Como acontece a cada 365 dias a renovação para um novo ano nos faz crer que dias melhores virão. Se os erros cometidos no passado recente não devem se repetir espera-se que o novo ano traga consigo muitas coisas boas.

Entre os meus pedidos ao pular uma das sete ondas, assim diz a tradição de quem passa o ano na praia, foi sobre uma mudança no campeonato brasileiro de futebol. Sei que ao contar o meu pedido ele pode perder o efeito, mas mesmo assim vou correr esse risco.

Pedi que o Brasil não faça o campeonato brasileiro no modelo de pontos corridos. Em que pese saber de antemão quantos jogos sua equipe vai fazer em cada campeonato brasileiro entendo que esse fato não justifica a sua manutenção para futuras edições. Antes que alguém reclame, informo que sei que o campeonato de 2018 terá esse modelo.

Para justificar meu ponto de vista vou dialogar com o um texto do antropólogo Marshall Sahlins intitulado “O beisebol é a sociedade representada como um jogo”. A partir dos argumentos de Sahlins penso como o último campeonato brasileiro de 2017, vencido pelo Corinthians, manifesta as críticas e os argumentos do antropólogo.

Em seu texto Sahlins traça uma relação entre o campeonato de beisebol vencido pelo Yankees de Nova Iorque em 1939 com a vitória do Giants no campeonato de 1951. Para Sahlins (2006, p. 127), “[…] as duas histórias não apenas mostram a ação individual e coletiva, respectivamente, como também motivam a diferença narrativa, ao fazer o contraste entre tipos de mudança histórica”.

Em seguida ressalta a diferença fundamental entre os campeonatos separados por 12 anos. “A história dos Yankees quando venceram o campeonato de 1939 desenvolveu-se, enquanto a do Giants, em 1951, foi eventual. A primeira foi evolucionária, e a segunda, um tipo de ‘volte-face’ revolucionária”.

Por extensão, pode-se pensar que o campeonato brasileiro de pontos corridos reproduz o que Sahlins chamou de desenvolvimento, de evolução e que dificilmente produz uma mudança brusca na tabela de classificação. Assim, o Corinthians de 2017 tornou-se campeão ao longo de cada rodada. Seu primeiro turno impecável concedeu uma vantagem que pode ser “administrada” diante de derrotas inesperadas no segundo turno. É óbvio que o time não foi campeão somente por ter vencido o primeiro turno de forma invicta, mas de ter mantido a vantagem no segundo turno. Além disso, teve a melhor campanha dentro e fora da casa. Algo essencial em campeonatos de pontos corridos.

Corinthians recebe a taça de Campeão Brasileiro 2017. Foto Lucas Figueiredo/CBF
Corinthians recebe a taça de Campeão Brasileiro 2017. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Recorro novamente a Sahlins para pensarmos o campeonato brasileiro de 2017 (e muitos outros da era dos pontos corridos):

Não houve uma competição acirrada na Liga Americana de 1939, nenhum ponto de inflexão, nenhuma disputa. Sem considerar pequenas flutuações cotidianas, desde o começo os Yankees progressivamente se distanciaram da competição, até terminar a temporada com uma extraordinária vantagem de 17 jogos sobre (quem mais?) os Red Sox de Boston. Pela mesma razão, não houve atos ou heróis decisivos responsáveis pela vitória no campeonato. Embora certos jogadores dos Yankees tivessem atuações excepcionais, e um ou outro possa ter feito um jogo extraordinário para decidir alguma partida em particular, nenhum desempenho individual e nenhum evento específico podem responder adequadamente à questão (de fato) apresentada por Hexter: como os Yankees conseguiram vencer o campeonato? Para entender essa história de dominação progressiva, é suficiente demonstrar a superioridade dos Yankees como time, ao longo de toda a temporada, nas funções críticas do beisebol: rebater, devolver e arremessar”. (2006, p. 125).

Na 32ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2017 quase houve esse ponto de inflexão. Em um jogo considerado como a “final do campeonato” o Corinthians venceu o Palmeiras por 3 a 2. Não vou entrar no debate sobre as polêmicas do jogo, mas ressaltar que se fosse, de fato, a final do campeonato ainda haveria a chance de ter uma mudança no desfecho do campeonato em uma segunda partida da final. Como as duas equipes não jogariam novamente o título do Corinthians e o vice-campeonato do Palmeiras foram conquistados por caminhos diferentes.

Este modelo de campeonato brasileiro tem há algum tempo transformado os jogos das equipes que estão na zona de rebaixamento como sendo as grandes partidas das rodadas finais. Isso acontece, basicamente, porque o campeonato tem sido vencido com algumas rodadas de antecedência. Diante da falta de uma final surgem algumas “finais” para decidir quais equipes permanecem na Série A ou, na melhor das hipóteses cria-se uma disputa frenética pela vaga na Libertadores da América.

O campeonato de pontos corridos não permite a produção de ídolos e heróis no futebol. Os ídolos não se firmam no futebol brasileiro diante do assédio de clubes do exterior. Se outrora eram os clubes europeus que levavam os ídolos brasileiros, agora o capital financeiro vindo de países asiáticos tem sido implacável. Os heróis produzidos diante dos jogos eliminatórios ou mesmo em finais não encontram situações capazes de os colocarem em condições heroicas. Não há feitos a serem superados. Tudo acontece a partir da ideia de acúmulo. Se o time não for campeão nesta rodada na próxima terá a chance de se sagrar campeão.

O Corinthians teve, pela primeira vez na história do Campeonato Brasileiro, um artilheiro. Jô dividiu a artilharia com Henrique Dourado do Fluminense e foi, sem dúvida, decisivo em muitas partidas do campeonato. Porém, o que faltou para Jô, não por sua culpa, mas pelo formato da competição foi ocupar o lugar de herói da equipe corinthiana. Não quero diminuir seu papel na conquista, mas a falta de uma final não o coloca como o jogador que deu o título ao clube. Ou que tenha sido fundamental na classificação da equipe em alguma fase eliminatória do campeonato. Na última partida do campeonato não foi escalado, já estava “de férias” como prêmio pelo título.

Jô foi o artilheiro do Corinthians no Campeonato Brasileiro de 2017. Foto: © Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians.

O campeonato de pontos corridos não produz nada além de uma ilusão que coloca os times em igualdade de condições. Todos jogam o mesmo número de partidas, dentro e fora de casa. A desigualdade e injustiça, por exemplo, começa na divisão da cota da TV que não é repartida de forma igualitária entre os clubes.

O resultado é a diferença entre os elencos e as possibilidades financeiras de cada clube que produz, por sua vez, inúmeras outras desigualdades na competição. Também não produz ídolos e heróis para o futebol brasileiro. O herói para Sahlins é um fazedor de história. Podemos ampliar essa condição ao ídolo. Será que dos últimos campeões brasileiros temos jogadores que ocupam essa condição das equipes campeãs? Penso que temos alguns destaques que, provavelmente, no ano seguinte já não estavam no elenco para o ano seguinte. Gabriel Jesus, campeão em 2016 e Jô, campeão em 2017 validam esse argumento.

Nos pontos corridos tudo está sempre em seus devidos lugares. Temos muitos jogos e poucas partidas memoráveis. Não há possibilidade para uma mudança de direção, para uma alternância constante da liderança. Quem se distancia na ponta da tabela dificilmente perde o título. Não há pontos de inflexão, diria Sahlins. Sem estes pontos de inflexão a história a ser contada se enfraquece quando comparada com um evento que rompe a lógica instituída da competição. Alguns vão retomar o argumento de que uma vitória inesperada é injusta. Daí eu pergunto o que o futebol deveria ser? Ele existe para ser jogado, ser disputado e ser imprevisível. É óbvio que o futebol tem que ser justo em sua dimensão administrativa, da arbitragem, dos torcedores. Justo e imprevisível são ingredientes que não podemos dissociar do futebol. Os pontos corridos eliminam a imprevisibilidade da disputa. Por isso sou a favor do fim dos pontos corridos.

Referência

SAHLINS, Marshall. História e cultura: apologia a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Pelo fim dos pontos corridos. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 8, 2018.
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