155.33

Pelo direito à memória: Nordestão e seus predecessores

A memória é um conceito discutido amplamente pela ciência histórica. Dentre os principais historiadores que trabalham com esse conceito em seus escritos, temos o clássico Jacques Le Goof. História e memória estão lado a lado, unidas dentro de uma complexa teia de relações sociais movimentadas por uma alta dose de contradição. Pegando esse gancho inicial, pode-se afirmar que grupos sociais historicamente excluídos tem sua memória afetada por grupos dominantes que, considerados “vencedores” no processo histórico, impõe sobre a historiografia considerada oficial suas teses, ideias, acontecimentos e feitos. A desigualdade regional, uma das marcas do processo histórico brasileiro, levou regiões como o Nordeste a sofrerem esse tipo de intempérie. E é claro que o futebol não poderia ficar de fora dessa tempestade histórico, onde o direito à memória torna-se um palco de lutas.

Não é preciso se estender sobre o processo de desvalorização, exclusão e secundarização que passou e ainda passa o futebol nordestino. Os clubes do que chamo de eixo Sul-Sudeste (e mais Sudeste do que Sul, vale salientar) têm seus feitos muito mais lembrados no imaginário futebolístico nacional que os feitos do eixo Norte-Nordeste. Foi buscando resgatar os feitos de clubes do eixo Sul-Sudeste que a CBF, por exemplo, decidiu oficializar competições como a Taça Brasil. O objetivo dessa justa oficialização não foi para rememorar os feitos do Náutico de Bita ou do Fortaleza de Bececê, mas para coroar o Santos de Pelé e o Palmeiras de Ademir da Guia. A decisão acabou ajudando o Bahia, o primeiro campeão brasileiro, mas como uma consequência de um objetivo delimitado geograficamente.

Dentro dessa discussão sobre o que merece ser lembrado, ao ponto de ser oficializado pela entidade que organiza o futebol brasileiro, entra a Copa do Nordeste ou simplesmente Nordestão. Por que mesmo diante de solicitações de clubes (com direito a uma detalhada e fundamentada pesquisa histórica), a CBF não resolve o problema envolvendo a oficialização de regionais que antecederam o atual Nordestão? A CBF e seus dirigentes sabem do apelo aos títulos regionais no Nordeste. Sabem que, mais do que em qualquer região do Brasil, os títulos regionais sempre foram bastante valorizados por clubes, jogadores, dirigentes e torcida. Principalmente quando se trata de clubes que não tem acesso a títulos nacionais com frequência. Por conta de uma estrutura desigual que não preciso detalhar neste texto, é quase uma odisseia um clube nordestino (mesmo aqueles mais tradicionais e com torcidas de massa) conquistar qualquer título nacional a partir da Série B. Tirando raras exceções, como o Sport em 2008 e o Fortaleza em 2018, o máximo dos clubes nordestinos em competições a partir da segunda divisão é a conquista de acessos (caso da Série B) ou permanências (caso da Série A).

Nordestão
Foto: Copa do Nordeste/Twitter/Divulgação

E repare bem: tal reconhecimento não teria impacto apenas no quesito memória histórica, como também teria repercussão relevante atualmente. Estamos falando da possibilidade de um clube como o Náutico, por exemplo, ter títulos regionais reconhecidos após ter representado tão honrosamente a região nos anos 1960. Ou da possibilidade da dupla Bahia e Sport ampliarem suas conquistas regionais, assim como o Palmeiras e o Santos ampliaram suas conquistas após a oficialização da Taça Brasil. O clube verde e branco, por exemplo, só é hoje o maior campeão brasileiro graças a essa oficialização, realizada em 2010. Das 10 conquistas nacionais do Palmeiras, 04 são foram da antiga Taça Brasil. Já o Santos de seus 08 títulos nacionais, conquistou 06 no formato Taça Brasil. Se os predecessores do Brasileirão receberam chancela oficial, qual a razão do mesmo processo não ocorrer com o Nordestão que atualmente se firma como uma das competições mais expressivas e lucrativas do país? Atualmente, o Nordestão tem uma valorização mercadológica maior do que a maioria dos campeonatos estaduais. Arrisco dizer que, exceto os privilegiados Paulistão e Cariocão, o Nordestão já ultrapassa os demais ou pelo menos se equipara a outros estaduais com alto investimento como são os casos do Gaúcho e Mineiro.

Por último, quando falo em reconhecimento, não me refiro as diversas competições regionais que antecederam o Nordestão. Até o momento, foram identificadas nove competições regionais que antecederam a primeira edição do Nordestão, realizada oficialmente em 1994. Em ordem cronológica, são elas: a) Copa Cidade de Natal, 1946; b) Torneio dos Campeões do Nordeste, 1948; c) Torneio dos Campeões do Norte-Nordeste, 1951-1952; d) Copa Norte, fase Norte-Nordeste da Taça Brasil, 1959-1968; e) Copa dos Campeões do Norte, 1966; f) Hexagonal Norte-Nordeste, 1967; g) Torneio Norte-Nordeste, 1968-1970; h) Taça Almir de Albuquerque, 1973; i) Torneio José Américo de Almeida Filho, 1975-1976. Dessas competições regionais que antecederam o atual Nordestão, apenas o Torneio Norte-Nordeste, realizado entre 1968 a 1970, tem chancela oficial da CBF (no caso, foi organizado pela antiga CBD).

A oficialização da Taça Brasil foi simultânea à oficialização da “Taça Norte”, ainda em 1959.
A oficialização da Taça Brasil foi simultânea à oficialização da “Taça Norte”, ainda em 1959. Fonte: reprodução Jornal dos Sports

Diante dessa variedade e complexidade de competições, falo especificamente do reconhecimento da Copa Norte (ou Zonal Norte-Nordeste da Taça Brasil e que reunia clubes dessas duas regiões como consequência da divisão geográfica da época) que foi uma competição integrante da Taça Brasil e que por isso mesmo teve organização da CBD (atualmente CBF). Seria um reconhecimento não como um Nordestão atual, mas um reconhecimento semelhante ao visto no Torneio Norte-Nordeste, afinal, trata-se de um título regional ou inter-regional que teve uma relevância expressiva como demonstra os jornais da época. Se a Taça Brasil foi reconhecida justamente, valorizando uma memória nacional, chegou a hora da Copa Norte também receber um reconhecimento que mostre a atenção da CBF com as particularidades históricas e geográficas do Brasil. E já que sempre o futebol europeu é tratado como modelo a ser seguido, temos o exemplo de competições que antecederam a atual Liga Europa. A Taça das Cidades com Feiras, competição não organizada pela UEFA que antecede a Copa da UEFA (atual Liga Europa), apesar de não receber o reconhecimento oficial da maior entidade futebolística europeia é, por exemplo, considerada oficialmente na Espanha como um título equivalente à Liga Europa. Um reconhecimento justo de uma competição antecessora, criada e jogada em uma outra conjuntura, mas mantendo uma linha histórica com a competição que hoje a equivale.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Itamá do Nascimento

É graduado em Ciências Sociais/Licenciatura pela UFPE e mestrando em Sociologia pelo PPGS-UFPE. Na monografia, estudou os jingles produzidos durante a Copa do Mundo e suas influências sobre a identidade nacional brasileira. Atualmente, no mestrado, estuda os megaeventos esportivos sob uma perspectiva do capitalismo dependente com foco em Pernambuco; uma das cidades-sede da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014.

Como citar

NASCIMENTO, Itamá do. Pelo direito à memória: Nordestão e seus predecessores. Ludopédio, São Paulo, v. 155, n. 33, 2022.
Leia também:
  • 176.6

    Entre a bola e a desigualdade: Reflexões sobre a função publicidade, o desenvolvimento regional e as disparidades no futebol nordestino

    Viviane Silva de Souza, Anderson David Gomes dos Santos
  • 161.22

    Leituras para uma análise do torcer em Alagoas

    Anderson David Gomes dos Santos, Viviane Silva de Souza
  • 159.10

    Football no Recife: modernidade e exclusão

    Rodrigo Carrapatoso de Lima