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A Pátria de Chuteiras morreu. Viva o País do Futebol!

Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, saltaram aos olhos de todos a apatia e o desinteresse dos brasileiros com a mais importante competição internacional de seleções de futebol. Os indícios estão por toda parte: quase não há ruas decoradas, carros com bandeiras e fitinhas nem – talvez o principal ícone ausente – pessoas com a camisa amarela da seleção. Segundo um artigo que li recentemente, no Brasil, semana passada, o termo “Copa do Mundo” estava mais de cinquenta posições distante do topo da lista de termos mais buscados no Google. Na maior parte das vezes, associado a uma pergunta muito significativa: “quando começa a Copa do Mundo?”…

Há pouco mais de dez anos, realizei a pesquisa que levaria ao vídeo etnográfico Ritos da Nação, de 2007 (veja o vídeo abaixo).

Visitei várias cidades durante a Copa de 2006. Testemunhei ruas desertas e praças cheias, bandeiras e camisas amarelas por toda parte. Porém, já então, parecia claro que os “torcedores” mais entusiasmados não estavam nas praças e bares, mas nos anúncios publicitários. A exploração mercantil da Copa do Mundo – e do universo do futebol em geral – não é novidade. Enquanto ela andou pari passu com o interesse popular pela Copa, conseguiu-se manter um jogo de reflexos relativamente estável de significados: os anúncios mostravam mais ou menos o que as pessoas faziam, as pessoas mais ou menos agiam como nos anúncios. Com a apatia que tomou conta dos brasileiros em 2018 – estou entre eles – escancarou-se a disjunção entre o mercado e a cultura: os/as torcedores/as que frequentam os anúncios dos patrocinadores não mais nos representam. Não estamos empolgados como eles/as, não choramos abraçados à bandeira, não vestimos camisas amarelas, não cantamos o jingle deles. Não somos como eles/as, não mais. A Pátria de Chuteiras morreu.

Como já disse em outro artigo, este processo não começou ontem, nem com o 7 x 1. A perda da potência simbólica da camisa da seleção brasileira como símbolo da nacionalidade vem se desenhando há bem mais de 20 anos. Só que em 2018 ficou impossível sustentar o que já vinha sendo apresentado como uma farsa mais ou menos escamoteada a cada quatro anos: aquele time com camisa da CBF, logotipo da Nike e promovida pela Rede Globo com narração de Galvão Bueno não mais nos representa. A pá-de-cal foi a partida contra a Alemanha: quem perdeu de 7 x 1 foram eles, não nós.

Por outro lado, o “país do futebol” continua vivo, forte e saudável. Antigamente, jogava-se futebol de botão; com eles, aprendia-se escalações, esquemas táticos, equipes e jogadores de outros lugares, escudos, emblemas ou sistemas de torneio. Hoje, aprende-se a mesma coisa com videogames de futebol ou jogos online. Sem falar nos múltiplos brinquedos e jogos relacionados ao futebol: “dedobol”, “preguinhos”, “gol-a-gol”, “golzinho”, “bafo”, etc. O futebol se expressa também nos docinhos de aniversário com as cores do clube, nos enfeites com as mesmas cores em portas de maternidade, no nome de craque dado ao filho recém nascido. Em tudo isso se manifesta adesão e pertencimento, normalmente sem envolver financeiramente o torcedor com o clube. Esse espaço de livre apropriação e uso de símbolos significantes – cores e emblemas – é precioso e deve ser preservado. Ele salva o futebol clubístico do destino da seleção brasileira: hoje, um grupo de meninos ricos, que vivem na Europa ostentando joias, carrões e atrizes, vestidos com camisas amarelas da Nike. Uns coxinhas.

O espaço simbólico de “ícone de identidade” que a seleção brasileira perdeu foi ocupado pelo futebol clubístico. A propósito, é bom lembrar que ser chamado de “torcedor de Copa do Mundo” é, entre torcedores, um insulto. O termo descreve alguém que não entende nada de futebol, não torce por nenhum time e só assiste partidas a cada quatro anos. E em cada cidade do Brasil, os clubes de futebol articulam lógicas locais de pertencimento e diferença: torcer para um time implica ter rivais – e ter que lidar com eles, na mesma casa, na mesma rua, na mesma escola ou empresa. Assim, a adesão torcedora a um clube enraíza-se no cotidiano, como forma de vínculo afetivo voluntário, livre e gratuito. Este é o ponto que desespera os gestores de marketing esportivo: como fazer os/as torcedores/as gastarem seu dinheiro com o clube deles? Quanto alguém está disposto a pagar para ser torcedor, quando se pode torcer de graça? Quero dizer “de graça” em termos monetários, porque em termos afetivos, torcer custa – e muito! Custa muito sair de casa quando seu time foi rebaixado, quando levou uma goleada ou foi eliminado de uma competição importante. De modo inverso, torcer “recompensa” quando seu time é campeão ou goleou um oponente importante. Igualmente nos dois casos, sem que qualquer valor em dinheiro esteja necessariamente implicado.

A quantidade de afeto investida também é arbítrio de cada torcedor/a: quem torce discretamente mobiliza menos afeto do que quem torce ostensivamente. Como fichas em uma mesa de pôquer, quanto mais alguém coloca em jogo – gozações, apostas, pegadinhas, provocações, etc – mais está se arriscando a ganhar ou perder. Cada um torce para o clube que quiser, e o faz como, quando e onde quiser: esta característica quase anárquica da adesão clubística é, na minha opinião, uma salvaguarda contra a excessiva mercantilização do futebol. A se deixarem os gestores de marketing realizarem plenamente seus projetos, ocorrerá com o futebol clubístico o mesmo que aconteceu com a seleção brasileira. A gestão mercantil dos novos estádios e arenas dá uma boa ideia do escopo desse projeto. Por exemplo, ingressos a preços altos (para elitizar a torcida espantando os torcedores pobres e atraindo “consumidores” com maior “poder de compra”), cadeiras em todo o estádio, para que os torcedores fiquem sentados e bem-comportados assistindo o “espetáculo”, estacionamentos cobertos, venda de ingressos pela Internet, etc. Gentrificação futebolística sem disfarces.

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Decoração de festa de aniversário em Manaus/AM. Foto: Édison Gastaldo – Projeto Torcedores.

Felizmente, contra o assédio do mercado capitalista, existe a cultura e sua resiliência. O clube do meu coração não se confunde necessariamente com estes jogadores que estão em campo usando nosso uniforme. Menos ainda com estes dirigentes e patrocinadores. Torcedores/as pensam com suas próprias cabeças, e não é por usar as cores do nosso clube que dirigentes, patrocinadores, técnicos e jogadores estarão automaticamente justificados. Pelo contrário, cada um deles pode ser violentamente criticado como um usurpador indigno da posição que ocupa.

Por ser assim intangível, puro e incontrolável, quase selvagem, o afeto dos/as torcedores/as não se vende. Nem se compra. Ele se mistura com elementos profundos da moralidade, como honra, respeito e lealdade, valores acima de qualquer valor em dinheiro. Nesta fonte inesgotável de valores morais reside a resistência contra quem tenta tornar o futebol apenas um negócio. Do modo como o entendo, o futebol não acontece somente nos estádios: ele está nas ruas, nos bares, escolas e prédios, onde se fala, se brinca e se briga, onde se aposta e se desafia em nome de um clube. No Brasil, usamos o futebol para viver melhor: para rir e chorar, para vibrar e sofrer. Festa, tragédia, comédia e drama. De graça, todas as semanas. Viva o país do futebol!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Édison Gastaldo

Antropólogo, docente e pesquisador no Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Autor de "Pátria, Chuteiras e Propaganda"(AnnaBlume/Unisinos, 2002), "Erving Goffman, desbravador do cotidiano"(Tomo Editorial, 2004), "Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional (com Simoni Guedes, Intertexto, 2006), "Publicidade e Sociedade" (Sulina, 2013) e "Etnometodologia & Análise da Conversa"(com Rod Watson, Vozes/PUC-Rio, 2015).

Como citar

GASTALDO, Édison. A Pátria de Chuteiras morreu. Viva o País do Futebol!. Ludopédio, São Paulo, v. 108, n. 19, 2018.
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