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Palestra Sinistro: palmeirenses progressistas contra a despolitização

Mariana Mandelli 7 de dezembro de 2020

A série “Práticas torcedoras em territórios palmeirenses” é baseada na dissertação de mestrado de Mariana Mandelli, intitulada “Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso” (Antropologia-USP, 2018). A pesquisa de campo foi realizada entre 2015 e 2017 nos arredores do Allianz Parque com o objetivo de investigar os efeitos da modernização do estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras entre a torcida. Confira a série de textos aqui.

Foto: Mariana Mandelli

Entre maio e junho deste ano[1], mesmo durante a pandemia, atos de torcedores na Avenida Paulista foram pauta de diversos veículos de imprensa. Marchando em defesa da democracia e da ciência e, consequentemente, contra o presidente Jair Bolsonaro, os protestos reuniram principalmente palmeirenses e corintianos de diversos coletivos políticos das respectivas torcidas, que levaram suas bandeiras e faixas para a frente do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MASP).

Nas manifestações, que também aconteceram em outras capitais e envolveram torcedores de outros clubes, a presença de grupos antifascistas[2] foi preponderante. Vale lembrar que, naquele momento, o antifascismo[3] foi também foi pauta da mídia tradicional e, com o crescimento do interesse sobre o tema, as redes sociais foram invadidas por avatares de usuários se dizendo antifascistas, como maneira de se manifestarem contra as sucessivas decisões necropolíticas do governo federal.

Foi nesse contexto que surgiu o movimento Palestra Sinistro. O nome remete à origem do Palmeiras, fundado em 1914 como Palestra Itália[4], e a ideias progressistas (sinistra, em italiano, significa esquerda). Com poucos meses de vida, o coletivo é formado por cerca de 200 palmeirenses, que se organizam de forma virtual em diversos braços dentro do grupo, como o feminista, o antirracista, o político, o cultural e o social, este responsável por preparar as ações que compõem a atuação do grupo nas redes sociais ou nas ruas, como foi o caso da presença nas manifestações dos últimos meses.

Imagem: Reprodução Facebook

O manifesto de fundação do Palestra Sinistro, assinado por mais de 500 pessoas, afirma:

[…] As nossas bandeiras são pintadas com o suor de homens e mulheres, brancos, negros, índios, de todos os credos, de brasileiros e estrangeiros. Viemos de todos os rincões deste País, viemos de todas as quebradas e nosso grito não se calou e não vai se calar.

Nossas bandeiras são tremuladas com a cor da inclusão social, são tremuladas pela força de nosso grito que pede respeito à democracia e ao direito de opinião. Nossas bandeiras são tremuladas pelo clamor de nossas gargantas que não se calam pelo direito ao trabalho, à moradia, à saúde e educação, nossas bandeiras tremulam pela razão de ter e ser um Palmeiras, gigante e de todos e todas.

Brigamos contra a imposição do sistema, levamos o Verde, de nossas camisas e de nossas bandeiras, em nossas vidas, é um lema, e a nossa união nos permitiu termos dignidade. Quiseram nos acabar, ressurgimos mais fortes, estamos presentes em todos espaços, participamos de manifestações populares, sejam elas culturais ou políticas, somos parte dos excluídos, lutamos por nossas ações sociais, cantamos contra a opressão nos estádios, e nada nos fará calar.

[…] Repudiamos todos aqueles que negam esta história, mas que a usam, esquecendo de como nascemos e nos fortalecemos, repudiamos aqueles que não têm a capacidade de entender o significado de democracia e tentam, à força, ressignificar nossa história, repudiamos a violência, a intolerância, a mentira e não vamos nos calar. Somos arquibancada, somos torcedores, somos pela vida, somos pela ciência, somos sempre PALMEIRAS[5].

Foto: Reprodução Facebook

Com o objetivo de compreender a atuação do grupo no âmbito da minha pesquisa sobre as práticas torcedoras dentro do Palmeiras, conversei com um membro do Palestra Sinistro, a quem vou chamar neste texto de Victor[6]. Nosso contato se deu por meio das redes sociais, uma vez que, como se sabe, as torcidas estão vetadas nos estádios durante a pandemia.

Segundo ele, todos os integrantes e simpatizantes do grupo identificam-se com posicionamentos políticos vinculados à esquerda – declaram-se socialistas, marxistas e anarquistas. As motivações do Palestra Sinistro podem ser classificadas em duas esferas que estão relacionadas: a sistêmica e a clubística. No caso da primeira, por meio da sociabilidade torcedora, o coletivo busca debater e informar, especialmente em seus canais nas redes sociais, sobre temas correlatos à injustiça e desigualdade social, tais quais: “trabalho e salário dignos para todos, saúde pública universal e de qualidade, moradia digna, lazer, educação que nos permita evoluir e não ser alienado, etc”, nas palavras do próprio Victor.

Em relação ao Palmeiras, os membros do grupo afirmam que defendem bandeiras como o ingresso popular, o fim do cerco[7] em torno da arena e o fim da elitização da torcida, processo intensificado desde a inauguração do Allianz Parque, em 2014.

Nas palavras de Victor:

Nosso objetivo é conscientizar o maior número possível de pessoas que, se não lutarmos pelos nossos direitos ou ficarmos elegendo mitos, nossa realidade vai seguir sendo cruel para nós, trabalhadores. Vivemos um momento de retirada de direitos conquistados com muita luta e sangue pelos que vieram antes nós, e entendemos que só conversando com os nossos, conseguiremos nos unir em busca da sociedade justa que queremos.

Foto: Reprodução Facebook

Como as pautas do Palestra Sinistro são comuns a outros coletivos palmeirenses, Victor afirma que o grupo atua em conjunto com todos e todas que se alinhem a ideias progressistas e que tenham como foco o combate à extrema direita, como é o caso do Porcomunas, por exemplo. De acordo com Victor:

Nós nos relacionamos com todos os torcedores, sejam das organizadas ou não, que tenham um pensamento progressista, e coletivos como o Porcomunas, Ocupa Palestra, os camaradas da P16, da Mancha, T.U.P., Rasta, etc. Nosso movimento é novo, mas conta com camaradas com muitos anos de caminhada nos movimentos sociais e na arquibancada, e estamos com todos os palmeirenses dispostos a somar força nessa luta.[8]

Victor afirma que grupos como o Palestra Sinistro também servem para mostrar a multiplicidade de posicionamentos e ideologias dentro da torcida palmeirense, a quem vem sendo imposta, por torcedores de outros clubes e por parte da imprensa, a pecha de torcida direitista[9], especialmente após o título do Campeonato Brasileiro de 2018, quando Bolsonaro esteve presente no gramado, segurando a taça ao lado do elenco palmeirense. O episódio populista foi intensamente publicizado pelo presidente, que afirma ser torcedor do Palmeiras[10].

Para Victor, a torcida do Palmeiras não é diferente da sociedade em geral: é plural e diversa: 

Existem palmeirenses de todos os espectros políticos, os socialistas, anarquistas, comunistas, sociais democratas, liberais, centristas, direitistas, isentões, alienados politicamente e tudo o mais, assim como tem nas torcidas de todos os clubes do País. […]  Querer ligar a extrema direita à nossa torcida e história é, no mínimo, muita desonestidade intelectual. Em São Paulo tem um clube muito mais ligado à elite fascista e muito beneficiado na ditadura, que curiosamente não leva essa pecha.

Ao ser questionado sobre como ele e os outros membros do Palestra Sinistro enxergam o rótulo direitista atribuído à torcida do Palmeiras, ele afirma se tratar de desconhecimento histórico:

Entendemos que sempre houve uma perseguição por parte da mídia burguesa e de alguns rivais que, já na época do Palestra Itália, perseguiam o clube e os torcedores com mentiras e agressões aos “italianinhos”. Tentaram tomar o nosso estádio na Segunda Guerra Mundial, fizeram o clube mudar de nome e hoje tentam manchar nossa história e da nossa torcida que também tem histórico de lutas na esquerda, desde a Greve Geral de 1917, passando pelo Fora Collor, os atos contra o Golpe de 2016 e agora contra o “Bozo” e seu governo bizarro e esse sim, fascista. […] O Palestra era operário, foi formado por estudantes e trabalhadores.

Foto: Reprodução Facebook

De fato, o conteúdo da fala de Victor é corroborado por pesquisas como a do antropólogo José Renato de Campos Araújo, cuja dissertação de mestrado denominada Imigração e Futebol: O caso Palestra Itália, defendida na década de 90, traça um panorama da fundação do clube e do contexto histórico e político que suscitou a troca de nome do Palmeiras. Vale destacar, porém, que tal narrativa não é consenso entre historiadores.

Movimentos como o Palestra Sinistro vêm surgindo em outras torcidas como uma maneira de aproveitar a sociabilidade torcedora para além dos estádios. Em um momento em que as torcidas estão privadas de manifestarem suas formas de torcer durante as partidas, é ainda mais interessante observar a atuação desses coletivos justamente porque eles invertem uma das maiores falácias proferidas pelo senso comum das arquibancadas e redes sociais: aquela que insiste na ideia de que futebol e política não se misturam. Esses grupos mostram que não só se misturam como estão totalmente relacionados desde a fundação dos clubes para os quais todos os torcedores, de todas as posições políticas, torcem.

 

Notas

[1] Ler em Palmeirenses se unem a corintianos em protesto contra Bolsonaro na Paulista. UOL Notícias, 31 de maio de 2020. Acesso em 5 de dezembro de 2020.

[2] Ler em Torcidas antifascistas marcam ato contra Bolsonaro em várias capitais. UOL Notícias, 2 de junho de 2020. Acesso em 5 de dezembro de 2020.

[3] Sugestão de leitura sobre o tema: As recentes manifestações de torcidas antifascistas no Brasil. Ludopédio, 11 de junho de 2020. Acesso em 5 de dezembro de 2020.

[4] Como se sabe, o Palmeiras mudou de nome em 1942 por pressão política originada no contexto da Segunda Guerra Mundial.

[5] O manifesto pode ser lido na íntegra na página do grupo no Facebook. Acesso em 5 de dezembro de 2020.

[6] O nome do meu interlocutor foi trocado com a finalidade de proteger a sua identidade.

[7] Desde outubro de 2016, o Palmeiras impõe um cerco em volta do Allianz Parque em dias de jogo, permitindo a passagem apenas de torcedores com ingressos para a partida do dia, impedindo assim a livre circulação, o direito de ir e vir e a aproximação de palmeirenses sem entradas.

[8] Mancha Verde, T.U.P. e Rasta Alviverde são as principais torcidas organizadas do Palmeiras.

[9] Um artigo que denota tal opinião é este: O Palmeiras é o clube perfeito para o Brasil de Bolsonaro. Revista Vice, 3 de dezembro de 2018. Acesso em 5 de dezembro de 2020.

[10] Fotos de Bolsonaro com camisas de diversos times, inclusive do Corinthians, podem ser facilmente encontradas na internet.

 

Referências

ARAÚJO, José Renato de Campos. Imigração e futebol: o caso Palestra Itália. 1996. 179 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Palestra Sinistro: palmeirenses progressistas contra a despolitização. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 18, 2020.
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