Pandemia, Política e Futebol (parte II): TEMPORADA PANDÊMICA I
“El fútbol sin público es otro deporte. No podría ver un partido así, me haría mal. Nací hincha antes que futbolista y ver un estadio vacío, me hace mal.” (Cesar Luis Menotti)
Sobre os dominados: os torcedores
Ora, se os últimos anos já eram péssimos com a expansão do cenário da torcida única, diante da pandemia mundial surge um cenário ainda mais desolador para os torcedores: os portões fechados. O que alguns mais inocentes (ou cinicamente privilegiados) somente passaram a ver na pandemia como uma novidade, na verdade é um aprofundamento do que já havia sido iniciado. Ou seja, diante da chave de leitura proposta anteriormente de “bolha”, ela encontra mais coerência com a maioria dos processos que incidem sobre os torcedores de uma exclusão da maioria para privilegiar minorias cada vez mais reduzidas no acesso aos estádios (que depois de se tornarem arenas se parecem agora cada vez mais a camarotes).
Aliás, soa muito contraditório o tanto que dirigentes e autoridades se esforçaram nos últimos anos em proibir a entrada de materiais festivos junto de seus torcedores nos estádios, porém agora sem os torcedores liberam exatamente todos os mesmos materiais! O que é péssimo pelo direito de torcer e pior ainda pelo direito de protestar. Pois qualquer estética de faixas e bandeiras em estádios deve passar pela aprovação do clube (sem permitir improvisos nem transgressões).
Cabe apenas mencionar que mesmo diante desse maior controle as provocações entre torcedores, principalmente em dias de clássico, através de materiais continuaram: ou dentro dos estádios (mesmo mediante absurda censura por parte dos clubes e/ou autoridades) ou fora dos estádios nas vias públicas. Assim como protestos contra os jogadores diante de derrotas. Essas pequenas mostras de transgressão são um vínculo para fazer um balanço: ao longo da pandemia, muitos torcedores e torcidas organizadas mesmo que excluídos dos estádios continuaram fazendo de tudo um pouco o que sempre fazem: colocaram a “resenha” em dia com “lives virtuais”, se solidarizaram, protestaram, se aglomeraram e brigaram! Ou seja, a profunda melancolia de partidas sem torcedores (presenciais) acaba minimamente compensado por mais uma prova dessa força que é o “torcer” que nunca é plenamente controlada. Falando nisso: torcedores se aglomerarem (com ou sem pandemia) não deveria ser notícia de tão óbvio que é, mostrando o imenso negacionismo social da grande mídia. Assim como um certo relativismo tendencioso nos meios de comunicação e em boa parte da opinião pública tentou colocar a culpa nos torcedores pobres que se aglomeraram para torcer durante grandes partidas, porém isentar de culpa tanto as autoridades formalmente responsáveis e quanto os jovens ricos que se aglomeraram em festas privadas. O que prova pela enésima vez que o problema no Brasil não é tanto com a lei e muito mais com os privilégios que a contornam!
Sobre os dominantes
Para o comentarista Casagrande (dentre outros), Landim do Flamengo emergiu como o Bolsonaro do futebol. Uma aproximação facilitada a partir de 2019 com os bons resultados do clube e com as partidas em Brasília permitindo que o presidente usasse sua presença como ato político. Como declarou o comentarista, o egoísmo de ambos ainda poderá matar o futebol brasileiro, inclusive pelo tanto que insistiu acelerar o retorno das partidas com a crise sanitária em situação tão crítica. Ou seja, durante os primeiros meses de pandemia de 2020, quando ninguém queria nem podia retomar as partidas, o Flamengo era o único quem insistia (alegando não perder lucros no Campeonato Carioca por não jogar). Pois quem mais estava ganhando com a engrenagem do futebol girando é agora o que mais tem a percepção de estar ‘perdendo’ quando ela parou. Inclusive era o único que insistia em treinar mesmo sem ter partidas marcadas ainda. Em um breve contexto houve intensa disputa entre os clubes cariocas, com Botafogo e Fluminense sendo contra o retorno das partidas, enquanto o Vasco posteriormente se juntou ao rival Flamengo na posição “aceleracionista” ao buscar ampliar sua articulação política.
Quanto ao tema dos direitos de transmissão com suas disputas políticas bastante reaquecidas, é preciso um breve recuo à década de 2010 por permitir usar duas figuras de linguagem muito comuns na grande mídia: se iniciava com o prognóstico de uma “espanholização” dos grandes clubes em um duopólio; porém agora essa década se encerra com uma expectativa de “bayernização”. Diante do monopólio de um clube que articulou com o governo federal para “passar a boiada” (retomando a infame metáfora do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Barros) e poder lucrar com sua própria transmissão e privilégios infinitos apenas para si próprio e acirrando ainda mais o “cada um por si” entre todos os demais. A evidência que setores progressistas tanto têm criticado é da aproximação política entre Landim e Bolsonaro, tendo como principal medida a implantação da chamada “MP do mandante” (ou “MP do Flamengo”) para trazer junto o streaming. E assim o tão alardeado discurso de quebra de monopólio da televisão (como expressão da extrema-direita ao tratar a mídia convencional como inimiga), mas na prática uma simples troca de monopólio. Pois se cria um novo nicho de mercado que é o de transmissões exclusivas nas mídias sociais de cada clube, porém apenas uma minoria (de clubes e de torcedores) terá condição de se beneficiar disso. Em suma, uma fachada tecnológica para disfarçar relações de poder de privilégio. Também em um sentido simbólico é sugestivo acrescentar que em um estádio pandêmico sem torcedores então a midiatização passa a ter completo monopólio dos sentidos de uma partida, por isso a disputa de direitos de transmissão se torna ainda mais estratégica.
Se o tema dos direitos de transmissão já manteve os clubes tão desunidos por cerca de uma década (logo após a inclusão do Clube dos 13 com sua negociação coletiva), essa MP tende a incitar ainda mais a desunião, acentuando a desigualdade que se reflete do financeiro ao esportivo. Além de instaurar uma possível insegurança jurídica ainda maior na busca de se romper contratos e liminares judiciais intervindo até mesmo horas antes de uma partida. Em suma, tende a afastar ainda mais um cenário de negociação coletiva (como se propunha até 2011 o extinto Clube dos 13) e se aprofundar de um “salvem-se quem puder”! Se no fragmento abaixo fica evidente a crítica à MP pelo tema político (pois está longe de ser uma prioridade pública que se atribui a essa ferramenta jurídica, ainda mais em pandemia), também é preciso acrescentar que pelo tema esportivo ela sequer é urgente ou relevante se pouco tem poder em mexer em contratos em vigor até 2024.
Em síntese das páginas anteriores quanto aos processos diante de dominados e dominantes, para mim parece possível traçar um paralelo entre os recentes fatores: a ampliação da torcida única do âmbito paulista para o nacional (formalmente vigente porém na prática pouco efetiva ainda por conta da imposição de portões fechados com a pandemia) e essa “MP do mandante” quanto a direitos de transmissão possuem em comum incitar uma adesão da maioria dos principais dirigentes dos clubes por dar-lhes a percepção de serem os ‘donos’ de uma partida, absolutamente sem que nenhum aspecto fique de fora desse ‘produto’ perfeito e previsível. Embora sejam dois fatores objetivamente muito distintos (um “desde cima” e outro “desde baixo”), parece que subjetivamente esse efeito permite certa aproximação. Sobretudo sob o ponto de vista do torcedor são mais dois passos de um amplo processo de sua exclusão do futebol. Com um apelo a sempre vazia noção de liberdade no campo ideológico liberal para que tenham o direito (na verdade privilégio) de explorar os mais vulneráveis: outros clubes e outros torcedores (sobretudo os pobres). A seguir um fragmento bem representativo do aceleracionismo junto de improviso para uma questão bem prática que era a de encaixar uma tabela longa em um calendário curto:
Desse momento de início até o final do Campeonato Brasileiro (no final de fevereiro de 2021) a maioria dos clubes passou em algum momento por algum surto de contágios levando a vários desfalques, o que também é grave por um outro sentido de ter sido banalizada essa situação e junto da obrigação de ter que jogar a qualquer custo com todos mais reféns do que nunca do calendário! Em um sentido mais profundo, de alguma forma a discussão sobre isonomia e paridade de condições no esporte esteve presente com frequência na grande mídia: vide cogitarem se algum clube levaria vantagem no Brasileirão 2020 diante dessas condições excepcionais sem torcida e algum surto de contaminações de jogadores e, portanto, desfalques em campo.