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Pandemia, Política e Futebol (parte II): TEMPORADA PANDÊMICA I

Fabio Perina 10 de fevereiro de 2022

“El fútbol sin público es otro deporte. No podría ver un partido así, me haría mal. Nací hincha antes que futbolista y ver un estadio vacío, me hace mal.” (Cesar Luis Menotti)

“Protocolo fala de normas, de regras, de controle, de processos que precisam ser estabelecidos para que nada escape da ordem. Não é surpreendente que o futebol moderno esteja tão enamorado dessa palavra. Hoje temos protocolo para tudo: da entrada em campo, passando pelas entrevistas pós jogo, pelas entrevistas nos intervalos, para a forma como um gol pode ou não pode ser celebrado”

Sobre os dominados: os torcedores

Ora, se os últimos anos já eram péssimos com a expansão do cenário da torcida única, diante da pandemia mundial surge um cenário ainda mais desolador para os torcedores: os portões fechados. O que alguns mais inocentes (ou cinicamente privilegiados) somente passaram a ver na pandemia como uma novidade, na verdade é um aprofundamento do que já havia sido iniciado. Ou seja, diante da chave de leitura proposta anteriormente de “bolha”, ela encontra mais coerência com a maioria dos processos que incidem sobre os torcedores de uma exclusão da maioria para privilegiar minorias cada vez mais reduzidas no acesso aos estádios (que depois de se tornarem arenas se parecem agora cada vez mais a camarotes).
Aliás, soa muito contraditório o tanto que dirigentes e autoridades se esforçaram nos últimos anos em proibir a entrada de materiais festivos junto de seus torcedores nos estádios, porém agora sem os torcedores liberam exatamente todos os mesmos materiais! O que é péssimo pelo direito de torcer e pior ainda pelo direito de protestar. Pois qualquer estética de faixas e bandeiras em estádios deve passar pela aprovação do clube (sem permitir improvisos nem transgressões).

“Vários clubes já aceitaram que as ligas devem voltar sem torcida, mas para compensar vão fazer sons artificiais e torcedores artificiais – e claro que poderemos pagar para ter nossos avatares no estádio. (…) E, para piorar, agora os torcedores são totalmente substituídos por papelões e caixas de som, enquanto os jogadores jogam um jogo estranho sem contato. Chamem isso de video game realista, totó humano ou o que for, menos de futebol. Futebol é outra coisa.”

“Para cobrir os lugares vazios das arquibancadas, foi permitida a entrada de torcedores para estenderem suas bandeiras e dar um clima de jogo, que, apesar de deixar menos ridícula a volta do futebol, não diminui a hipocrisia de como são tratados os torcedores, principalmente de organizadas, que têm seus materiais, cantos e apoio incondicional sempre bem-vindos, mas que sua presença dentro dos estádios, com os mesmos materiais, cantos e apoio como um inimigo que deve ser expurgado.(…) sua festa é bem-vinda, vocês não.”

Cabe apenas mencionar que mesmo diante desse maior controle as provocações entre torcedores, principalmente em dias de clássico, através de materiais continuaram: ou dentro dos estádios (mesmo mediante absurda censura por parte dos clubes e/ou autoridades) ou fora dos estádios nas vias públicas. Assim como protestos contra os jogadores diante de derrotas. Essas pequenas mostras de transgressão são um vínculo para fazer um balanço: ao longo da pandemia, muitos torcedores e torcidas organizadas mesmo que excluídos dos estádios continuaram fazendo de tudo um pouco o que sempre fazem: colocaram a “resenha” em dia com “lives virtuais”, se solidarizaram, protestaram, se aglomeraram e brigaram! Ou seja, a profunda melancolia de partidas sem torcedores (presenciais) acaba minimamente compensado por mais uma prova dessa força que é o “torcer” que nunca é plenamente controlada. Falando nisso: torcedores se aglomerarem (com ou sem pandemia) não deveria ser notícia de tão óbvio que é, mostrando o imenso negacionismo social da grande mídia. Assim como um certo relativismo tendencioso nos meios de comunicação e em boa parte da opinião pública tentou colocar a culpa nos torcedores pobres que se aglomeraram para torcer durante grandes partidas, porém isentar de culpa tanto as autoridades formalmente responsáveis e quanto os jovens ricos que se aglomeraram em festas privadas. O que prova pela enésima vez que o problema no Brasil não é tanto com a lei e muito mais com os privilégios que a contornam!

Bolsonaro Flamengo
Rodolfo Landim e Alexandre Campello encontram o presidente da República para conversar sobre o retorno do futebol brasileiro. Foto: Reprodução.

Sobre os dominantes

Para o comentarista Casagrande (dentre outros), Landim do Flamengo emergiu como o Bolsonaro do futebol. Uma aproximação facilitada a partir de 2019 com os bons resultados do clube e com as partidas em Brasília permitindo que o presidente usasse sua presença como ato político. Como declarou o comentarista, o egoísmo de ambos ainda poderá matar o futebol brasileiro, inclusive pelo tanto que insistiu acelerar o retorno das partidas com a crise sanitária em situação tão crítica. Ou seja, durante os primeiros meses de pandemia de 2020, quando ninguém queria nem podia retomar as partidas, o Flamengo era o único quem insistia (alegando não perder lucros no Campeonato Carioca por não jogar). Pois quem mais estava ganhando com a engrenagem do futebol girando é agora o que mais tem a percepção de estar ‘perdendo’ quando ela parou. Inclusive era o único que insistia em treinar mesmo sem ter partidas marcadas ainda. Em um breve contexto houve intensa disputa entre os clubes cariocas, com Botafogo e Fluminense sendo contra o retorno das partidas, enquanto o Vasco posteriormente se juntou ao rival Flamengo na posição “aceleracionista” ao buscar ampliar sua articulação política.

Quanto ao tema dos direitos de transmissão com suas disputas políticas bastante reaquecidas, é preciso um breve recuo à década de 2010 por permitir usar duas figuras de linguagem muito comuns na grande mídia: se iniciava com o prognóstico de uma “espanholização” dos grandes clubes em um duopólio; porém agora essa década se encerra com uma expectativa de “bayernização”. Diante do monopólio de um clube que articulou com o governo federal para “passar a boiada” (retomando a infame metáfora do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Barros) e poder lucrar com sua própria transmissão e privilégios infinitos apenas para si próprio e acirrando ainda mais o “cada um por si” entre todos os demais. A evidência que setores progressistas tanto têm criticado é da aproximação política entre Landim e Bolsonaro, tendo como principal medida a implantação da chamada “MP do mandante” (ou “MP do Flamengo”) para trazer junto o streaming. E assim o tão alardeado discurso de quebra de monopólio da televisão (como expressão da extrema-direita ao tratar a mídia convencional como inimiga), mas na prática uma simples troca de monopólio. Pois se cria um novo nicho de mercado que é o de transmissões exclusivas nas mídias sociais de cada clube, porém apenas uma minoria (de clubes e de torcedores) terá condição de se beneficiar disso. Em suma, uma fachada tecnológica para disfarçar relações de poder de privilégio. Também em um sentido simbólico é sugestivo acrescentar que em um estádio pandêmico sem torcedores então a midiatização passa a ter completo monopólio dos sentidos de uma partida, por isso a disputa de direitos de transmissão se torna ainda mais estratégica.

Bolsonaro
Representantes dos clubes posam com Bolsonaro em Brasília. Foto: Marcos Corrêa/PR (Fonte: Fotos Públicas)

Se o tema dos direitos de transmissão já manteve os clubes tão desunidos por cerca de uma década (logo após a inclusão do Clube dos 13 com sua negociação coletiva), essa MP tende a incitar ainda mais a desunião, acentuando a desigualdade que se reflete do financeiro ao esportivo. Além de instaurar uma possível insegurança jurídica ainda maior na busca de se romper contratos e liminares judiciais intervindo até mesmo horas antes de uma partida. Em suma, tende a afastar ainda mais um cenário de negociação coletiva (como se propunha até 2011 o extinto Clube dos 13) e se aprofundar de um “salvem-se quem puder”! Se no fragmento abaixo fica evidente a crítica à MP pelo tema político (pois está longe de ser uma prioridade pública que se atribui a essa ferramenta jurídica, ainda mais em pandemia), também é preciso acrescentar que pelo tema esportivo ela sequer é urgente ou relevante se pouco tem poder em mexer em contratos em vigor até 2024.

“O esporte terceirizou uma discussão que é dele, entregando decisões fundamentais aos políticos. E eles já demonstraram o interesse que têm pela matéria, se metendo até onde não podem. Um perigo. NOVENTA E UMA emendas foram apresentadas à MP. (…) A MP pode se transformar em uma nova Lei Geral do Esporte, feita de remendos, negociações pontuais (típicas em casos urgentes) e sem o cuidado jurídico necessário. Esqueça se você é a favor ou contra o clube mandante ter os direitos sobe o jogo. Essa é uma outra discussão. A questão é sobre o procedimento correto, participação coletiva e risco jurídico. Depois de terceirizar essa discussão, é torcer para que o movimento esportivo (entidades, clubes, atletas, torcedores, árbitros…) seja ouvido pelos nossos congressistas”.

Em síntese das páginas anteriores quanto aos processos diante de dominados e dominantes, para mim parece possível traçar um paralelo entre os recentes fatores: a ampliação da torcida única do âmbito paulista para o nacional (formalmente vigente porém na prática pouco efetiva ainda por conta da imposição de portões fechados com a pandemia) e essa “MP do mandante” quanto a direitos de transmissão possuem em comum incitar uma adesão da maioria dos principais dirigentes dos clubes por dar-lhes a percepção de serem os ‘donos’ de uma partida, absolutamente sem que nenhum aspecto fique de fora desse ‘produto’ perfeito e previsível. Embora sejam dois fatores objetivamente muito distintos (um “desde cima” e outro “desde baixo”), parece que subjetivamente esse efeito permite certa aproximação. Sobretudo sob o ponto de vista do torcedor são mais dois passos de um amplo processo de sua exclusão do futebol. Com um apelo a sempre vazia noção de liberdade no campo ideológico liberal para que tenham o direito (na verdade privilégio) de explorar os mais vulneráveis: outros clubes e outros torcedores (sobretudo os pobres). A seguir um fragmento bem representativo do aceleracionismo junto de improviso para uma questão bem prática que era a de encaixar uma tabela longa em um calendário curto:

“Daí sai a tabela do Campeonato Brasileiro em que o grande destaque da abertura são os jogos adiados por causa dos Estaduais. Copia e cola, puxa para lá, para cá, enfia mais um jogo aí. A bola não pode parar, precisam caber as idas, as voltas, as 38 rodadas. Vamos voltando o futebol nos cantinhos dos dias, joga depois, marca de novo, dá um jeito. (…) Os times de futebol, empurrando jogos em sequência a qualquer custo e de qualquer jeito, não só impõem uma falsa impressão de normalidade como ainda desrespeitam o luto por quase 100 mil vidas perdidas ao tratarem o grave problema de saúde como mero obstáculo, detalhe extracampo, para a bola não parar de rolar.(…) Daí passou pelos clubes migrando de cidade para driblar o mapa da pandemia em seus respectivos estados, depois times retomando os treinos, mas proibidos de jogar em suas cidades por estarem numa zona de risco maior. Atletas com resultado positivo para testes da Covid-19 e partidas mantidas.(…) A conclusão é mais ou menos a seguinte: elaboramos uma ideia para a volta do campeonato, mas cada time faz de um jeito, e vamos que vamos”. 

Desse momento de início até o final do Campeonato Brasileiro (no final de fevereiro de 2021) a maioria dos clubes passou em algum momento por algum surto de contágios levando a vários desfalques, o que também é grave por um outro sentido de ter sido banalizada essa situação e junto da obrigação de ter que jogar a qualquer custo com todos mais reféns do que nunca do calendário! Em um sentido mais profundo, de alguma forma a discussão sobre isonomia e paridade de condições no esporte esteve presente com frequência na grande mídia: vide cogitarem se algum clube levaria vantagem no Brasileirão 2020 diante dessas condições excepcionais sem torcida e algum surto de contaminações de jogadores e, portanto, desfalques em campo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Pandemia, Política e Futebol (parte II): TEMPORADA PANDÊMICA I. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 12, 2022.
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