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7 Estádios inesquecíveis: Pennydarren Park – Merthyr Tydfil – Parte 3

Marcos Alvito 6 de junho de 2021

O País de Gales é o patinho feio da Revolução Industrial. Apenas a Inglaterra é mencionada. Mas era das perigosas minas do sul de Gales que vinha boa parte do combustível indispensável para a transformação do planeta: o carvão. Carvão para mover as máquinas a vapor nas fábricas e as locomotivas que interligaram regiões antes distantes impactando profundamente a vida cotidiana em todo o planeta. Para se ter uma ideia, em 1880, 97% da energia utilizada no planeta era proveniente do carvão.

Na região sul de Gales, a cidade de Merthyr Tydfil, cercada de minas de carvão por todos os lados, além da presença de ferro, granito e bastante água, chegou a ser um dos principais centros produtores de aço do mundo na primeira metade do século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, todavia, começou um declínio do qual a cidade iria se recuperar apenas parcial e brevemente durante a Segunda Guerra Mundial. As condições de vida da classe trabalhadora sempre foram extremamente difíceis, causando uma revolta já em 1831. Hoje a cidade experimenta uma alta proporção de desempregados e um péssimo IDH.

Para lá fui naquela manhã de sábado de 27 de outubro de 2007. Torcer para o Oxford United, um time no que podemos chamar de 5a. divisão, tinha dessas coisas. O Merthyr Tydfil estava duas divisões abaixo, um clube que nunca chegou a jogar na Football League, ou seja, nunca esteve entre os 92 clubes das quatro primeiras divisões. Os dois clubes iriam se enfrentar pela quarta rodada da F.A. Cup, a mais antiga competição de futebol do mundo.

A viagem dos dois ótimos ônibus de torcedores dos Yellows se deu de forma tranquila e em cerca de três horas chegamos lá. Aquilo em nada se assemelhava a um ônibus de “torcida organizada” brasileiro: crianças, senhoras de idade com seus cachecóis do clube, homens em ligeira maioria mas de todas as idades, muitos já de cabelos brancos. Desembarcamos sob os olhares vigilantes de meia dúzia de policiais com seus coletes amarelos e aqueles chapéus exagerados.

Apesar dos pesares, achei a cidadezinha (hoje com menos de 60 mil habitantes) extremamente simpática, com suas casinhas quase iguais, modestas mas graciosas, e ruas tranquilas, cobertas de folhas de outono.

O Pennydarren Park é um estádio modesto com capacidade para 4.500 pessoas que já deve ter visto melhores dias. Parece que as únicas três cores eram, tirando o escudo, do qual falarei, o cinza, o cinza claro e o cinza escuro. Uma das laterais era coberta e contava com assentos de plástico. A lateral oposta era coberta também, mas não havia assentos e sim os famosos “terraces”, arquibancadas com degraus baixos, feitas para que se fique em pé, forma predominante nos estádios ingleses até a tragédia de Hillsborough e a reforma que se seguiu.

The Martys
Escudo. Foto: Marcos Alvito.

Nós ficamos atrás do gol, na única área descoberta, obviamente destinada aos torcedores adversários, que não correm o risco de torrarem ao sol, mas durante o ano apanham um bocado de chuva, aguentam o frio, o vento e, de vez em quando, neve. Demos sorte, fazia um frio moderado, sem ventos. E mais ou menos cem torcedores do Oxford ali se acomodaram. A hospitalidade galesa se estendia ao banheiro: não havia teto, apenas algumas paredes resguardando a moral e os bons costumes. Também não havia privadas, apenas aquele buraco no chão cujo nome foi eternizado nas reportagens sobre penitenciárias: o boi. E se o sujeito ficasse com vontade de fazer o número 2?
Felizmente o meu sistema digestivo estava pacificado. Eu tinha matado a fome com uma comida bem popular por aqui batatas fritas cobertas por feijão mulatinho. E antes do jogo me dediquei a ler o programa do jogo. Um programa modesto em termos de apresentação, em preto e branco, é lógico. Mas bem útil. Descubro que o Merthyr Tydfil FC foi fundado em 1869, época das vacas gordas do carvão e do aço. E havia informações detalhadas sobre cada jogador, não somente do time local mas também do Oxford, havia até duas páginas sobre a história do Oxford United.

Antes de falar do jogo, não poderia deixar de explicar o nome do time, que na verdade é o nome da cidade. Tydfil é o nome de uma santa que foi martirizada por pagãos no século V. O time da casa, de forma pouco recomendável mas bastante profética, tomou a alcunha de “Os mártires”.

Vamos à peleja. Nossos anfitriões entram em campo com camisas brancas e calções pretos, mantendo a economia de cor predominante no local. Nós envergamos nosso tradicional uniforme todo amarelo, camisas, calções e meias.

Zero a zero no primeiro tempo, com o time da santa querendo fazer um milagre. Metemos um a zero no segundo tempo mas eles empataram. Nossa esperança naquele dia estava nos pés do garoto Jordan Rhodes, então com 17 anos. Hoje ele tem 31 anos, já jogou na Premier League e na seleção escocesa (país do pai). Mas até então era apenas uma promessa que o Norwich, então na primeira divisão havia nos emprestado pelo somítico prazo de um mês. Perto do final da partida Rhodes começou a botar as manguinhas de fora e depois de um drible seco fez o gol de desempate em um chute cruzado sem defesa da entrada da área.

FA Cup
Oxford Utd 2×1 Merthyr Tydfil – 4th qual round FA Cup 110. Foto: Marcos Alvito.

Comemoração estilo inglês: cantoria e os dois braços levantados como se imitando um V. Depois fomos gentilmente escoltados pelos policiais até o nosso ônibus. Achando que estavam com o dever cumprido, foram embora. E para dar alguma emoção ao nosso passeio, assim que o nosso ônibus saiu um pequeno bando de garotos por volta de doze anos apareceu correndo, tacando pedras e xingando, provavelmente nesta língua tão sonora que é o gaélico.

O brasão do clube, sobre o qual prometi falar, tem um fundo azul, provavelmente para representar o céu. Ao centro, a santinha Tydfil, em amarelo, cabeça para o lado. Em cima  do escudo, de cada lado, duas cruzes, amarelas também, para ninguém esquecer o martírio. Afinal, para torcer para o Merthyr Tydfil só gostando muito de sofrer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. 7 Estádios inesquecíveis: Pennydarren Park – Merthyr Tydfil – Parte 3. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 11, 2021.
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