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Para além do “exemplo de superação”: pelo direito de torcer com acessibilidade e sem capacistismo!

Em 21 de setembro é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência – PCD. De acordo com o último censo do IBGE (2010), quase 45 milhões de brasileiros – cerca de 23% da população – declararam ter algum tipo de deficiência.  Diante do valor cultural que o futebol tem no país, podemos inferir que milhões de PCD’s são engajados neste esporte. Muitos deles, por exemplo, estão entre os/as torcedores/as destaques dos clubes. Isso ocorre, sobretudo, pela associação que, comumente, se faz dessas pessoas com atributos de superação às barreiras sociais impostas pela lógica produtivista capitalista. Nesse sentido, é fácil encontrar pelas redes sociais imagens de torcedores PCD’s na arquibancada durante um jogo acompanhadas de legendas com frases de superação e heroísmo. Não que essas atitudes por si só representem práticas preconceituosas, mas, certamente, as pessoas pertencentes a tal grupo, que não é homogêneo, são bem mais que esses rótulos.

No âmbito do torcer no futebol brasileiro, além das dificuldades de acessibilidade caraterizadas pela carência de caminhabilidade ao entorno e dentro dos estádios, e de lugares adaptados na arquibancadas, muitos torcedores/as PCD’s lidam com o capacitismo manifestado através do preconceito e opressões sociais que sofrem em suas socialidades e sociabilidades futebolísticas. Essas opressões ocorrem através de práticas de negligência ou negação de direitos protagonizadas por trabalhadores/as dos estádios, fiscais/seguranças dos clubes, agentes públicos, dirigentes, ou até mesmo por torcedores/as do mesmo time. Identificamos alguns relatos em sites jornalísticos que nos dão a noção do quanto a inclusão das pessoas com deficiência nos ambientes futebolísticos brasileiros inda precisa ser aprimorada.

Os dois primeiros relatos chamam atenção por serem situações ocorridas em estádios idealizados para a Copa do Mundo de 2014, ou seja, ‘’modernas arenas’’. No primeiro,  Sinval Júnior – torcedor do Atlético Mineiro que possui deficiência física – no ano de 2019, desabafou sobre um episódio de negligência por parte de funcionários da empresa que administra o estádio Mineirão, conforme matéria publicada no site O Tempo [2]. Na ocasião, Sinval alegou que contactou cinco ou seis pessoas que trabalhavam no estádio antes de conseguir a informação que desejava a respeito do lugar que lhe daria acesso à parte interna do Mineirão para assistir a uma partida válida pelo campeonato brasileiro da série A daquele ano, tendo com isso percorrido um logo trajeto caminhando, gerando-lhe cansaço e desânimo.

Bahia
Armando Bispo – Torcedor do E.C. Bahia. Fonte: Vinícius Nascimento/CORREIO, 2019.

Já o torcedor do Bahia Armando Bispo, no mesmo ano, relatou ao site Correio [3]sobre as dificuldades em visualizar alguns lances das partidas disputadas na Arena Fonte Nova, pois outros torcedores costumam ficar em pé na sua frente, fechando seu campo visual do gramado. Insatisfeito, desabafou Armando:

“A gente não consegue acompanhar. Não dá pra ver, simplesmente é impossível. Eu só venho pelo amor ao meu time. É um pecado eu vir aqui e não ver o gol”, afirmou Armando Bispo.

Situações semelhantes à vivenciada por Arnaldo fazem parte das experiências de muitas pessoas com deficiências invisíveis – aquelas que por não estarem visivelmente marcadas no corpo de quem as tem não podem ser identificadas a olho nu por quem as observa  – como no caso de Kamilla Sastre, uma das autoras deste texto, torcedora do Clube do Remo, que por conta de uma monoparesia cural à direita, deficiência esta que lhe causa fraqueza em uma das pernas, não consegue ficar por muitos minutos em pé.  Diante disso, Kamilla se considera pouco compreendida por torcedores/as situados/as a sua frente durante, logo ela e várias outras pessoas que passam pela mesma situação, perdem grande parte dos lances durante os jogos.

Kamilla Sastre – Pessoa com Deficiência Física “Invisível”, torcedora do Clube do Remo. Fonte: Acervo pessoal Kamilla Sastre, 2018.

Em entrevista para o blog FOOTBRAZIL [1] do Globo.com, no ano de 2017, Nathalia Santos, flamenguista, pessoa com deficiência visual, pontuou a seguinte afirmativa: “A sociedade não me enxerga como consumidora, como integrante, como é… cidadã. E aí eu digo cidadão em todos os âmbitos. Que seja governo, que seja sociedade. A pessoa quando faz um restaurante ela não considera que um cego vá comer porque cego não come, cego não veste, cego não vive. Então eles não colocam a gente como… Não consideram. E aí me excluem. Mas ao mesmo tempo eu tenho que pagar a conta’’. Em seguida, complementa: “as pessoas acham que ah… beleza. Cego não faz nada, deficiente, cadeirante, deficiente auditivo, idoso não precisam fazer nada. Cara, a gente precisa viver, sabe. Eu, quando tô no estádio, eu me sinto parte da torcida do Flamengo. Eu esqueço que sou mulher, que eu sou negra, que sou deficiente. Eu aqui, eu sou pertencente. Eu sou parte, tá! As pessoas não nos consideram. As pessoas… Eu sou cega e as pessoas que não me veem. Isso que é o mais surreal!’’.

Flamengo
Nathália Santos, Torcedora do Flamengo e Pessoa com deficiência visual. Fonte: FOOTBRAZIL 2017.

Há uma máxima na ponta da língua dos dirigentes das instituições futebolísticas brasileiras de que “futebol só se faz com dinheiro’’. Longe de concordarmos com ele, visto que, para nós, futebol se faz com pessoas, consideramos ignorante       a forma em que tal ‘’verdade absoluta’’ é posta em prática, pois fomentar a inclusão de pessoas com deficiência, obesos mórbidos, pessoas LGBTQIA+, dentre outros grupos subalternizados, certamente impactaria positivamente na arrecadação dos Clubes. A recente experiência do E.C.Bahia e o relato de Nathália nos fazem inferir isso.  

O pertencimento clubístico faz torcedores/as superarem obstáculos – como nos casos de Jairton da Rocha [5] – torcedor do Coritiba que devida à atrofia muscular vai ao estádio em uma maca – e de Gustavo Emanuel ‘Batata’[6] – torcedor do Náutico, conhecido por ser carregado na sua cadeira por outros torcedores durante os jogos. Mas não podemos romantizar essas situações ao não fazermos a crítica à precariedade estrutural de grande parte dos estádios brasileiros e ao capacitismo presente neles.

Coritiba
Jairton da Rocha – Torcedor do Coritiba. Foto: Daniel Castellano – A Gazeta do Povo, 2014.
Náutico
Gustavo Emanuel ‘Batata’ – torcedor cadeirante do Náutico. Fonte: Léo Lemos/Náutico, 2019.

Em Belém do Pará, Ivan Farias, cego, torcedor do Clube do Remo expôs ao site O Liberal [4], em 2019, a sua insatisfação com a acessibilidade dentro do estádio Mangueirão. Nesse sentido, afirmou Ivan: “Eu sempre subi via rampa. No Mangueirão, do portão até o acesso da rampa é muito longe. Já enfrentei dificuldades com pessoas me guiando. Se tivesse mais placas especificando a entrada prioritária, a pessoa não tinha se perdido”. Por acompanharmos de perto, sabemos que há um histórico de desrespeito com PCD’s torcedores/as em Belém do Pará, pois estes costumam ser submetidos a horas em longas filas, sob o sol escaldante da capital paraense para entrarem nos estádios, além da pouca oferta de espaços acessíveis para eles se alocarem nas arquibancadas. O curioso é que, mesmo com o cenário de descaso apresentado, quando um time da capital paraense vai mal no campeonato, é comum ver cards com a imagem de torcedores/as PCD’s acompanhado de frase de superação. Ou seja, uma “inclusão” por conveniência.

Remo
Torcedor do Clube do Remo PCD subindo a rampa do Mangueirão em seu skate sendo empurrando por outro torcedor. Foto: Facebook Encarna Leão, 2014.

Os relatos apresentados mostram o quanto ainda precisamos avançar na garantia do direito de torcer, que é de/para todos/as. Incluir deve ser um compromisso social e não apenas uma retórica pontual. Frequentar estádios de futebol faz parte das vivências de muitas PCD´s cujas experiências são variadas e heterogêneas. Este espaço que coaduna diferentes existências humanas, deve ser o lugar do respeito à diversidade corporal e sensorial. No jogo da inclusão o adversário é o preconceito. E para vencê-lo, o universo do futebol necessita aderir a luta anticapacitista, afinal, PCD’s também torcem, consomem e vibram a cada gol!

Referências

[1] http://ge.globo.com/blogs/especial-blog/footbrazil/post/no-brasileirao-torcedores-com-deficiencia-superam-obstaculos-e-encontram-inclusao-na-arquibancada.html

[2] https://www.otempo.com.br/superfc/atletico/torcedor-com-deficiencia-fisica-relata-dificuldade-de-acesso-ao-mineirao-1.2180890

[3] https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/cadeirantes-reclamam-de-dificuldades-para-ver-jogos-na-fonte-nova/

[4] https://www.oliberal.com/esportes/inclus%C3%A3o-social-%C3%A9-escassa-nos-est%C3%A1dios-de-bel%C3%A9m-1.49530

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/esportes/futebol/coritiba/deficiencia-nao-impede-torcedor-de-seguir-o-coritiba-eekgaqiih8qrk17106dyefivi/

[6] https://www.lance.com.br/nautico/torcedor-cadeirante-levado-comemorar-acesso-nautico-nos-vestiarios.html 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Damasceno

Cientista Social; Mestrando em antropologia (PPGA/UFPA).

Como citar

DAMASCENO, Felipe; SASTRE, Kamilla. Para além do “exemplo de superação”: pelo direito de torcer com acessibilidade e sem capacistismo!. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 22, 2021.
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