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Passa anel e as relações de gênero na infância

Wagner Xavier de Camargo 27 de maio de 2018

Dia desses, num dos últimos fins de tarde do verão de 2018, passava distraído em frente a uma escola municipal, nos arredores de minha casa, quando ouvi uma gritaria de crianças em êxtase. O grupo, de meninas e meninos, na faixa de seus sete ou oito anos, ria e se perguntava: “com quem está o anel?”. Logo busquei rápido em minhas referências e me lembrei de que se tratava da brincadeira de “passa anel”, que havia sido muito comum em meus anos escolares. Quando criança, lembro-me de que havia variações do nome do jogo, que podia ser conhecido como “anelzinho”, “jogo do anel” e “jogo do botão”. E, via de regra, era uma brincadeira de meninas, em grupos de cinco ou mais componentes.

Brincadeira de Passa Anel. Foto: Wagner Xavier
Brincadeira de Passa Anel. Foto: Wagner Xavier

 

Ora, fiquei surpreso em ter presenciado a atividade entre estudantes em pleno século XXI. Isso mostra que, de um lado, tal brincadeira sobreviveu ao tempo, ressignificou-se, e continua viva como uma atividade de lazer (reeditando brincadeiras tradicionais), mesmo em uma cidade grande como Campinas. E de outro, demonstra que, para aquele grupo heterogêneo de meninos e meninas, as questões de sexo/gênero talvez foram deixadas de lado.

Embora tenha uma referência em termos de cultura popular e tenha passado “boca-a-boca” entre gerações mais antigas, o “passa anel” não parece ter sido muito registrada do ponto de vista escrito. Pouca coisa pode ser encontrada na internet e mesmo em uma rápida busca entre referências acadêmicas. Por exemplo, de acordo com o “Mapa do brincar”[1], a origem brasileira do “passa anel” está localizada na cidade de Embu das Artes, na grande São Paulo. Já, segundo o site Projeto Escolar [2], há um jogo similar ao “passa anel” nos Estados Unidos, chamado “The Button Game” (ou “Jogo do Botão”, português). Durante a brincadeira as crianças dizem “button, button, who’s got the button?” (botão, botão, quem está com o botão?) e, a medida em que o escolhido tenta adivinhar com quem está o botão, todos riem de curiosidade.

Em minha (longínqua) infância brincava de “passa anel” com as meninas. Não que não houvesse problemas de gênero ou bullying em relação a isso e a mim, mas as marcações não eram tão cerradas e muito menos violentas, como se constata atualmente. Alguém na roda ficava com um anel na mão e as demais pessoas se colocam ao seu redor, em pé ou sentadas, umas ao lado das outras, com os braços estendidos, as palmas das mãos unidas e em atenção. Brincávamos horas a fio, sempre rindo e quase nunca descobrindo com quem estava o bendito anel.

A pessoa escolhida para iniciar era a “passadora” e era quem unia as palmas de suas mãos com o anel dentro delas e passava suas mãos por dentro das mãos das outras pessoas. Ela tinha que deixar o anel dentro das mãos unidas de alguém escolhido, sem que ninguém percebesse. Depois desse gesto, ela perguntava: “com quem está o anel?” e escolhia alguém para responder. A algazarra era geral e quem acertasse viraria o/a “passador/a”. Caso o palpite fosse furado, o anel seguia com a mesma pessoa até ser descoberta sua nova origem.

Lembro-me de uma vez quando Maria Cleide, que sempre levava o anel oitocentista de sua bisavó, faltou. Subvertemos a brincadeira e fizemos “passa anel” com uma moedinha de chocolate Pan (da época), que acabamos logo comendo. Ou ainda, quando em outra situação de ausência de nosso anel oficial, brincamos com umas pedrinhas envoltas por musgos, que eram nossos “diamantes brutos” imaginários.

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Foto: Youtube (reprodução).

Entre meninas eu brincava feliz, assim como brincava o grupo misto que vi naquele dia. Acredito que o anel se tornou um objeto desgenerificado com o tempo, visto que hoje (mais do que nos anos 1970 da minha infância) muitos homens o usam, de variadas cores e tamanhos. Contudo, sempre devemos ficar alerta a atribuição forçada de rótulos que desencadeiam preconceitos, como separar brinquedos ou objetos para meninas e outros para meninos, ou ainda brincadeiras de meninas e outras de meninos.

Isso é perigoso sob muitos aspectos, pois dividimos o mundo de modo impositivo e preconceituoso. Além de reforçar o binarismo de gênero em jogos e esportes, dizendo que tal brincadeira é masculina e outra é feminina, ou dado esporte é feminino e outro é masculino, também não problematizamos esse complexo sistema sexo/gênero e nem pensamos em outros sujeitos sexualizados, que não querem participar dessas classificações rígidas de um lado ou de outro.


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Disponível em: <http://mapadobrincar.folha.com.br/brincadeiras/diversas/733-passa-anel>, acesso em 18 abr. 2018.

[2]  Disponível em: <http://www.projetodecolar.com.br/?p=596>, acesso em 18. abr. 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Passa anel e as relações de gênero na infância. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 27, 2018.
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