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Para no olvidar

Roberto Jardim 11 de setembro de 2019

Neste 11 de setembro, o golpe que derrubou o primeiro presidente socialista eleito da América Latina completa 46 anos. Salvador Allende foi tirado do poder por uma ação das Forças Armadas, comandada pelo general Augusto Pinochet, até então tido como apoiador do governo iniciado em 1970.

Golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile. Bombardeio do Palácio de La Moneda (palácio do governo). Foto: Wikipedia.

Desde o seu começo, até mesmo antes, quando o Colo-Colo “adiou” o golpe, ao chegar à final da Libertadores daquele ano. História contada por maestria pelo Puntero Izquierdo.

Por isso, o Democracia Fútbol Club fez um compilado com seis causos que se passaram naqueles dias.

La cancha infame

Construído no final dos anos 30 e palco da final da Copa do Mundo de 1962, o Estádio Nacional de Santiago tem uma passagem que, apesar de triste e dolorosa, jamais deve ser esquecida. De 11 de setembro a 9 de novembro de 1973, o local foi transformado em prisão, sala de tortura e patíbulo para os opositores do golpe perpetrado pelo general Augusto Pinochet e seus aliados.

As oito escotilhas do estádio nacional foram usadas como celas coletivas, abrigando entre 300 e 400 prisioneiros cada. Foto: Wikipedia.

Vinte mil pessoas passaram por seus corredores, arquibancadas e gramado. Homens, mulheres, crianças, entre chilenos e chilenos, foram torturados e seviciados. Muitos saíram dali já sem vida.

Os chilenos não deixam a sociedade esquecer do que ali aconteceu. Um setor é mantido fechado, com as arquibancadas mantidas intactas como naqueles dias. Além disso, a Corporación Estadio Nacional Memoria Nacional realiza todo ano a Semana de La Memoria, com eventos lembrando aqueles dias em que local virou la cancha infame.

Y los otros três!

Contam que na mesma época em que Augusto Pinochet comandava o Chile com mão de ferro, outro Pinochet chutava bola pelas canchas andinas. Francisco Pinocho Pinochet atuou pelo Huachipato, pelo Deportivo Concepción e pela seleção chilena.

Em um amistoso por La Roja, em pleno Estádio Nacional, palco de prisões, torturas e mortes, a torcida aproveitou para alçar a voz contra o ditador que tomou o poder em 1973. Pinochet jogava mal e os torcedores passaram a gritar contra ele.

Como o outro Pinochet era o comandante da junta militar que aterrorizava o Chile, parte das arquibancadas gritava “fora, Pinochet!” e a outra parte “y los otros tres!”.

A maior farsa do futebol

A ditadura chilena, iniciada em 11 de setembro de 1973, como muitas outras, tentou se aproveitar do futebol. Em meio à efervescência daqueles dias, La Roja disputava a repescagem das Eliminatórias da Copa da Alemanha. O adversário não poderia ser mais simbólico, a comunista URSS.

O primeiro jogo foi em 26 de setembro – 15 dias após a derrubada de Allende –, em Moscou. O 0 a 0 deixou a decisão para 25 de novembro, em Santiago. Na data marcada, os soviéticos se recusaram a ir ao Chile e a jogar no Estádio Nacional, que vinha sendo usado como prisão e centro de tortura pela ditadura recém-instalada.

E ali, em la cancha infame, ocorreu a maior farsa do futebol. Mesmo que o adversário não tenha sequer viajado, a Fifa determinou que o time chileno entrasse em campo e marcasse um gol. Os jogadores obedeceram ao roteiro. Com apenas um dos 11 em campo, após o apito inicial do árbitro, alguns boleiros trocaram passes até a goleira que seria defendida pelo adversário e chutaram para a rede.

O craque da dignidade 1

Carlos Caszely, também conhecido como El Rey del Metro Cuadrado, é um dos maiores jogadores do futebol chileno. Artilheiro nato, marcou seu maior gol em uma cancha inusitada: a sede da Junta Militar que comandou o Chile com mão de ferro a partir de 11 de setembro de 1973. E o adversário foi um dos mais sangrentos ditadores que a América do Sul já teve o desprazer de conhecer.

Quando a La Roja embarcou para a Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, o general Augusto Pinochet fez questão de receber os atletas. Queria ganhar pontos junto aos fanáticos por futebol. Levou, isso sim, um drible. Depois de um rápido discurso, passou para cumprimentar os atletas. Ao chegar em frente a Caszely, ficou com a mão no ar.

Carlos Caszely, ex-futebolista, em apoio à candidatura presidencial de Michelle Bachelet no ano de 2013. Foto: Wikipedia.

El Rey del Metro Cuadrado conta:

– Quando Pinochet se aproximou, coloquei meus braços para trás. Me recusei a apertar a sua mão. Fechei os olhos para ver se aquilo passava mais rápido. Quando abri, ele já estava à frente de outro colega.

Cazely explica o porquê do cumprimento negado:

– Como ser humano, aquela era minha obrigação. Tinha todo um povo sofrendo lá fora.

A revanche de Pinochet

A recusa do artilheiro Carlos Caszely em cumprimentar o ditador Augusto Pinochet teve poucas testemunhas. Entre elas, porém, estava um jornalista, que descreveu o ocorrido no jornal La Segunda, chamando o craque de comunista.  

Durante a Copa da Alemanha, em 1974, sem que Caszely ou a maior da população chilena ficassem sabendo, o regime teve sua revanche, perpetrando uma vingança maligna e repugnante. A mãe do camisa 7, Olga Garrido, 55 anos então, foi sequestrada e torturada em Santiago.

https://youtu.be/1ls2XSgSxjw

O artilheiro só ficou sabendo quando voltou ao Chile, após a eliminação de La Roja, na primeira fase do Mundial. Ao lembrar o fato, voz falha, os pensamentos embargam:

– Minha mãe… foi presa por pura represália… Ela foi torturada o dia todo… Ficou com marcas de golpes,… queimaduras…, cortes…, lacerações…

O craque da dignidade 2

O segundo golaço de Carlos Caszely veio em 1988, três anos após ele deixar os gramados. O Chile foi às urnas para votar em um referendo. A pergunta era simples: Pinochet deveria continuar no poder? As opções: sim ou não.

Em uma tentativa de convencer a população, um vídeo de cerca de um minuto e meio mostrava aos chilenos uma senhora de camisa branca, sentada em uma poltrona. Ela fala sobre o que sofreu na prisão. Em seguida a câmera foca, a seu lado, o eterno camisa 7 de La Roja, que se ajoelha ao lado da senhora e desabafa:

– Por isso, voto “não”: porque sua alegria é minha alegria; porque seus sentimentos são meus sentimentos; para que amanhã possamos ter uma democracia livre e sã; porque esta senhora é minha mãe!

O impacto da revelação emocionou quem estava no estúdio de gravação e aqueles que votaram pelo “não”. Mais um golaço de Caszely, um homem do povo, um dos maiores jogadores da história do futebol chileno. O craque da dignidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. Para no olvidar. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 13, 2019.
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