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Paris 1900 – França: paz externa e efervescência interna

Paulinho Oliveira 29 de janeiro de 2021

Desde 1894, já se sabia que os Jogos Olímpicos de 1900 teriam como sede a capital francesa, para a satisfação da maior liderança olímpica mundial, o Barão de Coubertin, presidente do Comitê Olímpico Internacional desde 1896. Diferentemente da Grécia, a França se tratava de uma potência e estava, na época de Paris 1900, envolta em um clima de paz externa, fruto do cumprimento rápido e eficaz das punições impostas pela derrota na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), e efervescência cultural, graças ao movimento conhecido como Belle Époque, responsável pelo crescimento da influência mundial francesa nos costumes, na moda e nas artes – similar ao que acontece nos dias de hoje em relação à influência dos Estados Unidos.

A França era um dos países integrantes do grupo denominado Grandes Potências, por ser detentora de um vasto império colonial, que englobava territórios na África, na América do Sul e na Ásia. Perdera, cerca de três décadas antes de 1900, a Guerra Franco-Prussiana, e a derrota impôs aos franceses pesada indenização de guerra e a cessão de grande parte dos territórios da Alsácia e da Lorena para o recém-formado Império Alemão. Porém, a reconstrução nacional foi rápida, e o pagamento da indenização em tempo ligeiro surpreendeu os vencedores do conflito, que esperavam estabelecer domínio militar em território francês por período maior do que cinco anos. A reabilitação econômica da França favoreceu a que a capital do país ousasse recepcionar, em 1900, a Exposição Universal, ou Expo 1900, um evento de proporções gigantescas. Mais de 48 milhões de pessoas visitaram suas instalações, que mostravam, desde as mais modernas invenções tecnológicas, até exposições humanas – seres considerados “exóticos” aos olhos dos europeus eram mostrados como atração, e muitos desses homens e mulheres foram trazidos das colônias francesas africanas e asiáticas, como Argélia, Madagascar e Indochina Francesa.

O gigantismo do evento foi tamanho que tomou as atenções da sociedade, tanto que outros acontecimentos importantes da época foram relegados a plano inferior, inclusive pela imprensa: o Caso Dreyfuss, o Escândalo do Panamá e os II Jogos Olímpicos da Era Moderna, que acabaram integrados à Exposição Universal, na forma de Concurso Internacional de Exercícios Físicos e Esportes, e durando longos cinco meses, de 20 de maio a 28 de outubro. A Olimpíada de Paris – ou o Concurso Internacional de Exercícios Físicos e Esportes, como queiram – durou pouco mais de cinco meses (de 20 de maio a 28 de outubro) e foi um “primor” de bagunça, tanto que até bem pouco tempo não se sabia ao certo quem tinha sido ou não campeão olímpico naquela edição. Até hoje, levantamentos estatísticos continuam a ser feitos, e não se pode afirmar como incontroversos os resultados oficiais dos Jogos de Paris 1900 colhidos pelo COI.

Paris 1900: plena Belle Époque, época da Expo 1900 e dos Jogos Olímpicos dos quais ninguém tomava conhecimento. Foto: éditeur de cartes postales ELD.

Como foi relegada a evento auxiliar à Expo 1900, a Olimpíada de Paris não teve cerimônia de abertura, tendo sido a primeira vez que um chefe de Estado do país-sede não se dignou a proferir uma única palavra de discurso saudando os Jogos Olímpicos – para frustração do parisiense Barão de Coubertin. Ao contrário, a Exposição Universal teve toda a pompa e circunstância na inauguração em 14 de abril, com a abertura oficial sendo declarada pelo presidente Émile Loubet, que estava no poder desde 18 de fevereiro de 1899 e era o sétimo ocupante do cargo desde o advento da Terceira República Francesa em 1870, eleito em 18 de fevereiro de 1899 pela Assembleia Nacional, com 483 votos contra 279 dados ao ex-primeiro ministro Jules Méline. A disputa entre Loubet e Méline era mais que entre dois candidatos à presidência da República. Representava o confronto entre duas visões distintas acerca de um assunto que, àquela época, dividia o país: o caso Dreyfus. Méline era, no dizer da época, anti-dreyfusard, ou seja, opositor a Dreyfus; Loubet, por sua vez, se declarava neutro, mas era apoiado por dreyfusards, quer dizer, apoiadores de Dreyfus.

Tudo começou quando, em 1894, o jovem capitão de artilharia do Exército Francês Alfred Dreyfus foi acusado de ser espião da Alemanha, país que o teria prometido pagar em dinheiro em troca do segredo de um canhão de 120 milímetros que estaria sendo fabricado na França. A “prova” da acusação era um papel manuscrito sem assinatura alguma que teria sido encontrado na lata de lixo da embaixada alemã em Paris. Era o início de um processo judicial sumário que iria pôr na berlinda Dreyfus e condená-lo, em tempo recorde e sem dar qualquer chance à sua defesa, à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, colônia localizada no norte da América do Sul.

Durante os anos seguintes à condenação de Dreyfus, várias foram as tentativas de revisão de sua pena, sem sucesso, até que, após novas revelações sobre o caso serem descobertas – inclusive o nome do verdadeiro traidor, Charles-Ferdinand Walsin Esterházy, também militar do Exército Francês e um agente duplo a serviço da espionagem alemã –, o consagrado escritor Émile Zola publicou na edição de 13 de janeiro de 1898 do jornal L’Aurore uma carta endereçada ao então presidente Félix Faure e intitulada J’accuse (Eu acuso), um bem fundamentado documento de defesa de Dreyfus, que valeu a Zola a condenação a um ano de prisão por difamação e o exílio na Inglaterra. Nos últimos anos do Século XIX, a França estava dividida entre os que apoiavam o capitão e os que o consideravam culpado, e essa divisão repercutia na política e até mesmo na vida familiar.

A eclosão do Caso Dreyfuss revelaria uma sociedade burguesa profundamente conservadora, católica e bastante apegada às suas forças armadas como guardiãs da pátria. A Terceira República Francesa, erigida sobre tais valores, se converteu em um regime que dava ao país a estabilidade perseguida desde a Tomada da Bastilha – apesar do crescimento do movimento anarquista, pano de fundo do assassinato do presidente Sadi Carnot, em 1894, e do antissemitismo crescente. Em 1900, ano dos Jogos de Paris, já eram três décadas de estabilidade do regime e 25 anos em que uma ordem constitucional vigorava sem interrupções. A política interna estável favorecia a modernização econômica da França, com o aumento da malha ferroviária em todo o país e da produção dos mais variados insumos agrícolas, o que implicava mais exportação e, por consequência, o largo alcance da cultura francesa pelo mundo – que se impunha também através da expansão colonial que se dera a partir de 1880, sobretudo na África e no Sudeste Asiático.

O Le Petit Journal de 20 de janeiro de 1895 mostrava Dreyfus, humilhado, na prisão, por um crime que jamais cometera. O Caso Dreyfus dividiu a sociedade francesa no final do Século XIX.

O modo de vida dos franceses passou a ser imitado pelas elites mundo afora, desejosas de reproduzir, em seus respectivos territórios, a Belle Époque, a qual, porém, não era tão bela como o nome sugeria, pois não englobava, por exemplo, participação efetiva das mulheres, que continuavam consideradas como cidadãs de segunda categoria – sequer poderiam votar, direito exclusivo dos homens maiores de 21 anos. É de se considerar, portanto, importante avanço a participação, pela primeira vez, de mulheres em Jogos Olímpicos na edição de Paris 1900 – 22 atletas disputaram golfe e tênis, as únicas modalidades que lhes eram permitidas, a despeito da objeção do Barão de Coubertin, que entendia não terem as olimpíadas espaço para atletas do sexo feminino.

Faltava à Belle Époque, também, o olhar necessário à educação, que era direcionada para incutir nas crianças um sentimento de unidade nacional que beirava ao ufanismo. A maioria dos enfants recebia, à época, nada mais que a educação primária – mesmo em 1914, com a sociedade francesa já mais evoluída em relação a 1900, apenas 5% dos meninos haviam recebido educação secundária. Finalmente, a Belle Époque era socialmente desigual, e isso se observava na pobreza dos bairros operários dos subúrbios de Paris, em contraponto ao luxo e à ostentação exibidas na Exposição Universal.

Esse texto é baseado no Capítulo 2 de JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA, livro de Paulinho Oliveira à disposição para download na plataforma Amazon.


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Paulinho Oliveira

Jornalista (MTb 01661-CE), formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2004.Escritor, com duas obras publicadas: GUERREIROS DE SANTA MARIA (Fortaleza, Premius Editorial, 2013, ISBN 9788579243028) e JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA (Fortaleza, publicação independente, 2020, ASIN B086DKCYBJ).

Como citar

OLIVEIRA, Paulinho. Paris 1900 – França: paz externa e efervescência interna. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 54, 2021.
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