Pelé”, da Netflix: entre a tradição biográfica e o necessário desconforto político
O documentário “Pelé” estreou na última terça-feira (23 de fevereiro) na plataforma de streaming Netflix. Dirigido e produzido por David Tryhorn e Ben Nicholas, o filme faz parte da série de comemorações dos 80 anos de vida do ex-jogador. Em 1 hora e 43 minutos de duração, o roteiro tenta traçar o histórico de Pelé desde a infância pobre até a consagração máxima do tricampeonato mundial de 1970 conquistado em território mexicano. É necessário afirmar de início que o presente texto não é uma crítica técnica ao filme, mas uma tentativa de compreender de que maneira a nova produção da Netflix se situa dentro da tradição biográfica já estabelecida sobre o jogador.
De maneira geral, a estrutura do roteiro segue o clássico modelo da “Jornada do Herói” (Campbell, 2018), com ascensão e tentativa de restabelecer a ordem (após o “trauma” de 50), crise e prova (contusão e fracasso na Copa de 1966), retorno e, por fim, superação/consagração e restabelecimento da ordem. (Título do tri em 1970).
Ao ser comparada com a série histórica de biografias e cinebiografias sobre a trajetória do jogador, iniciada em 1961 com o livro “Eu Sou Pelé”, de Benedito Ruy Barbosa, a obra reproduz muitos pontos da tradição biográfica contada e recontada ao longo dos últimos sessenta anos, tais como, em primeiro lugar, a estrutura messiânica da narrativa. Grande parte da tradição biográfica tem conferido a Pelé o status do que tenho chamado de “Messias Social” e “Messias Racial”, ou seja, no primeiro momento ele teria sido o fator determinante para a dita mudança da maneira como o Brasil passou a ser visto no exterior.
Ao mesmo tempo, o jogador foi, segundo essas narrativas, o principal gerador de mudança na forma do brasileiro enxergar a si mesmo, agora não mais reféns de um “complexo de vira-lata”, mas tendo orgulhoso senso de pertencimento à “comunidade imaginada” Brasil. Do mesmo modo, o famigerado “trauma de 1950” também é um poderoso artifício usado pelo roteiro para reforçar a importância do Messias que libertou, de uma vez por todas, o imaginário social brasileiro das consequências negativas do Maracanaço.
Quanto ao messianismo racial, o documentário reproduz a narrativa consagrada pelo jornalista Mário Filho em seus livros “Viagem em torno de Pelé” (1963) e “O Negro no Futebol Brasileiro” (edição 1964), produções que sofreram influência do pensamento de Gilberto Freyre. Nessas obras, o jornalista afirma de maneira categórica que “o preto era livre, mas sentia a maldição da cor. […] Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto […] Nenhum preto, no mundo, tem contribuído mais para varrer as barreiras raciais do que Pelé” (RODRIGUES FILHO, 1964, p. 496).
Em outras palavras, para essa tradição, Pelé seria o redentor e abolicionista moderno dos negros que passaram a enxergar nele um orgulho da raça. Paralelamente, o sucesso de Pelé contribuía para promover uma imaginada conciliação racial, dado que ele teria, por meio do talento, educado o olhar e a sensibilidade social ao demonstrar, na prática, não ser inferior aos brancos. Nesse sentido, a fala de Gilberto Gil, um dos entrevistados do filme, sintetiza bem o pensamento de Mário Filho e corrobora para a perpetuação do “mito da democracia social”: “Pelé foi uma majestade para o branco, o negro, o mestiço, para todas as raças, um símbolo de uma emancipação brasileira”.
Dito isso, penso que o ponto mais inovador do documentário e que destoa, propositalmente da tradição biográfica clássica, é o considerável tempo dedicado a um assunto espinhoso e sempre ignorado pelas biografias e cinebiografias: a relação de Pelé com o Regime Militar. A despeito de ser uma obra de celebração da “mitologia do Rei”, o filme consegue, com relativo sucesso, pincelar algumas reflexões que atestam as contradições políticas que envolveram a vida do jogador, fato que, dentro da proposta do roteiro, humaniza o biografado alçado a mito. São bons exemplos dessa abordagem: a maneira como sua imagem foi “apropriada” de forma populista pelo Regime e sua aproximação com políticos da cúpula militar que comandava o governo. Até mesmo o próprio Pelé, sempre reservado quanto ao assunto, responde alguns questionamentos, ainda que visivelmente cauteloso e desconfortável.
Gostaria, no entanto, de encerrar chamando atenção para a cena em que o ex-jogador é questionado se tinha, de fato, conhecimento das práticas de tortura nos porões do governo. A resposta de Pelé a essa provocação situa-se no campo cinzento da incerteza: “ouvia falar de muitas coisas, mas não sabia se tudo aquilo era verdade”, dado que sua intensa agenda de viagens o impossibilitava, segundo ele, de checar as informações de maneira cuidadosa. Ora, ao estudarmos a trajetória de Pelé, veremos que ele sempre adaptou o discurso conforme as demandas do contexto. Acusado há décadas de ser amigo dos militares, Pelé declarou à Revista Placar em 1988: “Muita gente não sabe, mas não joguei a Copa de 1974 por desgosto em relação ao regime político do país. Era a época da ditadura (Pelé, 1988)” (PLACAR, 1999, p. 52).
Seria plausível imaginar que a declaração seria fruto de um contexto de pressão e clamor popular por democracia, após os intensos movimentos da campanha das “Diretas Já!” que culminaram, em 1989, na primeira eleição presidencial direta após o golpe de 1964. Teria Pelé, diante de todo esse cenário, sido movido a revisitar sua história e atualizá-la para os novos tempos democráticos, resolvendo, assim, distanciar de vez sua imagem dos militares? É possível que sim.
Já no ano de 2000 em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto para a série “Confissões”, Pelé justifica sua não ida à Copa de 1974 como tendo sido motivada por questões de discordância política com o Regime:“Eu tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo – de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo”. Ombreando-se com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Chico Buarque, Pelé busca ser reconhecido como parte de um ideal de resistência à Ditadura que até hoje é lembrada e celebrada. Assim, a recusa em disputar a Copa de 74 soa quase como uma forma de autoexílio (assim como o fizeram alguns os artistas da MPB) dos campos de futebol e da Seleção Brasileira: “já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontradocom eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão”
Sua fala mais recente no documentário parece não seguir a mesma firmeza de outros tempos, o que pode ser explicado, em parte, por seu alinhamento com o atual governo de Jair Bolsonaro, embora, é preciso destacar, tenha havido nas últimas décadas, um esforço por parte da assessoria e do próprio Pelé em distanciar sua biografia da imagem do Regime Militar. A título de conclusão, o documentário “Pelé”apresenta uma interessante mistura de tradição e questionamento político que acaba por destacar as múltiplas camadas do mito, tão complexas quanto sua biografia que, por hora, segue em disputa e atualização por parte dos narradores e, por que não dizer, por ele mesmo.
Bibliografia:
BARBOSA, Benedito Ruy. Eu sou Pelé. São Paulo: Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1961.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2018.
RODRIGUES FILHO, Mário. Viagem em torno de Pelé. Rio de Janeiro, Editora do autor, 1963.