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Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade

Wagner Xavier de Camargo 18 de dezembro de 2022

Hoje a Copa do Catar tem seu grand finale, numa disputa bastante acirrada entre Argentina e França. Qualquer que seja o resultado, o mundo conhecerá a próxima seleção tricampeã. Para mim, que costumo ver o futebol além dele mesmo, interessa-me mais uma vez observar as ações e posturas de Kylian Mbappé, atleta de destaque da seleção francesa, no contexto das masculinidades futebolísticas em campo.

O jogador se coloca nesta Copa bastante à vontade em se expressar carinhosamente com outros jogadores homens, seja abraçando-os ou atribuindo-lhes um afeto pronunciado, mesmo diante de centenas de milhares de câmeras de todo o mundo. A imprensa e as mídias sociais, obviamente, não perdoam.

Logo nos primeiros jogos da França veio à tona a história de seu relacionamento com uma mulher trans, a modelo de sucesso Ines Rau, que inclusive já escreveu um livro sobre seu processo de redesignação de gênero (‘Femme’, disponível na Amazon). E diferentemente de outros jogadores, que em dado momento se afastaram de uma masculinidade de base cisgênera e heterossexual (como Ronaldo, o fenômeno), Mbappé não negou seu envolvimento afetivo com Ines.

Não é novidade para ninguém as afirmações e posturas, muitas vezes radicais e até exageradas, de jogadores e torcedores, que usam o futebol para afirmarem uma masculinidade bruta, machista e tóxica. Xingamentos variados, cuspes, vibrações raivosas, socos e murros, além de, muitas vezes, uma performance clássica da velha e decadente estética heterossexual.

Em consequência disso, é comum a violência de gênero, notadamente contra mulheres, aumentar incrivelmente em dias de jogos. Os exemplos são fartos e inúmeros, como jogadores-estupradores (Robinho é um deles), torcedores abusadores e violentos, etc.

Como craque da seleção francesa (e astro do Paris Saint-Germain), Mbappé traz para campo outras posturas, bastante sutis, mas que propõem novos olhares: as comemorações do craque, como o intenso afago no colo de Giroud, no jogo contra a Polônia, ou o abraço afetuoso (e até meio excitado) no jogador Achraf Hakimi, da seleção marroquina, são exemplos.

 

O que tenho observado é que a imprensa, tanto brasileira quanto a internacional, e mesmo as redes sociais (particularmente o nocivo Twitter), não têm deixado de lado tais posturas de Mbappé. Em geral, matérias jornalísticas e páginas pessoais que debocham dele, ou mesmo questionam sua masculinidade, aparecem aos montes na rede. Elas tripudiam sobre um comportamento condenado para um jogador homem.

As mesmas redes sociais que observam isso tudo e condenam, não conseguem relativizar o olhar e entender dois aspectos fundamentais dos fenômenos culturais globalizados: a) as práticas culturais entre homens são distintas em diferentes lugares do mundo, como os argentinos homens, que se beijam frequentemente em público, por exemplo; b) as masculinidades performadas por jogadores nos ambientes homossociais do futebol, como os vestiários, vão além do que entendem as pessoas comuns.

Particularmente os vestiários esportivos são lugares de afeto, de trocas, de confraternizações e de cumplicidades que, no geral, não saem dos limites desses espaços. Homens podem trocar carinhos (ou mesmo intimidades) com outros homens e não se distanciarem, necessariamente, de uma matriz de base heterossexual. Tudo o que é alheio ao mundo homossocial é expulso de lá – lembremos o caso de Lisa Olson, jornalista assediada por ter invadido o vestiário de uma equipe masculina de futebol americano, nos anos 1990.

Sobretudo, a questão maior que levanta Mbappé (sem ser explícito, obviamente), é que homens podem se expressar mais abertamente, inclusive sobre seus afetos e sexualidades, sem precisarem carregar o peso que a virilidade masculina lhes legou historicamente. São masculinidades de novos tempos, que emergem de uma instituição total (e mesmo conservadora) como o esporte.

Além disso, ele demonstra que homens podem ser sensíveis e menos toscos, como muitos jogadores que publicizam suas posturas tacanhas e opiniões rasas, muitas vezes reacionárias (apoiando governos fascistas) e ultrapassadas (defendendo os valores da “verdadeira família”). As rusgas entre Mbappé e Neymar fora de campo podem ser sintomáticas de algo muito além das questões que envolvem o futebol.

Desejo que pais franceses, brasileiros e de outras nacionalidades consigam despertar uma sensibilidade para novas performances masculinas de jogadores de futebol, como tem trazido Mbappé durante esses jogos da Copa do Catar. E que passem isso aos seus filhos, para que futuras gerações de crianças olhem o futebol de outro jeito.

Se tal torneio é uma vitrine para o melhor futebol do planeta, que ele seja também para mostrar modos alternativos de ser homem, tanto dentro quanto fora do campo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 18, 2022.
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