Já dizia o poeta: Um dia sem futebol, é um dia ruim! Peço licença para acrescentar: Muitos dias sem futebol é pior ainda.

Durante a pandemia do COVID-19, nossa geração experimentou novas sensações, estamos sentindo o gosto da privação. Confinados em nossas casas, no mais real dos reality shows, vivemos o desafio das restrições que este momento nos impõe. Neste momento, pais estão aprendendo a conviver com seus filhos, esposas e maridos estão dividindo o mesmo teto por 24h, atividades coletivas proibidas, uma nova existência para muitas pessoas.

Dentre as restrições, o futebol também entrou em quarentena. Mesmo que alguns campeonatos ainda resistam mundo afora, como o de Belarus ou de Myanmar, no mais, o futebol parou. Parou tarde, diga-se de passagem. Essa entidade que tanto nos apaixona, por um momento achou que poderia resistir ao inimigo, endossada por nós, torcedores, e por eles, jogadores e empresários do ramo, até que a ficha caiu.

Primeiro, fecharam os portões, entendendo-se que sem a torcida o problema estaria resolvido. Assim se fez em várias partes do mundo, portões fechados na Itália, nos campeonatos estaduais aqui no Brasil, em dois jogos da Liga dos Campeões, no Campeonato Brasileiro Feminino, no Campeonato Espanhol, dentre outros, emergindo discussões sobre a situação.

Jürgen Klopp e Pep Guardiola[1] manifestaram-se sobre a situação. Nas suas falas, foi possível perceber que estavam de acordo em seguir o que fosse imposto naquele momento, mas não eram a favor de jogos de futebol com portões fechados. Alegaram que o futebol é feito para o povo e que sem a presença da torcida não haveria sentido em realizar os jogos, ao mesmo tempo que não se posicionaram pela paralisação total do Campeonato Inglês.

Pep Guardiola perdeu a mãe, Dolors Sala Carrió, aos 82 anos, vítima do novo coronavírus no dia 6 de abril. Foto: Divulgação/Manchester City.

Nesse processo, a China, país onde surgiram os primeiros casos de contaminação, paralisou seu campeonato e forçou a quarentena de cidades inteiras. No embalo desses fatos, jogadores brasileiros que atuam no país voltaram para o Brasil até que a situação fosse resolvida. Marcelo Moreno, que vinha de negociação com o Cruzeiro, a concretizou e veio para Minas Gerais. O Palmeiras tentou realizar o sonho antigo de contar com Hulk no seu elenco.

No Brasil, a situação foi outra. Ao determinar que os jogos do Campeonato Carioca fossem realizados com portões fechados, o governador do estado, Wilson Witzel, deu a seguinte declaração: “Não vai haver aglomeração com portões fechados. O contato é entre os jogadores, aí o risco é deles”[2]. Essa atitude do político, reconhecido por suas declarações desumanas, gerou um movimento de jogadores que, como trabalhadores, tinham a opção de acatar o que fosse determinado pelo calendário ou forçar uma paralisação geral. No momento dessa discussão, a situação não havia chegado ao estado atual[3], as decisões ainda se baseavam em uma situação mais hipotética do que real.

Em pouco tempo, a conjuntura alterou-se drasticamente. A ausência dos torcedores, o distanciamento da imprensa, o sistema de isolamento do grupo de jogadores durante os treinos, contudo não foi suficiente. Para se contaminar, não é preciso uma aglomeração de pessoas, basta apenas alguém não contaminado ter contato com alguém acometido pelo vírus que tudo acontece. Assim, começam a surgir jogadores e técnicos diagnosticados com COVID-19.

Jogadores começaram a testar positivo, acendendo de vez a luz de alerta, mostrando que não era possível continuar com os jogos. Na Itália, que, em percentuais populacionais, é o país mais acometido pelo vírus até o momento, jogadores de renome como Daniele Rugani, Blaise Matuidi e Paulo Dybala, da Juventus, compuseram a vasta lista de pessoas contaminadas na velha bota. Outros membros notáveis diagnosticados foram: o argentino Ezequiel Garay e alguns de seus companheiros de defesa no Valência da Espanha; Marouane Fellaini, belga que atua no futebol chinês; Mikel Arteta, técnico espanhol do Arsenal, da Inglaterra, e Callun Hudson-Odoi, promessa inglesa do Chelsea, foram alguns dos notáveis com diagnósticos divulgados. No dia 21 de março de 2020, faleceu o ex-presidente do Real Madrid, Lorenzo Sanz, aos 76 anos. Primeira grande personalidade do futebol a ter a morte confirmada devido ao coronavírus.

Lorenzo Sanz (à direita da imagem), ex-presidente do Real Madrid, faleceu aos 76 anos após contrair o COVID-19. Foto: Divulgação/Instagram.

Até no dia 19 de março, a Turquia mantinha seu campeonato, mesmo com portões fechados. Continuou a competição por não haver um número considerável de casos confirmados no país, sendo somente dois casos confirmados no final de semana posterior à paralisação. Quatro dias depois da pausa, Fatih Terim, um dos principais técnicos da história do futebol turco e atual treinador do Galatasaray, terceiro colocado na liga local, testou positivo para o COVID-19.

Até aqui, perdemos o jogo, mas foi o jogo físico, na grama, onze contra onze. Muito do que se passou poderia ter sido evitado, providências tomadas com antecedência, e é aí que perdemos o jogo de verdade, o jogo da humanidade.

Permeando as discussões sobre portões abertos ou fechados, paralisação ou não de campeonatos, o custo de cada uma dessas decisões esteve presente em várias manchetes. Esse pensamento é pertinente, afinal de contas estamos falando de um esporte profissional, com trabalhadores envolvidos em todas as instâncias. Porém, o prejuízo não é apontado pensando nesses trabalhadores, e sim na quantia que o clube deixa de ganhar, que os envolvidos administrativamente (patrocinadores, empresários, credores, etc.) perderiam com essas decisões.

A atual condição evidenciou uma faceta forte do ser humano, a ganância, a busca sedenta pelo lucro acima de qualquer coisa. Diante da situação, observando esses fatos citados e também a realidade observada na cidade de Belo Horizonte, empossados por um discurso raso de “não deixar se tomar pela histeria”, vi bandos e mais bandos de Toruk Makto.

Toruk Makto, do filme Avatar. Foto: Reprodução/Facebook.

Entender sobre o Toruk Makto é fundamental neste momento. Personagem componente do filme Avatar, lançado em 2009 com a direção de James Cameron, Toruk Makto era uma das muitas criaturas aladas do planeta em que se passa a história, imponente e conhecido por não olhar para cima, pois era o animal que voava mais alto e tinha total confiança disso.

Assim estamos nós, vivendo em meio a animais alados plainando na sua altivez, brincando com as suas vidas e a dos outros, sentindo-se imunes pela sua condição financeira, faixa etária ou localização geográfica.

A demora em decidir sobre a paralisação do futebol, o adiamento de campeonatos e demais medidas, pode, sim, ter contribuído para as estatísticas de contaminação. Calendários são passíveis de serem refeitos, competições adiadas ou anuladas, elencos renovados, mas, em nome de “um bem maior”, que é o lucro, foram precisas mortes e determinações políticas e judiciais para que o futebol fizesse a sua parte.

O futebol é feito por pessoas, para pessoas. Porém, como os setores da economia, no futebol só houve preocupação com o lucro do patrão, a saúde financeira e não a saúde dos envolvidos. Vivemos tempos em que o dinheiro não é suficiente, basta observar o caso italiano em que não há respiradores mecânicos para toda a população doente, tendo os médicos que escolher quem vive e quem morre. Duvido muito que seja porque eles não tenham dinheiro para comprar ou que exista algum embargo econômico de alguma outra nação.

Por fim, perdemos o jogo. A derrota dói, demora-se a esquecer. Contudo, há tempo para se recuperar. Ainda há tempo para ser mais humano e solidário, não pensar somente no dinheiro e na diversão de alguns. O futebol é para todos e assim deve continuar. FICA EM CASA, PORRA!


P.S.: Todo meu respeito ao Comitê Olímpico do Canadá, que, sem rodeios, disse que não irá participar das Olimpíadas se elas acontecerem em 2020.[4]


Notas

[1] Klopp e Guardiola são contra jogos com portões fechados: “Sem torcida não faz sentido”.

[2] Governador do Rio explica por que Carioca não foi suspenso: ‘Contato é entre os jogadores, aí é risco deles’.

[3] Este texto foi escrito em 24 mar. 2020.

[4] Canadá anuncia que não vai participar das Olimpíadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mateus Alexandre Silva

Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e membro do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

SILVA, Mateus Alexandre. Perdemos o jogo!. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 10, 2020.
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