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Parque Campo de Marte: o mais novo condomínio-clube da cidade

Max Filipe Nigro Rocha 6 de novembro de 2017

Como se não bastasse a proposta de passar o Estádio do Pacaembu para a iniciativa privada – já discutida anteriormente nesse mesmo espaço – a gestão Dória estende seu projeto privatizador para outros espaços públicos da cidade de São Paulo.

Seu alvo mais recente é o Campo de Marte, local do primeiro aeroporto da cidade de São Paulo e parte integrante da história do futebol paulistano pois abriga diversos clubes “de várzea”, além de 6 campos de futebol. Responsável também por fazer parte da formação de jogadores como Basílio, herói corintiano de 1977, e Serginho Chulapa, de Santos e São Paulo entre outros tantos.

A proposta do prefeito-gestor é, mais uma vez, entregar as pérolas do espaço público da cidade para a constante pressão imobiliária que assola os cidadãos paulistanos.

 

24/10/2017- São Paulo- A Prefeitura apresenta nesta terça-feira (24) o projeto do novo Parque Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Com cerca de 400 mil m², o parque será implantado em uma área do Aeroporto Campo de Marte objeto de acordo firmado entre a Prefeitura e o Governo Federal no mês de agosto. Foto: SECOM
Doria e o projeto do novo Parque Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Com cerca de 400 mil m², o parque será implantado em uma área do Aeroporto Campo de Marte objeto de acordo firmado entre a Prefeitura e o Governo Federal no mês de agosto.
Foto: SECOM.

Devido a atual conjuntura do país e a avalanche de ações que restringem o espaço da cidadania e da diversidade na cidade de São Paulo, cremos ser necessário desmontar o discurso que vem sendo implantado em ritmo acelerado. Para tanto, precisamos novamente expor as estruturas das falácias produzidas pela atual gestão municipal, que ergue as bandeiras da eficiência e da racionalidade como modelo de políticas públicas a serem implementadas.

É recorrente nas falas do atual prefeito o uso de termos que reforçam a necessidade de redução do gasto público, da eficiência e da parceria com os setores privados. Considerando a sua origem de lobista não era de se esperar algo diferente, mas quais as complicações causadas pela implantação de políticas públicas de um prefeito que afirma, com orgulho, não ser um político?

Primeiramente, sua recente aproximação do governo Temer inundado em escândalos de corrupção e protagonista da extinção de diversos direitos da população brasileira, parecem indicar outra direção. Aponta para uma ação política concatenada entre as duas instâncias de poder que procuram justamente restringir o acesso à cidadania, seja no âmbito nacional quanto no municipal. A fala do atual ocupante da cadeira de Presidente da República não nos deixa dúvidas ao ressaltar a conveniência da aliança para ambos os lados:

“Vejo aqui um parceiro, um companheiro, que não tem uma visão municipalista, mas federal, de conciliação […] Há um emocionalismo no país, e talvez não tivéssemos conseguido o acordo se não tivéssemos passado por isso.” [1] (Grifo nosso)

Ou não seria possível estabelecer uma similaridade entre as propostas de reforma trabalhista, da previdência e de redução do salário mínimo para 2018 e as iniciativas como o “Cidade Linda”, a privatização do Pacaembu, a cobrança de ingressos no Parque do Ibirapuera e a oferta de ração humana a população sem acesso à alimentação?

E o que dizer das negociações escusas ocorridas no Palácio do Planalto e as “vantajosas parcerias” entre prefeitura e iniciativa privada? Se essas posições não têm uma conotação política, o que seria então?

A ação supostamente apolítica de João Dória, embasada por uma racionalidade empresarial, é portadora de um projeto de gentrificação da cidade de São Paulo que visa garantir a submissão do espaço público aos interesses privados do setor imobiliário e, em último caso, ao capital.

A transformação do complexo do Campo de Marte em parque coloca em risco, em primeiro lugar, os campos de futebol e as relações sociais que se organizam em torno deles. Embora o prefeito garanta que tal espaço não sofrerá alteração, seria simplista considerar que tal projeto, ao procurar normatizar e disciplinar as práticas ocorridas ali, não irá restringir/coibir/bloquear o acesso dos atuais cidadãos usuários do espaço. Mas vamos além, o que está em jogo é o cerceamento da autonomia dos habitantes mais pobres da cidade e o combate à utilização dos espaços urbanos que fogem da lógica financeira e hegemônica.

De antemão, podemos apontar que a redução dos campos de futebol, a ameaça à permanência dos diversos times de futebol amador e a implantação de equipamentos urbanos mais condizentes com as práticas esportivas e de lazer individuais das classes médias aburguesadas são poderosos indicativos para observarmos o que está em jogo.

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Maquete do Parque Campo de Marte. Foto: SECOM.

Por trás de uma fachada socialmente aceita de que é necessário aumentar as áreas verdes e os parques da cidade, podemos constatar que a prefeitura está assumindo a condição de órgão executor que trabalha com o intuito de garantir as condições necessárias ao processo de especulação imobiliária. Pista de corrida, ciclovia, cachorródromo (sic), quadras de futebol society e estacionamento para os veículos ornam com as propagandas de imóveis que anunciam a infraestrutura tão desejada pelos moradores dos condomínios-clubes da cidade. Como relata o G1:

“segundo Doria, ‘toda implantação será feita pelo setor privado’. Ou seja, nada sairá dos cofres públicos. Ele afirmou que ainda não conversou com potenciais parceiras, mas mostrou otimismo de que não faltarão interessadas em comprar a ideia, apesar do custo, estimado em, no mínimo, R$ 250 milhões.” [2] (Grifo nosso)

 

Fonte: Prefeitura de São Paulo
Parque Campo de Marte. Foto: SECOM.

Se não fosse assim, quais os interesses do setor privado de investir cerca de 250 milhões de reais na implantação desse novo parque? Não nos parece nada absurda a hipótese de que é para assegurar que o valor do metro quadrado dos empreendimentos em torno dispare, já que a cidade é extremamente carente de espaços de lazer.

Com isso se desmonta a pretensa preocupação da prefeitura em preservar a história do local ao propor a criação do Museu Aeroespacial Santos Dummont, mas que ao mesmo tempo deixa de lado toda a trajetória de histórias e memórias de milhares de cidadãos anônimos que ainda usam os campos de futebol do Campo de Marte como espaço de sociabilidade.

Portanto, o parque do Campo de Marte cumprirá a função de oferecer o diferencial desejado pelos cidadãos-consumidores sem de fato onerar a iniciativa privada, que então economizará uma vez que não será mais necessária a implantação de uma estrutura específica de lazer para cada empreendimento ou a aquisição terrenos que comportem instalações que vão além das torres residenciais. Aos mais abastados, além da vista privilegiada, talvez esteja aberta a possibilidade de um acesso exclusivo à nova área verde da cidade.

Desse modo, o processo de verticalização seguirá acelerado como prega Dória, e assim se descortina mais um dos significados de eleger um gestor-empresário para administrar as políticas públicas da maior cidade do pais.

*Caso você decida se manifestar a respeito da preservação dos campos de futebol no Campo de Marte, acesse:

24/10/2017- São Paulo- A Prefeitura apresenta nesta terça-feira (24) o projeto do novo Parque Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Com cerca de 400 mil m², o parque será implantado em uma área do Aeroporto Campo de Marte objeto de acordo firmado entre a Prefeitura e o Governo Federal no mês de agosto. Foto: SECOM
O novo campo de futebol que faz parte do projeto Parque Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Foto: SECOM.

[1] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1907823-temer-e-doria-criam-parque-no-campo-de-marte-com-museu-aeroespacial.shtml acessado em 02/11/2017.

[2] https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/doria-apresenta-projeto-de-parque-no-campo-de-marte-com-museu-e-cachorrodromo.ghtml acessado em 02/11/2017.

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. Parque Campo de Marte: o mais novo condomínio-clube da cidade. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 6, 2017.
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