera e Ari Gomes, 14 de fevereiro de 1971

[21] Sobre o poder pastoral, ver Foucault, Michel. “Território, Segurança, População”. Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, Martins Fontes, 2008.

[22] Cf. “Edu: respeito cabelos brancos”, entrevista a Vitor Iorio, Jornal dos Sports, 18 de maio de 1971. 

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Paisagem sonora. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 5, 2022.
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