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Pandemia, Política e Futebol (parte I): chave de leitura e paralisação

Fabio Perina 27 de janeiro de 2022

“O futebol, que há muito já frequentava uma bolha social, apartado das mazelas mundanas, resolveu que forjaria sua própria bolha sanitária para seguir em frente, mesmo com arquibancada vazia, mesmo que o campo de jogo estivesse a poucos metros de um hospital de campanha. E, apesar de iniciativas pontuais de suspensão dos jogos em algumas cidades, mesmo hoje a catástrofe sanitária que vivemos parece incapaz de comover clubes e federações.”

A proliferação da pandemia do coronavírus no início de 2020 levou à paralisação generalizada do futebol mundial em meados do mês de março. Uma paralisação que durou alguns meses, variando conforme países e campeonatos, levando a uma ampla incerteza nos mais diversos aspectos objetivos e subjetivos. Assim como um amplo debate para encontrar soluções sanitárias, financeiras e esportivas para salvar o futebol brasileiro.

Covid Pandemia
Jogadores do Grêmio realizam teste para Covid-19. Foto: LUCAS UEBEL/GREMIO FBPA/Fotos Públicas

CHAVES DE LEITURA: “bolha”, “normalidade” e “aceleracionismo”

A categoria de “bolha social” foi farta nas análises mais engajadas que me deparei e a adoto como a principal chave de leitura. Acrescento ser uma “bolha” em um duplo sentido: não somente diante do futebol “protegido” do seu entorno social, mas dentro do próprio futebol dos sujeitos dominantes “protegidos” diante dos sujeitos dominados como jogadores pobres e principalmente funcionários e torcedores.

Não bastam as federações brasileiras e sul-americanas alegarem que o basquete da NBA ou a Champions League da UEFA deram certo na retomada das partidas ao criarem um modelo rigoroso de isolamento e testagem. Porém, a transferência desse protocolo “bolha” para o futebol brasileiro é bastante questionável. Pois em um país continental como o nosso já se parte de imensos obstáculos logísticos quanto a reduzir deslocamentos. Além do obstáculo temporal do calendário de competições estaduais, nacionais e continentais que se cruzam a cada semana (exigindo um imenso acordo para que cada competição fosse jogada por completa de uma única vez para somente depois reiniciar outra!). Assim como sobretudo é bastante questionável eticamente se em um país (ou em partes de seu território) a população padece com a falta de profissionais de saúde e implementos sanitários, enquanto por contraste o futebol articule seu enorme poder econômico e político, alegando ser “serviço essencial”. E com isso mobilizar uma verdadeira força-tarefa que desloque esses dois recursos escassos que deveriam ter como prioridade grupos mais vulneráveis (física e socialmente) diante da pandemia.

Assim como houve uma estratégia recorrente em todo o seu período ao explorar esse efeito ideológico de simular uma “normalidade”. É o que se verifica no futebol brasileiro durante a pandemia com a intensa aproximação de dirigentes, políticos (sobretudo da extrema direita) e eventualmente algumas autoridades em uma mútua conveniência por um calendário saturado de partidas. É uma aposta para que assim jogadores e funcionários tenham um excesso de ocupação (e os torcedores uma certa distração) para não se mobilizarem por assuntos políticos que dizem respeito às suas categorias, ao futebol e à sociedade. Assim como em uma mútua conveniência de anular e sabotar os esforços preventivos de outras autoridades.

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Protocolo de segurança de prevenção à Covid-19
no Estádio Olímpico do Pará, o Mangueirão. Foto: Jader Paes / Agência Pará/Fotos Públicas

Não adianta os dirigentes afirmarem que estão preocupados com a saúde dos atletas se, ao mesmo tempo, querem reconduzi-los ao campo num período tão arriscado no enfrentamento à epidemia. Além de poucos clubes terem cacife para bancar todo o protocolo, a complexidade de uma partida de futebol (ainda que sem público) envolve centenas de profissionais. Sendo que muitos deles, a parte mais vulnerável da cadeia produtiva na indústria do esporte, estarão expostos nos deslocamento ao trabalho, convertendo-se em potenciais disseminadores do vírus a seus familiares (vide motoristas). A essa altura, o principal debate não deveria ser a retomada dos campeonatos no curto prazo, mas sim a criação de uma força-tarefa, liderada por FIFA e CBF, que garantam, com suas confortáveis reservas financeiras, a proteção de empregos dos trabalhadores que não têm o mesmo respaldo dos atletas no topo da pirâmide.

Diante de debates mais amplos entre futebol e política, é possível traçar um forte paralelo simbólico entre de um lado a CBF se negou a criar seu próprio auxílio (ou pelo menos linhas de crédito) a clubes pequenos e médios; enquanto de outro lado o governo federal (no campo político da extrema-direita) com Bolsonaro e Guedes usaram todos os recursos burocráticos para dificultar (ou em alguns períodos até negar) auxílio emergencial aos mais vulneráveis. Nesses clubes, seus atletas e funcionários (e também acrescentar árbitros e outros profissionais envolvidos em uma partida) passando a ficar tão vulneráveis quanto a maioria dos trabalhadores de outras áreas. Prevalecem como palavras de ordem implícitas que um “basta deixar trabalhar” se aproxima de um “basta deixar jogar”. Como se isso fosse apenas solução para a economia enquanto a saúde pública deixa de ser prioridade. Em outros termos, se chegou a um forte vínculo atual no futebol entre a “bolha” sanitária como recurso paliativo de controle para a sua continuidade (apostando na retórica dos protocolos “autossuficientes”) e “bolha” social se negando a parar!

Em suma, negacionismo para a saúde e aceleracionismo para o espetáculo! Embora os dois termos funcionem em mútua dependência, usarei daqui em diante preferencialmente o segundo pois, ao que parece, ficou menos banalizado que o primeiro. Afinal os dirigentes de clubes e federações superficialmente não se assumem negacionistas ao terem encontrado o pretexto de um discurso vazio que “estamos cumprindo todos os protocolos”. O que os permite serem coniventes com o aceleracionismo.

A responsabilidade das federações em outro traço definidor desse aceleracionismo ocorre tanto com um retorno prematuro das partidas quanto com a obsessão em cumprir os calendários (e indiretamente honrar os contratos comerciais, pois os direitos de transmissão são a fonte de receitas mais lucrativa no futebol) em uma situação tão excepcional para o mundo todo. Ora, por anos em discursos dispersos de vários sujeitos se reclamou da irracionalidade do calendário do futebol brasileiro, porém agora sequer as federações aproveitaram a oportunidade de estabelecer prioridades (ainda que temporárias). Se o Campeonato Brasileiro permanece em seu modelo fechado “ideal” que precisa ser em 38 rodadas, a CBF não o flexibilizou para um encurtamento. Seguindo na pretensão de ser a dona absoluta de tudo sem ser questionada por nada. Nem em 2020, quando insistiram em espremer a tabela para caber em um calendário anual encurtado. Nem em 2021, quando se sacrificou as férias dos jogadores para emendar uma temporada na outra. Assim como no desenrolar de 2021 se sacrificou o descanso entre as partidas caindo de 72 para 48 horas dos principais jogadores para cumprir tabelas infindáveis de torneios de clubes e seleções. Ou seja, as federações preferiram evitar o encurtamento de seus torneios para evitar litígios contratuais com patrocinadores e com isso sacrificaram a qualidade do jogo dentro de campo (pois encurta muito os períodos de treinamento e recuperação) e até a relevância de tantas partidas banalizadas. É até curioso pensar que surge mais uma evidência da inoperância dos dirigentes de clubes diante dos dirigentes de federações, quem insistem em torneios estaduais em sua maioria pouco atrativos, deficitários e que sequer tiveram redução de datas.

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Preparativos no Mangueirão para volta do Parazão 2020. Foto: ASCOM / SEEL/Fotos Públicas

PARALISAÇÃO

A breve lista abaixo visa levar em conta um breve mapeamento da correlação de forças dos principais sujeitos sociais do futebol aplicado às principais disputas políticas. Sobre o marco temporal, levanto como hipótese que os elementos a seguir se esboçaram discursivamente nos primeiros meses da pandemia (sobretudo de março a julho de 2020 quando a maioria dos clubes não entrou em campo) e logo se estabilizaram nos meses seguintes (quando tiveram que novamente dividir espaço no noticiário esportivo com o dia-a-dia das partidas). E mais, em alguma medida tratam mais de continuidades e aprofundamentos da situação pré-pandêmica ao invés de algo totalmente novo. Alguns desses processos recorrentes:

  • Burocratização: dirigentes (nos mais diversos escalões) tomando todas as decisões quanto à organização do futebol sem levar em conta a participação dos demais sujeitos dessa cadeia produtiva do esporte. A questão recorrente nas próximas reflexões quanto aos protocolos sanitários (reforçando a categoria de “bolha” já apresentada) tem a ver com essa burocratização no sentido da exclusão da transparência e do controle externo do restante da sociedade civil. Como veremos, o protocolo passou a ser a principal ferramenta de chantagem de dirigentes a jogadores terem que entrar em campo (mesmo com diversos elencos desfalcados por contágios) sob risco de perder por W.O. e com isso possivelmente terem ampla contestação da maioria dos torcedores e da oposição na política interna do clube;
  • Judicialização: A justificativa sanitária veio como oportuna ocasião para aprofundar a prévia “guerra de liminares” jurídicas e remoções aleatórias de partidas. O que a meu ver foi uma excessiva judicialização do futebol não apenas nos últimos anos, mas até nas últimas décadas. Evidente que o cotidiano da pandemia foi com frequência também judicializado diante de atritos federativos na atribuição de responsabilidades entre os diversos órgãos. O que por algum tempo nos primeiros meses da pandemia pareceu ter sido o único obstáculo provisório ao aceleracionismo irresponsável dos dirigentes dos clubes (e principalmente das federações) que quiseram o retorno das partidas de qualquer jeito, recorrendo a todo tipo de relativismo jurídico (tanto ideológico quanto na articulação junto a autoridades aceleracionistas) para forjar o futebol como o privilégio de “serviço essencial” em relação a outros setores. Como “cereja do bolo” desse processo tão perverso, após cerca de um ano e meio de pandemia ocorreu o ápice desse absurdo justamente paralisando e suspendendo um Brasil x Argentina logo em seu início. Caso que analisei em texto anterior;
  • Exploração e vulnerabilidade econômica dos jogadores: a imensa maioria dos trabalhadores do futebol (jogadores e principalmente funcionários) diante dos seus clubes encontrando obstáculos ainda maiores. Nos clubes grandes o problema mais crônico foi a demissão de funcionários e os atrasos de salários dos jogadores. Já nos clubes pequenos e médios, o problema mais crônico foi a demissão de jogadores. O topo dos jogadores poderia discutir (mas não o faz) uma redução no seu calendário anual para ter mais tempo para descansar e treinar e com isso uma melhora técnica nas partidas. Já a base dos jogadores luta por ampliar um calendário (que até antes da pandemia ao invés de anual era na prática trimestral por conta dos estaduais) que seja pelo direito de trabalhar apenas no futebol sem precisar de outros “bicos” (por isso a sua citada condição semi-amadora). Algo que a partir da pandemia se agrava mais do que nunca. Assim como uma analogia no restante da sociedade na qual muitos trabalhadores anônimos se viram forçados a estar juntos retoricamente à elite econômica com uma obsessão generalizada de “não pode parar”. Em suma, a desigualdade esportiva e financeira entre os clubes parece corresponder à desigualdade na condição de trabalho entre os jogadores. Acrescentar que os estádios com portões fechados estrangulam muito mais os clubes pequenos e médios do que os grandes, pois seu faturamento de bilheteria tem mais peso relativo diante de seu faturamento total, diante de outras fontes mais avançadas serem insuficientes.
  • Ação política objetiva débil dos jogadores: em linhas gerais, se é improvável a articulação dos trabalhadores do futebol por suas demandas em seus próprios clubes e federações, o problema se amplia no sentido da ainda mais improvável articulação nas disputas políticas parlamentares. Ou seja, em um campo de grande proximidade entre políticos e dirigentes (e indiretamente sem se esquecer de empresários), as principais decisões tenderam a preservar os sujeitos dominantes ao invés dos dominados diante da crise econômica dos clubes agravada pela pandemia. As federações se beneficiaram mais uma vez da sempre controversa interpretação do princípio da autonomia esportiva que as protegem de intervenções políticas, mesmo que seja para benefício dos seus membros (o que por exemplo autoriza que as federações, sobretudo a CBF, façam o que bem entenderem de seus lucros, independente das necessidades dos clubes). Enquanto os clubes se beneficiaram da imediata suspensão dos pagamentos das parcelas do Profut e da posterior tramitação do projeto de clube-empresa (como veremos em outra parte) como recursos para perpetuar a sua inadimplência. E sobretudo foram protegidos de que a esses privilégios se inserisse alguma contrapartida, como uma possível proibição de atrasar salários ou demitir seus trabalhadores. Assim como outras perdas de direitos nas áreas de INSS e FGTS que fazem a condição do jogador de fora da elite futebolística se aproximar de um trabalhador geral submetido à reforma trabalhista dos últimos anos.
  • Ação política subjetiva débil dos jogadores: e claro, proporcional aos fatores anteriores da imensa dificuldade de articulação política dos jogadores, a omissão e até negação dos principais jogadores da elite futebolística diante de causas da própria categoria e causas sociais as mais diversas. Em linhas gerais, uma parte da explicação da desunião da categoria dos jogadores, é que para a base a sua vulnerabilidade econômica faz com que não possam se manifestar. Já para o topo, que até poderia se manifestar, não o faz para evitar a exposição de sua imagem podendo ser contestada por dirigentes e patrocinadores ao acreditarem que isso prejudicará suas carreiras no futuro ao serem vistos como “rebeldes”. Ficaram mais dedicados em ocuparem seu tempo ocioso de isolamento doméstico nos primeiros meses de pandemia jogando torneios de videogame e mobilizando “torcidas” por reality shows de entretenimento e desafios on-line compartilhados entre si (como embaixadinha com papel higiênico)! O resultado disso nas fases seguintes dessa nossa periodização proposta foi de muitos jogadores infectados e lesionados diante do excesso de partidas e debilidade de protocolos. Porém quase nada se viu de mobilização da categoria por melhores medidas de saúde e melhores condições de trabalho, vide um calendário mais sensato que não emendasse 2021 a 2020 sem férias! Foram raríssimas as vozes de contraponto e descontentamento a esse estado de coisas.
    Terminado o período de paralisação, irei tratar nas próximas duas partes sobre as temporadas de 2020 e 2021 de bola rolando em meio à pandemia.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Pandemia, Política e Futebol (parte I): chave de leitura e paralisação. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 26, 2022.
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