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O (quase) encontro entre dois gênios: Pelé e Sartre em Araraquara

Em 4 de setembro de 1960 o Corinthians vencia em Piracicaba o Esporte Clube XV de Novembro, em partida válida pelo Campeonato Paulista. No ataque do Timão brilhava Luizinho, o Pequeno Polegar, autor do gol do título contra o Palmeiras na decisão do Campeonato Paulista do 4º Centenário, em 1954. A vitória dos paulistanos foi por dois a um. Não era fácil, tampouco hoje é, enfrentar as forças do interior.

Que diga o Santos, que seria campeão daquele ano, com o jovem Pelé como artilheiro, que a pouco mais de cento e cinquenta quilômetros de Piracicaba, em Araraquara, levava quatro da Associação Ferroviária de Esportes. Um dos tentos foi contra, do lateral-esquerdo Dalmo, autor do gol de pênalti que daria a Copa Intercontinental de 1963 ao time do litoral, em finalíssima contra o Milan, no Maracanã. Quem foi à Fonte Luminosa, estádio local que estava lotado, pôde ter o prazer de assistir a uma vitória incontestável, mas também ter frente aos olhos, a poucos metros, o maior jogador de todos os tempos. Um luxo, mesmo que ele não tenha se destacado na peleja. 

Pelé já vencera uma Copa, a da Suécia, com direito a dois gols na partida final, aos dezessete anos de idade. Insuperável. Titular do Santos, ainda morava em uma pensão na Baixada. Dizem que não eram poucas as orientações e broncas do ponteiro-esquerdo Pepe e do meio-campista Zito no garoto, que as ouvia com humildade e atenção. Os dez anos seguintes foram pura glória para o camisa 10, campeão de tudo, goleador máximo, jogador que não tinha pontos fracos e que até como goleiro atuou, em semifinal de Copa do Brasil, substituindo o expulso goleiro Cejas.

Há algumas semanas, pôde-se ler no Brasil um instigante artigo de Kareem Abdul-Jabbar, o genial jogador de basquete seis vezes campeão da NBA, em que faz uma exortação aos estadunidenses para que louvassem, tanto quanto o fazem com os maiores do esportes, seus grandes cientistas e literatos. O belo texto abre comentando uma situação que seria inimaginável entre os conterrâneos, mas que não o teria surpreendido porque acontecera na França: a presença de cento e cinquenta mil pessoas homenageando um dos seus grandes pensadores no momento de seu sepultamento. Jean-Paul Sartre era seu nome.

Pelé no início da carreira. Foto: Joop van Bilsen/Anefo.

Pois bem, ter um gênio na cidade não é pouco, e naquele domingo em que o Santos foi massacrado pelo time local, Araraquara teve pelo menos dois. Sartre também estava por lá, não para jogar futebol, mas para uma reunião política com o movimento social local e para uma conferência sobre questões do ensaio Questões de método e do livro Crítica da razão dialética. Acompanhado da filósofa Simone de Beauvoir, o francês viajava pelo Brasil em distintas atividades, antes de deslocar-se com ela para Cuba a fim de apoiar a recém-instituída sociedade pós revolucionária. Depois de uma concorrida conferência na Universidade de São Paulo, e antes de dez dias de folga na fazenda da família Mesquita, proprietária do jornal O Estado de S. Paulo, foi a vez da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara ver e ouvir o existencialista. Ele não deixou de notar que muitos dos presentes também haviam assistido à atividade em São Paulo.

Sartre e Simone, por onde foram, causaram forte impressão (visitaram também Salvador, a convite dos escritores Jorge Amado e Zélia Gatai). Eram socialistas, falavam de feminismo e de liberdade, eram livres. O existencialismo tinha grande importância intelectual no Brasil, estava presente na filosofia, no cinema, na literatura, em mesas de bar. Marcava as desesperanças do pós-guerra, contrastando com o impulso desenvolvimentista que por aqui reinava.

Simone de Beauvoir e Sartre em Pequim, em 1955. Foto: 刘东鳌(Liu Dong’ao)/Xinhua News Agency.

Futebol e filosofia estiveram na mesma cidade, mas não se encontraram, como costuma acontecer. Conta-se que na saída de sua conferência, Sartre teria se surpreendido com a comemoração que tomava o centro da cidade. Perguntou, então, se acaso seria sua presença o motivador daquele movimento. Logo foi informado que não, que a vitória da Ferroviária contra o grande Santos é que gerara aquilo tudo. Apesar de verossímil, suponho que tal narrativa, com toda sua graça, seja lendária.

É provável que Sartre não conhecesse Pelé, assim como tampouco o futebolista soubesse quem era o filósofo. Teria sido interessante que tivessem se entrevistado? Penso que sim, para ambos e principalmente para nós, que nos deliciaríamos com a história de tal encontro e suas decorrências. Filósofo, escritor, dramaturgo, o que Sartre poderia dizer sobre futebol, ao mirá-lo sob lente estética? É certo que traria novas análises e ideias, somando-as ao que, entre outros, escreveram Pier Paolo Pasolini e Nelson Rodrigues. Pelé, por sua vez, poderia ter ouvido sobre a prevalência da existência em relação à essência, refletindo mais sobre si e seu talento, como grande jogador que foi. Ou ainda ler algumas das belas linhas que o francês escreveu sobre corpo.

O encontro não aconteceu. Deixemos então para a imaginação seu impossível desfecho. Fica a recordação do que esteve perto de se concretizar, mesmo por fruto do acaso (como, aliás, tanta coisa). E sigamos admirando o futebol, a filosofia, esses dois gênios que foram Pelé e Sartre.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O (quase) encontro entre dois gênios: Pelé e Sartre em Araraquara. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 39, 2019.
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