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Panelinha

Marco Sirangelo 25 de dezembro de 2020

Os sinais estão muito claros. Desde o Football Leaks de 2018 sabemos das intenções de figurões como Andrea Agnelli, presidente da Juventus e do ECA, órgão independente que representa os clubes europeus, e demais líderes de clubes como PSG e Bayern de Munique em criarem uma grande liga com a presença dos times mais ricos da Europa. Recentemente, outros dois acontecimentos comprovam a aproximação cada vez mais inevitável deste evento que representaria uma total disrupção na estrutura do futebol europeu.

O discurso de renúncia de Josep Maria Bartomeu como presidente do Barcelona foi recheado de justificativas pouco convincentes de como ele não deixou o clube em um caos absoluto, como é óbvio de se perceber. Entre elas a informação de que os diretores do clube já haviam aceitado as condições para a participação do Barça na tal super liga de clubes, o que representaria um extraordinário aumento nas receitas do clube.

A língua portuguesa traduz muito bem a diretoria do ECA, bastante diversa, como podemos perceber. Foto: Reprodução Twitter (@ECAeurope)

Pouco antes, Liverpool e Manchester United encabeçaram o Projeto Big Picture, que trazia propostas de alívio financeiro para clubes menores da Inglaterra em resposta à Pandemia em troca de condições de maior controle dos 6 clubes grandes na Premier League. As contrapartidas procuravam reduzir o número de jogos na temporada, de clubes participantes na primeira divisão e, o principal, tornar a divisão financeira menos igualitária, como é característico da principal liga do mundo.

O Big Picture possui algumas nuances que podem parecer teorias conspiratórias, mas valem um olhar mais próximo. Existem três grandes esferas envolvidas na organização do futebol inglês e que valem para todos os principais países europeus: os clubes, a liga e a federação. O Campeonato Inglês é de responsabilidade da liga (Premier League), que determina critérios como a divisão do dinheiro e o calendário. Em âmbito continental, as ligas respondem à UEFA, que organiza a Liga dos Campeões e a Liga Europa.

O Big Picture representou uma proposta de maior controle dos clubes perante à liga e, de forma até surpreendente, também contou com apoio da FA (a CBF inglesa). Com a rejeição da proposta, abre-se uma primeira rusga entre a Premier League e os principais clubes. No caso do anúncio feito pelo Barcelona, Javier Tebas, presidente da liga espanhola, adotou um tom firme, rejeitando qualquer movimento da super liga, afirmando que Bartolomeu parece ter sido influenciado por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid e historicamente interessado em um encontro entre os ricos.

Em termos continentais, a UEFA pode ser vista como uma notória inimiga dos clubes mais ricos. Em nome do maior estímulo à competitividade e em resposta aos movimentos de aquisição de clubes de futebol por bilionários de bolso fundo, o órgão criou mecanismos voltados à sustentabilidade financeira no futebol, sendo o Fair Play Financeiro o principal deles. Ou seja, para jogar a Liga dos Campeões um clube precisa cumprir requisitos que limitam o poder de investimento e dificultam injeções financeiras desproporcionais para a compra de jogadores. PSG e Manchester City, controlados por fundos soberanos árabes não cansam de criticar este modelo, e o City passou raspando não sabemos muito bem como de uma punição que o excluiria da Champions por anos seguidos.

Por fim, o critério de classificação para o principal torneio de clubes na Europa é puramente técnico. Cada liga possui vagas limitadas e determinadas pela posição na tabela. Sobre isso, Agnelli fez um comentário interessante tempos atrás, criticando a presença da Atalanta, de campanhas brilhantes na liga italiana, na Champions ao invés da Roma, superada na tabela. O figurão acha injusto que um clube mais rico fique de fora do principal palco europeu apenas porque não teve competência para superar seus rivais na bola.

Em resumo, a UEFA e as ligas, que historicamente se preocupam em manter um ambiente mais sustentável financeiramente, estão de um lado, enquanto os clubes mais ricos da Europa estão do outro, assim como as federações, que perderam poder e influência para as ligas nos últimos anos. Finalmente, a FIFA se faz de desentendida na história, mas boatos já surgiram que ela estaria disposta a organizar a eventual super liga.

O que sabemos sobre o formato da tal super liga é que ela não contaria com rebaixamento e, por estar fora da jurisdição das ligas e da UEFA não teria problema em aceitar qualquer tipo de injeção financeira. Um modelo bastante semelhante ao visto nos esportes norte-americanos, mas aparentemente sem restrição para investimentos. Além disso, a postura contrária firme que as ligas adotam permite inferir que dificilmente seus participantes conseguiriam se manter em suas ligas nacionais. Ou seja, os campeonatos estariam sem seus principais times, assim como a Liga dos Campeões.

Estamos diante de mais um caso clássico da força da grana que ergue e destrói coisas belas. São muitas fumaças que nos levam a pensar em um futuro do futebol pensado apenas pelo espetáculo, passando por cima de elementos tradicionais e, pelo visto, ultrapassados como a competitividade. A que tudo indica, parece que os donos da bola resolveram que hoje não estão com vontade de jogar.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marco Sirangelo

Marco Sirangelo é Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough (Inglaterra) e Bacharel em Administração de Empresas pela FGV, foi Analista de Marketing do Palmeiras entre 2009 e 2010 e Gerente de Projetos da ISG, de 2011 a 2016. Atualmente é Head de Projetos na consultoria OutField.Twitter: @MarcoSirangelo

Como citar

SIRANGELO, Marco. Panelinha. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 47, 2020.
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