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Pelé: a construção do mito (1958-1962)[1a. parte]

Denaldo Alchorne de Souza 15 de fevereiro de 2023

Dia 29 de Junho de 1958, Estádio Rasunda, Estocolmo, Suécia. Eram 45 minutos do segundo tempo.[1] Os brasileiros estavam de posse da bola e ganhavam dos suecos por 4 a 2. Bastava apenas o apito final do juiz para comemorarem, pela primeira vez, o título de campeões mundiais de futebol. Muitos choravam e gritavam até não mais poder. Última jogada. A bola foi lançada no semicírculo perto da meta. Pelé saltou, tocou de cabeça e marcou, enquanto era derrubado. 5 a 2! Pelé estava sendo socorrido e o jogo terminava! Brasil campeão do mundo![2]

Os jogadores num primeiro momento ficaram divididos entre comemorar o título e socorrer Pelé que estava estendido no chão e desacordado. Garrincha, num gesto rápido, levantou-o pelos pés. Deitou-o novamente. Flexionou suas pernas. Aos poucos, Pelé voltou a si. Garrincha elevou-o e abraçou-o. Os jogadores aliviados comemoram com mais entusiasmo. Suspenderam o garoto de 17 anos nos ombros que, por sua vez, chorava copiosamente.

Os cinegrafistas e os fotógrafos responsáveis pelas imagens de dentro do campo registraram com destaque o ocorrido. Foi esta cena, de Pelé chorando e carregado pelos companheiros, que ficou gravada na memória dos europeus que viram o jogo pela televisão. Ou dos brasileiros que assistiram nos cinemas os melhores momentos da partida. Era esta cena, fotografada em diversos ângulos, que se tornou uma das preferidas nas revistas e jornais do Brasil e do mundo.[3]

Havia algo nesta narrativa, nesta cena, que sintetizava toda a campanha dos atletas na Copa do Mundo. Mais ainda, ela sintetizava a história do esporte bretão no Brasil, a história do próprio Brasil.

 

Pelé: um menino

Edson Arantes do Nascimento, conhecido como Pelé, começou a jogar pelo Santos FC em 1956, com apenas 15 anos. No ano seguinte foi efetivado como titular da equipe e se tornou artilheiro do campeonato paulista com 17 gols. Ainda em 1957, disputou um torneio por um combinado Santos-Vasco contra times brasileiros e europeus. Pelé marcou gols em todas as partidas. Por causa deste desempenho, foi convidado a vestir pela primeira vez a camisa da seleção brasileira que iria disputar a Copa Rocca contra os argentinos. Na primeira partida, os adversários abriram o placar. Pelé entrou no segundo tempo e empatou. Mas, os argentinos acabaram vencendo por 2 a 1. Na segunda, os brasileiros venceram por 2 a 0, gols de Mazzola e Pelé, e consequentemente ganharam a taça.[4]

O ano de 1958 começou no mesmo ritmo do anterior: muitos gols. Em abril, o nome de Pelé estava entre os vinte e dois nomes convocados para disputar a Copa da Suécia. Antes de viajar, a seleção realizou alguns amistosos nos estádios do Maracanã e do Pacaembu. Foram dois encontros contra os paraguaios e dois contra os búlgaros. No único confronto não vencido pelos brasileiros, empate sem gol contra os paraguaios, Pelé não jogou. Para finalizar a fase preparatória em terras brasileiras, realizou-se uma partida contra o time do Corinthians. O selecionado ganhou de 5 a 0, mas, num lance isolado, o zagueiro corintiano atingiu o joelho direito de Pelé com um “carrinho”. A contusão era grave, o tirou de campo e deixou todos em dúvida em relação à sua convocação. A comissão técnica decidiu mantê-lo, já que era jovem e teria tempo suficiente para se recuperar.

Desde a contusão, Pelé enfrentava um rigoroso tratamento com água fervente no joelho. Quando foi convocado para jogar contra a equipe da União Soviética durante a Copa do Mundo, ele se colocou prontamente à disposição. Daí em diante, foi uma sucessão de feitos memoráveis. Tudo ampliado pela imagem do craque-menino de 17 anos.

Quando Pelé, na final da competição, começou a chorar copiosamente nos ombros dos outros atletas, os brasileiros ficaram emocionados. Primeiramente, apenas ouvindo a locução no rádio, nas imagens das revistas e jornais e, depois, nos filmes sobre a Copa do Mundo. Era como se toda uma nação tivesse conquistado não somente uma competição futebolística; mas também uma face, um rosto, uma identidade, nas lágrimas de Pelé.

O trabalhador brasileiro, tão depreciado em seu orgulho e em seu amor-próprio, vivendo em constante dificuldade econômica e desrespeito social, passou a se identificar com a figura daquele garoto negro. Viu em Pelé, um mito. Não de um brasileiro do passado, de um país de séculos de escravidão, racista, triste e derrotado. Mas um novo Brasil, um Brasil vencedor, apesar de multirracial; um Brasil admirável, apesar de pobre; um Brasil sensível, apesar de alegre; e um Brasil nobre, apesar de ser popular.

O mundo moderno está repleto de mitos. Existem mitos ligados à política, ao cinema, à música ou aos esportes. Mas para que alguém seja considerado mito, é necessário que as pessoas acreditem em suas façanhas. Logo, faz parte de uma relação com os seus seguidores, com aqueles que o idolatram. Tem que ser compartilhado por um grupo, a partir da construção de um sentido comum.

Uma importante contribuição teórica é a de Mircea Eliade, para quem o mito narra sempre algo que passou a existir, algo que passou a ser. Trata-se, evidentemente, de realidades sagradas, porque é o sagrado que é o real por excelência. Segundo o autor, o que os homens fazem sem modelo mítico pertence à esfera do profano, sendo uma atividade ilusória e vã. Para o homem identificar-se com o real, ele tem que dispor de modelos exemplares. Assim, a função mais importante de um mito é a de fixar modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas como a alimentação, a sexualidade, o trabalho, a educação, o lazer, a cultura e outras.[5] É com esse entendimento que a possibilidade de trabalhar com a noção de mito se coloca de maneira muito atual. Mesmo que o pensamento mítico tenha sido abolido, pode-se notar que o aspecto estrutural, universal e sobre-humano dos mitos fora mantido em nossas sociedades.

Fica evidente, que o discurso mítico passou a integrar o processo de compreensão da realidade social. Isto permitiu que o campo de investigação se ampliasse e surgissem autores que, apesar de não trabalharem no terreno do sagrado, situassem o mito como uma noção pertencente ao campo das crenças. Para Raoul Girardet, o mito é uma crença que fornece uma explicação, um número de chaves para a compreensão do presente, uma sintaxe onde se apresentam os elementos construtivos da narrativa que elas compõem. Nesse desconcertante labirinto que compõe a realidade mítica, para aquele que teve a coragem de nele penetrar, ela fornece a promessa de um fio condutor. Toda a questão está em saber como utilizar-se dele, em saber como agarrá-lo.[6]

Desta forma, trataremos os mitos do futebol no Brasil como fenômenos culturais que fornecem modelos exemplares de comportamento para a conduta dos homens, conferindo, por isso mesmo, significado. Se o jogador de futebol era considerado um mito, isso se devia à existência de características que correspondiam a algum tipo de anseio pré-existente na sociedade. Desta forma, estudar a construção de mitos populares, como o de Pelé, possibilitar-nos-á conhecer um pouco melhor as concepções que os trabalhadores tinham a respeito da identidade nacional naquele período.

 

Pelé
Pelé em 1963. Foto: Hugo van Gelderen/Anefo.

A predestinação de Pelé

Entre o dia 29 de junho de 1958, o da grande vitória esportiva, dias 3 e 4 de julho, quando retornaram ao Rio de Janeiro e São Paulo, os periódicos destas cidades estavam desorientados. Não sabiam como compor as manchetes. As capas da revista O Cruzeiro dos três números posteriores à conquista da Taça não tiveram o futebol como principal destaque. Na edição de 5 de julho, a foto da capa era a coroação de Adalgisa Colombo como Miss Brasil, tendo no canto superior direito uma vinheta onde dizia: “Extra! As vitórias do Brasil na VI Copa do Mundo”. Na edição de 12 de julho, outra vez a foto principal era de Adalgisa Colombo, mas agora existia uma foto menor com Belini e uma vinheta que dizia: “Extra. Na redação de O Cruzeiro os campeões do mundo viveram momentos de alegria e emoção”. Finalmente, na edição de 19 de julho, uma foto da bailarina de Yolanda Goppis. Pode-se observar um distanciamento em relação à Copa do Mundo em outros periódicos também. A revista Manchete lançada após a conquista do campeonato mostrava uma torcedora comemorando, que mais parecia uma candidata a “Miss Brasil”.[7] Este relativo desinteresse da imprensa brasileira nunca mais se repetiu nas futuras edições da Copa do Mundo, principalmente quando era finalizada com a vitória da equipe nacional.

O que pretendo argumentar é que foi somente através do contato dos profissionais da imprensa com os torcedores, durante as comemorações da vitória, no dia 29 de junho, e após a recepção aos campeões, é que eles conseguiram ter um filtro que pudesse hierarquizar os principais interesses dos seus leitores. Afinal, o Brasil nunca fora campeão do mundo no futebol. E a imprensa brasileira nunca havia lidado com esse “problema” anteriormente. Era a primeira vez. Tudo aquilo que eles estavam vivendo era um aprendizado.

É interessante notar que, nas reportagens específicas sobre a Copa do Mundo até o retorno da equipe ao Brasil, o jogador de maior destaque era Didi, considerado o cérebro da equipe, o general que organizava os seus soldados. Para A Gazeta Esportiva, do dia 2 de julho, Didi foi: “Eleito o nº 1 da Taça do Mundo, posto este que nos pareceu assegurado desde o primeiro jogo”.[8]

A sua mulher Guiomar era quase uma “primeira-dama” do futebol nacional. As reportagens sobre o casal infestavam as revistas. O que causa surpresa e espanto ao leitor que disponha de paciência para ler as reportagens sobre a Copa, em dezenas de revistas e jornais, antes e depois à chegada dos campeões em solo brasileiro, é a mudança efetuada nas manchetes. Após retorno, o número de matérias sobre Pelé e Garrincha – sobre suas infâncias, sobre o local onde nasceram ou onde cresceram, como se tornaram jogadores, sobre suas famílias – ganharam destaque absoluto. Os outros craques, inclusive Didi, se tornam meros coadjuvantes.

Concordando com Jesús Martín-Barbero, acreditamos que essas mudanças ocorreram porque o receptor/consumidor das reportagens não eram tão passivos quanto muitos gostariam de considerar. A recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação, é um lugar novo de onde devemos repensar os estudos e a pesquisa da comunicação.[9] Se as reportagens são escritas com diferentes intenções e estratégias, é inegável a participação do simples leitor, ouvinte ou espectador na sua construção. Afinal, o jornal tem que estar próximo do seu leitor, o repórter tem que ficar atento aos sentimentos e apreensões de seu público. Seja concordando ou criticando a opinião do torcedor, a imprensa escrita é uma formidável fonte para captarmos as esperanças e apreensões das pessoas comuns.

Se os periódicos preferiram fazer reportagens abordando as vidas de Pelé e de Garrincha era porque os jornalistas estavam presentes nas festividades. Estavam convivendo com o simples fã. Estavam sendo influenciados por eles. Ouviam os seus desejos, seus comentários, suas preferências. E, nesses comentários, dois nomes se sobrepunham aos demais: Pelé e Garrincha.

Em relação a Pelé, uma característica que ficava em evidência nos periódicos dos primeiros meses após a Copa era a sua predestinação. Afinal, aquele que é elevado à condição de mito sempre é considerado um predestinado. De modo geral, o herói é quem conseguiu, batalhando, transpor os limites possíveis das condições históricas e pessoais, contendo nesta proeza uma necessária dose de “glória” de um povo.[10]

Em Pelé, esta característica era ainda mais acintosa: afinal ele possuía apenas 17 anos. Era um adolescente. Um adolescente com cara de criança. Esta prematuridade assombrava a todos, no Brasil ou no exterior. Apesar dos gols sensacionais, apesar dos dribles desconcertantes, apesar do título mundial, o que mais desconcertava o público era a sua extrema juventude. Ainda durante a competição, o Jornal dos Sports fez uma matéria com o craque-garoto que havia feito o único gol da vitória contra Gales: “Tímido, humilde, escondido, de voz apagada, este é Pelé, menino puro, jogador de coração generoso”. E “não há criança mais dócil, crack mais ausente da fama, do que o menino de Três Corações, que o foot-ball bandeirante consagrou”. O entrevistador perguntou: “– Satisfeito?” E Pelé respondeu: “– Orgulhoso”. Uma nova pergunta: “– Em quem você mais pensa nesses momentos de alegria e triunfo, quando marca um goal assim?” E uma nova resposta: “– Só me lembro de minha mãe. Por nada posso esquecê-la. Ela está permanentemente comigo, ajudando-me, encorajando-me. Ela e Deus”.[11]

Após a conquista da Taça Jules Rimet, a revista O Cruzeiro comentava que nos intervalos de treinos, Pelé estava sempre nos jardins brincando de esconder ou pulando carniça, reencontrando-se com a infância que tão cedo trocou pelas chuteiras e os aplausos que queimam nos grandes estádios.[12]

Para os brasileiros, Pelé não era predestinado somente pelo que ele fez, mas pelo que ele ainda iria fazer. É isso que a predestinação de Pelé tinha de inédita; ela se voltava para o futuro. Segundo Mário Filho: “Olhe-se Pelé e pense-se logo em Santiago do Chile, onde vai ser o campeonato do mundo de 62. Pense-se em 66, em 70”. Para o jornalista: “Pelé é o título que conquistamos, os títulos que ainda vamos conquistar. Saudemos nele a eternidade do foot-ball brasileiro”.[13]

Seu irmão, Nelson Rodrigues seguia pelo mesmo caminho. Pelé era tão novo, tão garoto que dava sempre a impressão de que continuava começando. “Mas o fato é que, ainda em fraudas, ainda na primeira chupeta, Pelé havia de revelar os estigmas do crack genial. – Repito: – Pelé é o crack nato e hereditário, o crack que sempre foi”.[14]

Ver o menino Pelé, não era somente ver um glorioso futuro para o futebol brasileiro, era também ver um futuro positivo para a nação brasileira. Uma nação onde os menos favorecidos, os pobres, os negros estivessem em condição de igualdade em relação à cidadania brasileira.

Pelé
Pelé aos 18 anos. Ilustração: Francisco Carlos S. da Silva.

Os leitores queriam conhecer em maiores detalhes a vida deste menino-prodígio que ganhou a admiração de todos. Para atender esta demanda, o Jornal dos Sports encarregou o jornalista De Vaney de fazer uma matéria dividida em quatro partes sobre os primeiros anos de Pelé como jogador do Santos FC.

Na primeira parte, o leitor começou a saber como iniciou a carreira profissional de Pelé. O ex-jogador Valdemar de Brito havia descoberto o potencial futebolístico do garoto, que possuía apenas 15 anos e vivia em Bauru, uma cidade do interior paulista. O ex-craque tentava convencer o pai, seu Dondinho, e sua mãe, Dona Celeste, a levar o garoto para um grande clube de São Paulo. Valdemar achou que o mais adequado seria o Santos. E assim foi para a cidade litorânea apresentar aos dirigentes e ao técnico Lula a sua “pedra preciosa”. Após um pequeno treino, os santistas aceitaram-no como experiência. Se gostassem dele, contratavam depois. O garoto, mal saíra da infância, e precisava largar a sua família para viver nos alojamentos do clube. Foram dias terríveis. Quando havia jogo, os companheiros apareciam e ele se distraía. Mas depois o silêncio voltava e era medonho. E uma saudade, a maior saudade do mundo, fazia o diabo no coração do garoto. Então começava a escrever cartas a mamãe Celeste, porque mamãe Celeste poderia pensar que ele tinha medo de ficar só, e ele já era um mocinho de dezesseis anos.[15]

Aqui entrava uma característica básica do mito: a provação. Os dias pareciam séculos e tudo era mais longo ainda quando se lembrava de Bauru, no aconchego do lar sob os cuidados da mãe. Tinha vontade de escrever para casa: “Chega. Não posso mais. Afinal sou um guri, um garoto, uma criança”. Mas escrevia: “Vai tudo bem. Às vezes, tenho um pouquinho de saudades. Natural, não acham, a gente ter saudades?”. E depois de fechar a carta e de mandá-la para Bauru, desatava no choro.

O leitor ficava cada vez mais íntimo de Pelé, conhecera seu pai, sua mãe, sua vida familiar e, agora, conhecia suas agruras. Tanto sacrifício merecia uma recompensa. E esta veio com a apresentação de Pelé aos craques da equipe. E o garoto se sentiu como “minhoca” no meio dos “cobras”. Era por isso que a equipe era chamada de Instituto Butantã. “– Por que Butantã? O que seria Butantã?” “– Olhe a bola aí, menino! Vê se presta mais atenção, garoto!” O tom doeu-lhe. Era a primeira vez que um conselho lhe doía fundo.

Pelé teve vontade de sair correndo, fechar a porta do quarto da concentração e chorar. Não correu, não desceu, nem fechou a porta. Ao contrário, sentiu, isso sim, vontade de ficar, de demonstrar que não estava para brincadeiras. Veio uma bola alta, mais para o zagueiro do que para ele. E o defensor “ia, tranquilo, despachar a bola, quando – santo Deus, como é que foi isso? – um pé a tocou de leve, mudou-lhe a direção, fê-la sua, derramou sobre ela o melado do controle, e bateu forte, firme” realizando um bonito tento contra o goleiro Manga.[16]

Pelé foi bem nos treinos seguintes. Os torcedores encheram a Vila Belmiro para ver a nova revelação do Santos. Todavia, à noite, sua alegria virava solidão e sofrimento. Pelé ficou paradão. Escrevendo mais do que nunca, sentindo-se mais só do que antes. Foi quando perguntaram ao Ciro Costa, administrador do Santos, se não havia um local para o Pelé morar, porque ali o menino iria acabar morrendo de tédio. Disse que havia a pensão do massagista Raimundo. Pelé foi. E encontrou em D. Georgina, esposa de Raimundo, uma parte grande do coração da mamãe Celeste. Ele melhorou em tudo: na vida e na bola.

Os leitores sentiam o sofrimento de Pelé como se fossem eles mesmos. Lembravam de suas adolescências, concordavam em como era difícil um garoto pobre tentar a vida longe da família com apenas dezesseis anos. Pelé sofria, mas também suplantava os obstáculos para atingir o seu objetivo.

Também era necessário provar o seu caráter. Junto com a fama vinha a “máscara”, que no linguajar futebolístico quer dizer que o atleta é prepotente, vaidoso, falso e fingido. Os jogadores veteranos resolveram testá-lo: “– Ó menino, vá comprar lá embaixo um maço de cigarros”. Pelé ia. E mal voltava: “– Ó garoto, vá me buscar um guaraná gelado”. E não se recusava nunca. E acabaram vendo que o garoto não possuía máscara nenhuma.

Finalmente, o prêmio por tanto esforço. A escalação para o quadro de reservas da equipe. Era o dia 7 de setembro de 1956 e o jogo era contra o Corinthians de Santo André. No meio da partida, o técnico do Santos mandou o massagista preparar Pelé. Era a hora. O coração pulou. Veio a vontade de dizer que não podia entrar. E pensou em Bauru. Pensou em mamãe Celeste e papai Dondinho, iriam ler que ele jogara. E se fracassasse? E se não desse no couro? “Ele iria jogar onde, santo Deus? No lugar de quem?”. O massagista bateu-lhe na perna. Estava pronto. Ficou de pé. Perna tremendo. E a bola não saía de campo. “E ele pedindo ao Coração de Jesus, seu padroeiro, que a bola não saísse nunca. Já não houvera um caso assim, na bola ficar vinte minutos sem sair do campo? Não. Não havia caso nenhum assim”.[17]

A bola saiu e Pelé entrou para substituir Del Vecchio. Este foi cumprimentá-lo, desejando-lhe boa sorte. Começou tímido. Mas, aos poucos, com a ajuda da equipe, se soltou e começou a jogar da mesma forma que fazia nos treinos. O público ficou admirado.

Nos jogos seguintes, Pelé continuou na reserva. A equipe titular era muito experiente, estava disputando o título paulista, e o técnico resolveu não expor o garoto com tanta frequência. Ele somente voltou a jogar pelo Santos dois meses depois: “Só a 15 de novembro, mais de 2 meses após o seu aparecimento, é que Pelé era guindado, outra vez, à equipe do alto”. Notaram a coincidência das datas? Sete de setembro e quinze de novembro: parecia que Pelé estava fadado a se confundir com as grandes datas da História do Brasil. Era, sem dúvida, um predestinado.

A partir daí, a matéria mostrava como que Pelé se consolidou no Santos no ano de 1957 e depois na seleção brasileira campeã na Suécia. De Vaney lhe perguntou sobre a maior emoção de sua vida. Ele cheio de saudades contou que foi na volta da Suécia, em Bauru, com o povo de sua terra o carregando até a sua casa. “– Não foi pela carregação em triunfo, mas sim porque eu pude beijar a minha avozinha que ficara doente de tanta emoção durante a taça e não pudera ir ao Rio ou ir a São Paulo”.[18]

Reportagens como essa possuíam a qualidade de trazer o craque, até aquele momento inatingível, para perto do cotidiano das pessoas, mostrando a sua identificação com o mundo do trabalhador e ao mesmo tempo explicando porque Pelé era um mito: ele era um predestinado. Não podemos esquecer que este tipo de perspectiva visava a destacar uma evolução que era exclusiva dos escolhidos e onde a ideia de vocação aparecia de maneira intensa. Pelé teve sua vida analisada a partir de uma visão linear, segundo a qual tudo que acontecia possuía uma lógica ascensional em direção ao sucesso, que era o ponto de chegada e de conclusão da sua existência. A trajetória era sempre perfeita em termos de objetivos, determinação e vitórias pessoais.

[Continua na 2a. e última parte …]


NOTAS:

[1] O artigo está dividido em duas partes e é baseado no quarto capítulo do livro do mesmo autor, intitulado Pra frente Brasil! Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pra frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, a dialética da ordem e da desordem (1950-1983). São Paulo: Intermeios, 2018, p. 113-130.

[2] A Gazeta Esportiva, 2 jul. 1958, p. 10.

[3] Ver o filme oficial da Copa do Mundo de 1958: Hinein! (1958), longa-metragem de Sammy Drechsel.

[4] Partidas realizadas no dia 7 de julho de 1957 no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, e no dia 10 de julho de 1957 no estádio do Pacaembu, em São Paulo.

[5] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 87.

[6] GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 18.

[7] O Cruzeiro, 5, 12 e 19 jul. 1958; Manchete, 12 jul. 1958.

[8] A Gazeta Esportiva, 6 jul. 1958, p. 7.

[9] MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2006, p. 261-280.

[10] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, op. cit., p. 87.

[11] SILVA, Geraldo Romualdo da. Ídolo grande de um ídolo pequeno. Jornal dos Sports, 25 jun. 1958, p. 5.

[12] MENINO Pelé reencontrou sua infância e foi campeão absoluto das louras suecas. O Cruzeiro, 5 jul. 1958. Extra, p. XV.

[13] RODRIGUES FILHO, Mário. Quatro ídolos. Segunda. Jornal dos Sports, 5 fev. 1959, p. 5.

[14] RODRIGUES, Nelson. Pelé não morre mais. Jornal dos Sports, 17 set. 1958, p. 5.

[15] NEIVA, Adriano. Aspectos de um Pelé diferente do que a multidão costuma. Jornal dos Sports, 1º out. 1958, p. 5. O autor usava o pseudônimo De Vaney.

[16] NEIVA, Adriano. Aspectos de um Pelé diferente do que a multidão costuma ver. Jornal dos Sports, 2 out. 1958, p. 5.

[17] NEIVA, Adriano. Aspectos de um Pelé diferente do que a multidão costuma ver. Jornal dos Sports, 3 out. 1958, p. 5.

[18] NEIVA, Adriano. Aspectos de um Pelé diferente do que a multidão costuma ver. Jornal dos Sports, 4 out. 1958, p. 5.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pelé: a construção do mito (1958-1962)[1a. parte]. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 16, 2023.
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