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Peleja e fotografia memoráveis: futebol e guerra

Plínio Labriola Negreiros 19 de dezembro de 2022
Palmeiras
Entrada do Palmeiras em jogo histórico em 1942. Foto: reprodução

A fotografia acima, flagrante da tarde de 20 de setembro de 1942, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, sintetiza uma série de questões acerca do futebol paulista, mas, principalmente, da sociedade brasileira no contexto do Entreguerras, do Estado Novo de Vargas e da Segunda Guerra. É uma imagem carregada de significados. Passa pelo futebol, é verdade, mas mostra muito de um país em meio a uma ordem autoritária e um  conflito bélico capaz de produzir um grande dilema para Getúlio Vargas: mesmo com uma declarada neutralidade, os caminhos da guerra empurravam o Brasil para o lado do Eixo ou dos Aliados. Não foi uma escolha fácil, nem sem fortes decorrências. Esse registro visual, do qual nunca descobri a autoria, trata da partida de futebol, pelo campeonato Paulista de 1942, entre Sociedade Esportiva Palmeiras e São Paulo Futebol Clube.

Na imagem, há o registro da entrada da equipe fundada por italianos em 1914. Até o início de 1942, o clube mantinha o seu nome de origem: Palestra Itália. Desde 1930, com a ruptura institucional que colocou Getúlio Vargas no poder, há uma forte preocupação com medidas nacionalistas, característica marcante das ordens construídas ao longo do Entreguerras. Nesse sentido, uma das primeiras ações do Estado brasileiro. organizado após 1930, foi decretar medidas com o intuito de limitar a imigração. A forte onda imigratória, essencialmente europeia até 1908, nascida em meio ao processo de abolição da escravatura, era estancada. A Carta de 1934 preconizava que uma cota de 2% anuais para cada uma das nacionalidades presentes no Brasil. E o nacionalismo se apresentou de outras formas.

Entre essas formas, estava o controle sobre as instituições que estivessem mas mãos de estrangeiros, que fossem compostas por uma boa parcelas de imigrantes, além de sociedades ou empresas que fizessem referências a outras nacionalidades. O Estado Novo ampliou esse controle e, com a eclosão da guerra em 1939, ainda que com a neutralidade brasileira, essa ampliação ganhou novas dimensões. Assim, coube à Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo, instituição surgida, em 1941, no bojo da oficialização dos esportes no Brasil, exigir um processo de depuração do estrangeirismo nas sociedades esportivas. Isto significava que as diretorias deveriam ser compostas exclusivamente por brasileiros, o nome não poderia fazer alusão a outra nação e, dependendo de algumas circunstâncias, os sócios estrangeiros não deveriam ser maioria.

Assim, o Palestra Itália, por exigência da Diretoria de Esportes, em janeiro de 1942, passou a ser denominado Palestra de São Paulo. E sua diretoria perdeu integrantes que eram italianos e as cores originais, o verde e o vermelho, sofreram com a retirada do vermelho, para que não houvesse nenhuma alusão à Itália. Outros clubes esportivos passaram pelo mesmo processo, caso do Sport Club Germânia, que passou a ser denominada Esporte Clube Pinheiros, e o Club Esperia Societá Italiana di Canottieri, que foi rebatizado para Associação Desportiva Floresta, mas retomou o nome original em meados dos anos 1960.

O contexto no qual houve essas mudanças de nomes tinha a marca da forte aproximação do Brasil às forças Aliadas, mais especificamente, aos acordos entre o governo do Estado Novo e os Estados Unidos. O Brasil, assim, estava bem próximo de entrar no conflito, que já não era mais apenas europeu. E agosto de 1942, a conjuntura era outra, diante da declaração de guerra do Brasil contra as forças do Eixo. Foi a resposta brasileira aos recorrentes ataques bélicos alemães contra navios brasileiros. E não foram poucas as vítimas fatais desses ataques.

Nessa nova conjuntura, na qual o Eixo se tornou um inimigo, com declaração oficial de guerra, o alemão, o italiano e o japonês, residentes no Brasil. passaram a ser olhados como inimigos. Assim, aumentou a pressão contra os clubes esportivos com origem entre os imigrantes e o Palestra de São Paulo foi obrigado, em setembro, a trocar novamente o nome: Sociedade Esportiva Palmeiras.

E a nova troca de nome do clube de origem italiana veio em uma semana de máxima importância para o futebol paulista: no dia 20 de setembro, um domingo, o maior estádio do Brasil, na verdade um complexo esportivo muito moderno, receberia o jogo decisivo para o campeonato estadual de 1942, que era disputado em pontos corridos, com turno e returno: Palmeiras e São Paulo se enfrentariam.

Sem dúvidas, com a declaração de guerra do Brasil ao Eixo, essa peleja ganhou novas dimensões. A rivalidade foi perigosamente acirrada. O São Paulo representaria as forças nacionais, porque tem suas origens no São Paulo Futebol Clube (conhecido como São Paulo da Floresta), fundado em 1930 a partir do espólio do Club Atlético Paulistano e da Associação Atlética das Palmeiras (clube fundado em 1902), ambos ligados às elites paulistanas. Em 1930, o Paulistano abandonou o futebol e a A. A. das Palmeiras, em forte crise financeira, optou pela fusão com os dissidentes do Paulistano. Com a extinção São Paulo da Floresta, em maio de 1935, o clube é recriado em dezembro desse mesmo ano, com o nome de São Paulo Futebol Clube.

Já a história do Palmeiras estava amalgamada à imigração italiana. Ainda que houvesse uma forte presença de italianos e descendentes no rival Corinthians, o clube do Parque Antártica era o dos italianos. Isso teve um peso importante com a declaração de guerra contra o Eixo. O São Paulo enfrentaria, na partida decisiva, inimigos do Brasil. Na semana que antecedeu a partida, não foram poucos os que projetaram uma verdadeira guerra no Pacaembu. Os são-paulinos, dizia-se, defenderiam o Brasil dos quinta-coluna. E vale a pena pensar como se chegou a essa situação.

A disciplinarização dos esportes em meio ao Estado Novo

É possível observar que, com a Segunda Guerra, as forças repressivas do Estado ditatorial se aproximaram, ainda mais, dos clubes esportivos. De certa forma, a questão da nacionalização destes passou a ser encarada como um “caso de polícia”. Até porque a entrada do Brasil no conflito bélico modificou os ânimos dentro do país. Tem-se a impressão que o fato de entrar na guerra obrigou as autoridades brasileiras a procurarem inimigos internos, até para justificar o papel das Forças Armadas e do próprio regime autoritário. Assim, a aproximação das forças policiais com as instituições esportivas buscou controlar o dia-a-dia desses clubes, em inúmeros momentos. Na ação das forças policiais se reconhece o país entrando no conflito mundial. E não se pode ignorar que o Palestra e o Germânia foram, em alguns momentos, espaços de organização e propaganda nazifascista.

E, dentro desse espírito nacionalista aguçado pelo conflito bélico, era fundamental enquadrar os clubes, não permitindo que se tornassem espaços de interesses externos. Mesmo porque, para o Estado Novo, o Brasil era uma nação sendo construída.

A leitura e análise dos prontuários do Arquivo do DOPS voltados para os clubes esportivos de São Paulo (sobre isso, ver o artigo O DOPS e os clubes esportivos: https://ludopedio.org.br/arquibancada/o-dops-e-os-clubes-esportivos/), oferecem pistas para se compreender as relações estabelecidas entre o Estado e os clubes esportivos. Desde a implantação do Estado Novo, através da ação legal, ficava claro que os esportes deveriam passar por um processo de reorganização, sempre a partir das preocupações e da direção institucional. Estava-se diante de um Estado que olhava para as atividades esportivas, buscando dar outros significados, à luz das novas inquietações impostas pela conjuntura política. Assim, a reorganização das atividades esportivas teve como propósito rever seus objetivos fundamentais, como pensar numa ordem marcada pela racionalidade. Em outras palavras: a atividade esportiva (sem dúvidas, relacionada com as atividades físicas, com a educação, com a saúde, com a racionalidade no trabalho, entre outras esferas sociais) deveria ter clareza da sua função social; e, com mais clareza ainda, deveria apontar os caminhos corretos para cumprir essa função determinada. Assim, o aparelho estatal teria como tarefa dizer como e para onde os esportes deveriam ir.

Por outro lado, não foi apenas o controle do poder público que recaiu sobre os clubes de colônias. Além da pressão da polícia e dos órgãos governamentais designados para cuidar das questões esportivas, também parte da sociedade paulistana mostrou-se disposta a pressionar esses clubes.

No caso do Germânia, foi muito grande a coação no sentido de que o clube fosse, ao máximo, “nacionalizado”. Ou seja, exigia-se do clube que a maior parte dos seus associados fosse de brasileiros natos e que seus estatutos retirassem qualquer menção à Alemanha. Porém, as pressões vinham de outro lado. M. G. Ribas, na obra História do Esporte Clube Pinheiros, publicada em 1968, narra um momento tenso:

Estando um dia o nosso associado, sr. Spina, assistindo a um desfile na Avenida Paulista, ouviu num grupo de oficiais a sugestão de um deles de que, a sede do ‘Germânia’, no Jardim Europa, congregando a colônia alemã, bem poderia ser encampada pelo Governo brasileiro, transformando-se num clube de oficiais ou, mesmo, em quartel da cavalaria, pois se adaptava perfeitamente para isso. E, mesmo, segundo se soube, conhecido clube paulista, ainda hoje em grande evidência, tentou obter, através desse processo, a nossa sede.

Tendo o sr. Spina levado imediatamente o fato ao conhecimento do dr. Henrique Villaboim, este então Interventor designado pela Diretoria de Esportes, e que era genro do dr. Fernando Costa, Interventor Federal no Estado, imediatamente procurou estudar a situação, com o objetivo de solucionar o problema da melhor forma, evitando viesse o Clube a ser encampado. Providências rápidas para alteração estatutária, registros, nacionalização do clube com nome brasileiro.

Não era a primeira vez, nessa conjuntura política, que se tentava tirar vantagens de um clube fragilizado. Inclusive, M. G. Ribas faz uma grave acusação a um clube de São Paulo, ainda em atividade. Prefere omitir o nome, porém, é possível inferir que se tratasse do São Paulo F. C., pois processo semelhante ocorreu com esse clube, só que envolvendo o Palestra Itália/Palestra de São Paulo.

Em um trabalho clássico, Imigração e Futebol: o caso Palestra Itália, o sociólogo José Renato de Campos Araújo, falecido em 2019, trabalhou com o processo de imigração italiana em São Paulo, abordando-a a partir das relações entre a sociedade paulista e o Palestra Itália. Nesse trabalho, há uma preocupação especial: o momento em que o Brasil declara guerra ao Eixo. Afirma Araújo:

O ano de 42 é significativo na história da associação [Palestra Itália] por apresentar um conflito extracampo entre ela e a sociedade receptora. O confronto entre paulistanos e o grupo imigrante italiano foi mais visível, devido a nossa entrada na II Guerra contra os países do Eixo …

O Palestra Itália, em 42, estava disputando o campeonato paulista com grandes chances de sagrar-se campeão, quando o Brasil declara a entrada no conflito mundial apoiando os aliados. O Conselho Nacional de Esportes (CND) decreta uma portaria proibindo eventos esportivos tornarem-se locais para a “manifestação de nacionalidades” — segundo próprio texto da portaria de setembro de 1942 — designando às forças públicas estaduais a responsabilidade da manutenção da ordem.

De fato, a rompimento com as forças do Eixo, no início de 1942 e, posteriormente, a declaração de guerra, colocou os italianos de São Paulo numa situação pouco confortável, ainda que tivessem uma importância social notável. Lembranças dessa época – como esta do senhor Amadeu, recolhidas em Memoria e Sociedade – lembranças de velhos, de Ecléa Bosi -, mostram parte do clima de tensão:

No tempo da guerra os brasileiros começaram a ter ódio dos italianos. Alguns pretos ameaçaram os jornaleiros italianos. Um preto deu uma surra num jornaleiro, mas depois os italianos se reuniram e pegaram o preto.

Um caso se passou com o Nicoli. Lá na oficina vinha gente da polícia e uma vez o delegado viu que o Nicoli falava em italiano com o Bassetto. Aí o delegado gritou com o Nicoli e ameaçou pôr na cadeia quem falasse italiano. Era tempo da aliança Itália-Alemanha-Japão.

Assim, pode-se voltar ao nosso ponto de partida: a imagem registrando um jogo de futebol. Como síntese dos conflitos entre o Palestra Itália e a sociedade paulistana, pode ser apontado um jogo em especial: Palestra de São Paulo versus São Paulo F. C. O resultado dessa partida decidiria o campeão da cidade de São Paulo do ano de 1942. Ainda segundo Araújo:

O jogo entre as duas equipes ganhava aspectos de grande finalíssima, sendo cercado de grande expectativa e apreensão, principalmente devido ao conflito extracampo. O jogo realizado entre as duas associações ocorrera em 22/9, dois dias após a adoção da denominação de Sociedade Esportiva Palmeiras

Para alimentar ainda o clima de tensão, O Estado de São Paulo, de 02/09/1942, publicou uma resolução do São Paulo F. C.: “Em reunião extraordinária da diretoria, ficou aprovado e autorizado à secretaria do São Paulo Futebol Clube processar a interrupção de direitos e obrigações de sócios de origem italiana e alemã.”

Dessa maneira, restou ao Palestra defender-se da situação. Uma das primeiras maneiras encontradas foi diminuir a resistência que havia por causa da sua origem italiana quando o Brasil se preparava para ir combater em terras europeias. Esta notícia – Expressivo gesto da S. E. Palestra de São Paulo, publicada n’O Estado de São Paulo de 03/09/1942. esclarece parte da estratégia palestrina:

Recebemos da Sociedade Esportiva Palestra de São Paulo, o seguinte comunicado:

“A Diretoria da Sociedade Esportiva Palestra de São Paulo, em sua reunião hoje efetuada, resolveu, por unanimidade de votos, fazer entrega ao exmo. sr. Luiz Aranha, presidente da Confederação Brasileira de Desportos, a renda líquida que lhe couber no encontro a realizar-se no dia 20 do corrente com o São Paulo Futebol Clube para que seja encaminhada às famílias dos navios brasileiros, torpedeados pelos submarinos do “eixo”.

Secretaria da S. E. Palestra de São Paulo, 1º de setembro de 1942. (a) dr. P. Walter B. Giuliano – Secretário Geral.”

Ou seja, era fundamental ao Palestra mostrar-se enquanto um clube brasileiro. Como demonstra Araújo, outro evento também revela como o clube de origem italiana buscava essa aproximação com o que era considerado brasileiro:

Um fato interessante para este ano é que surge na equipe de futebol o primeiro jogador negro; até este momento não houvera nenhum desta condição. Arrisco uma pequena análise; talvez o Palestra não gostasse de ver jogadores negros atuando em seu time, justamente por ser uma associação já discriminada por sua origem étnica. Se o preconceito já existia contra os italianos, imaginem contra os negros; como se sustentaria uma equipe formada por negros e “italianinhos”? É muito significativo que o primeiro atleta negro a atuar no Palestra tenha estreado em 1942, momento que a associação era pressionada a assumir características nacionais. Nada mais simbólico que a introdução de um jogador negro na equipe, como prova de nacionalidade brasileira do clube …

Paulo Schiesari, que nessa época era sócio do Palestra, tinha vivo nas suas lembranças esses episódios que marcaram a vida do clube sediado no Parque Antártica. Em depoimento oral de 1996, compartilhava as suas memórias:

… no dia 20 de setembro de 1942, nascia a Sociedade Esportiva Palmeiras num jogo contra o São Paulo Futebol Clube, em que o Palmeiras vencia por 3 a 1, sob um clima nefasto, clima hediondo, clima terrível de coação, feito pelo São Paulo, principalmente, porque vencemos e o São Paulo fugiu de campo quando estava perdendo de 3 a 1. Achou muito mais conveniente suportar as críticas da fuga do que de uma derrota muito maior do que aquela que se desenhava.

Para Schiesari, existia sim uma forte prevenção contra os italianos bem-sucedidos em São Paulo. Com muita emoção, ele continua a lembrar do clima da época:

… a força foi avassaladora, constrangedora. … Era diretor dos Esportes o capitão Sylvio Magalhães Padilha. E tinha vindo do Rio de Janeiro, onde tinha sido diretor do Vasco, o então capitão Adalberto Mendes, que é a maior honra, a maior glória da história do Palmeiras, porque ele entrou de sócio, sem ter nenhum vínculo com a colônia italiana … E ele veio na hora que o clímax da encrenca toda forjada, por essa gente que fez um projeto muito bem urdido, muito bem tramado, que eles começaram a perseguir todos para não dar a ideia que o Palmeiras era o ponto visado … Eles queriam arrasar, eliminar …

Essa pressão, segundo Paulo Schiesari visava, por parte de torcedores do São Paulo F. C., tomar a sede do Palestra Itália, o Parque Antártica:

… Então, nós passamos depois disso a nos chamar Sociedade Esportiva Palmeiras. Então eles tentavam, eles queriam naturalmente, é evidente que queriam, porque eu participei, eu sou figura viva que presenciei e participei. Quantas vezes caminhões com gente do São Paulo apareciam por lá de noite, querendo se imiscuir nas coisas do Palmeiras e tomar o Parque Antártica. Como eles não conseguiram êxito nessas tentativas, eles foram tomar a Associação Alemã de Esportes, tomaram, que é onde está a que foi chamada Ilha da Madeira, Canindé.

Que eles tomaram e eu não sei como eles venderam para a Portuguesa se aquilo não era deles. Então, não conseguiram tirar o Palmeiras, mas tiraram os alemães da Associação Alemã. A história é muito terrível. Eles foram muito causticantes, muito odioso, rancorosos. E deixa a gente com resquício de prevenção. Porque eu sempre digo, eles seriam até capazes de praticar uma boa ação. Nunca vi tanto ódio …

Para Schiesari, por muito tempo conselheiro do Palmeiras, este clube só conseguiu sobreviver a esses ataques porque soube se proteger com competência, articulando com setores influentes da sociedade paulista. Assim, esse sócio do Palmeiras lembra da importância do jogo de 20 de setembro de 1942 contra o São Paulo, mais uma vez destacando o clima pesado da partida:

 … Imagine, por exemplo, quando fomos jogar lá o 1º jogo, em 20 de setembro de 1942, eu era amigo do capitão Adalberto Mendes e que tive o orgulho de preencher o meu currículo com um quesito que ninguém tem igual: fui convidado para entrar no vestiário do Palmeiras antes do jogo … eu fui convidado pelo Adalberto, e pude…e nesse dia aconteceu um negócio maravilhoso … surgiu o nosso meia-esquerda, que é uruguaio de nascimento, e que por graça de Deus está vivo até hoje, o Villadoniga, pegou um giz e foi ao quadro negro e escreveu: “Quem tem vergonha na cara não perde o jogo de hoje”, antes do time entrar em campo. Porque era muita coisa horrível que se fazia com o time que tinha quatro jogadores só de origem italiana … Ele fez uma manifestação … que deixou a turma se encher de brios e sentir que era a hora de dar o troco para tudo aquilo …

Outra personagem dessa partida, e por extensão, desse momento de muita tensão, foi o goleiro do Palmeiras naquela partida tão conturbada e, ao mesmo tempo, tão representativa. Trata-se de Oberdan Cattani, que jogava no Palestra havia dois anos, depois de deixar Sorocaba, interior de São Paulo. Oberdan Cattani guarda muitas lembranças do jogo contra o São Paulo. Em depoimento oral, colhido em 1996, relembrava:

Olha, eu tive grandes jogos, mas aquele jogo de 42 emocionou muito, tanto para mim como para os companheiros da época. Porque 15 dias atrás era Palestra Itália. Aquele negócio da Guerra, essas coisas todas. O São Paulo interferiu na vida do Palestra. Lamento muito esse ponto porque em 39, o Palmeiras fez um jogo, um torneio aqui, com Corinthians e São Paulo, para arrecadar dinheiro para o São Paulo. O São Paulo não soube reconhecer isso. Em 42 eles queriam essa mudança, por Palestra Itália ser o italiano, coisa da guerra. Eu tenho orgulho de ser filho de italiano. O meu pai era italiano. O meu nome é italiano também: Oberdan Cattani. A família toda leva nome italiano. Mas eu sou brasileiro. A minha mãe era brasileira.

Então tudo isso aconteceu na época da Guerra. Eles queriam tomar o Parque Antártica…teve diretor que não deixou invadirem. Dizem que iam invadir o Parque Antártica…Muita gente diz que ficou com pau atrás do portão para agredir. Mas eu não acredito que tivesse acontecido isso. Nós estávamos concentrados em Poá. Ficamos 42 dias “presos” lá…na concentração. Acabava o treino ia para a concentração. Acabava o jogo, concentração. Íamos para a cidade…Então veio uma semana antes, era Palestra, vem o jogo com o São Paulo, mudou para Sociedade Esportiva Palmeiras. Falávamos: morreu o Palestra Itália nasceu o Palmeiras campeão. A maioria ficou chocada. Eu fiquei chocado …

Oberdan Cattani, assim como o sr. Paulo Schiesari, tem vivo na memória as pressões exercidas pelo São Paulo, como a história da tentativa de invasão do Parque Antártica. E o ex-goleiro do Palmeiras, além das seleções paulista e brasileira, ainda narra:

 “… Tem gente que fala que o São Paulo interferiu, isso ou aquilo. Outro fala que o São Paulo fugiu de campo. O Palmeiras ganhava de 3 a 1, teve um pênalti a nosso favor; o Luizinho pegou a bola e disse que não iam bater. Eu não vou dizer que o São Paulo fugiu de campo. Eu acredito que não seja isso. Pelo que eles contam houve interferência …

Ganhamos em 44 e foi a mesma coisa, com a interferência do São Paulo também. O Dacunto havia sido expulso num jogo e seria julgado uma semana depois…Então, adiaram 15 dias, exatamente, para a véspera do jogo com o São Paulo. O São Paulo tinha muitos presidentes influentes, como Roberto Gomes Pedrosa, o Sr. Carlito. Deixaram o Dacunto ser julgado…mas deram tanto azar que entrou o Waldemar Fiúme que não saiu mais. O Waldemar foi para mim o maior zagueiro, 4º zagueiro daquela época do futebol brasileiro …

Enfim, a partida entre os times do Palmeiras e do São Paulo, aliás muito conturbada, foi uma síntese do processo que os times de colônias viveram em São Paulo. Isso, em função de uma cultura nacionalista forjada nos anos anteriores a esse processo e pelo evento da participação brasileira na guerra. Mais uma vez, o futebol mostrava-se ligado, de maneira indelével, às questões mais amplas da cidade, do país e do mundo.

Decidindo os destinos da nação

Se a partida de 20 de setembro de 1942 representa a síntese da série de tensões presentes na sociedade paulista, a fotografia do início desse texto também se caracteriza uma síntese desse mesmo processo. Ela representa a entrada da equipe do Palmeiras no gramado do estádio do Pacaembu, na primeira apresentação do clube com o novo nome, nova camisa e distintivo. O que não é pouca coisa.

Ao mesmo tempo, à frente do time, o 2º. vice-presidente, capitão do exército Adalberto Mendes. No contexto da declaração de guerra ao Eixo, não era uma escolha qualquer. Como os torcedores do São Paulo iriam hostilizar um oficial do exército nacional em meio a um conflito bélico? Já os jogadores, entraram em campo com uma bandeira do Brasil. Esta seria objeto de vaias por parte dos são-paulinos? Essa estratégia, segundo o capitão Adalberto Mendes, foi arriscada porque a legislação vigente permitia a apresentação da bandeira em eventos esportivos internacionais, que não era o caso da partida em análise.

Dessa forma, a estratégia utilizada pelo clube dos italianos visava evitar mais tensões, que vinham se acumulando há muito tempo. Na semana anterior à partida decisiva, A Gazeta noticiou um entrevero no jogo entre os juvenis do ainda Palestra com o São Paulo. O periódico escrevia, dias antes da final do campeonato Paulista, que “o incidente foi grave, mas no fundo não surpreende porque, como já escrevemos, o espírito partidário vem sendo cultivado num terreno perigoso e inconveniente, daí a irritação clubística, que, quando chega a um grau elevado, cega, amesquinha e cria uma alma de irmãos cains”.

Segundo A Gazeta, “um confronto entre torcedores das duas equipes era dado como certo no dia do clássico e, por isso, a polícia resolveu tomar preocupações incomuns. “Não será permitida, em absoluto, a entrada de nenhum assistente que leve consigo bengalas, guarda-chuva (mesmo que chova), nenhum objeto, enfim, de que os mais exaltados possam se utilizar nos momentos de maior nervosismo, assim como laranjas e outras frutas para que não se repita o ridículo espetáculo dos arremessos ao campo”.

Com a vitória por 3 a 1 contra o São Paulo, o Palmeiras conquistou o título de campeão paulista de 1942, ainda faltando uma rodada para o fim do torneio. No domingo, na tarde de 04 de outubro, o campeão paulista sofreria a única derrota na competição:  3 a 1,  para o rival  Corinthians. Isso significou, para o clube do Parque São Jorge, a conquista do vice-campeonato.

 

Ficha da partida:

  1. E. Palmeiras 3×1 São Paulo F. C.

Campeonato Paulista de 1942

20/09/1942

Estádio do Pacaembu, São Paulo (SP)

Árbitro: Jaime Janeiro Rodrigues

Expulsão: Virgílio

Palmeiras:

Oberdan; Junqueira e Begliomini; Zezé Procópio, Og Moreira e Del Nero; Cláudio, Waldemar Fiúme, Villadoniga, Lima e Echevarrieta.

Técnico: Del Debbio.

São Paulo:

Doutor; Piolin e Virgílio; Lola, Noronha e Silva; Luizinho Mesquita, Waldemar de Brito, Leônidas da Silva, Remo e Pardal.

Técnico: Conrado Ross.

Gols: Cláudio (19’ do 1º-PAL), Waldemar de Brito (23’ do 1ºT-SPA), Del Nero (43’ do 1ºT-PAL) e Echevarrieta (14’ do 2ºT-PAL)

Público: 45.913 torcedores

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Peleja e fotografia memoráveis: futebol e guerra. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 19, 2022.
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