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Pode gritar “bicha” no estádio?

Trinta anos atrás, em 1989, o racismo passa a ser considerado crime no Brasil – embora já fosse enquadrado como contravenção desde 1951. Em 2006, começa a vigorar a Lei Maria da Penha, que coíbe atos de violência doméstica contra a mulher. A homofobia, por sua vez, precisou esperar até junho de 2019 para se caracterizar como crime, quando finalmente o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero fosse tratada como ação criminosa.

Do papel à prática punitiva, o caminho é longo. Nos estádios de futebol, contudo, alguns exemplos positivos felizmente começaram a surgir. Há bem pouco tempo, cheguei a pensar que nunca veríamos uma atitude como a do árbitro Anderson Daronco no gramado. Em medida inédita no Brasil, ele paralisou uma partida por conta dos cantos homofóbicos vindos das arquibancadas. Durante a vitória do Vasco contra o São Paulo pelo Campeonato Brasileiro, no último dia 25 de agosto, a torcida cruz-maltina entoou o canto “viado, time de viado” para o clube adversário.

Daronco não só paralisou a partida, informando ao técnico e ao capitão vascaínos o motivo da paralisação, como também relatou o caso na súmula, o que poderia gerar punição ao clube, com a perda dos três pontos referentes àquela partida. Vale ressaltar que, na segunda-feira seguinte, o Club de Regatas Vasco da Gama emitiu nota repudiando o ocorrido e pedindo desculpas pelos cantos homofóbicos ocorridos em São Januário.

“Em relação ao episódio registrado na partida deste domingo (25/08) contra o São Paulo, o Club de Regatas Vasco da Gama lamenta e repudia qualquer canto ou manifestação de caráter homofóbico por parte de alguns de seus torcedores. Da mesma forma, a Diretoria Administrativa do Clube manifesta seu pedido de desculpas a todos que, corretamente, se sentiram ofendidos por este comportamento.

O combate a este tipo de postura – iniciado ainda em campo, quando o técnico Vanderlei Luxemburgo, os jogadores, parte da torcida e o próprio Vasco da Gama, através do sistema de som do estádio, clamaram para que os gritos cessassem – não deve ser motivado pelo receio de punição desportiva (eventual perda de pontos), mas, sim, por uma questão de cidadania e respeito ao próximo e cumprimento da lei. Preconceito é crime. E se existe um Clube no Brasil historicamente habituado a levantar a voz contra qualquer tipo de discriminação este é o Vasco da Gama, dono da história mais bonita do futebol. Assim foi com a resposta histórica de 1924; assim é com os cantos que o torcedor vascaíno entoa orgulhosamente na arquibancada enaltecendo a luta do Clube a favor de negros e operários.

A plateia de um estádio de futebol e a sociedade de maneira geral passam por um processo de aprendizado e conscientização necessário para que atos de preconceito fiquem no passado – um triste passado, diga-se. A Diretoria Administrativa do Club de Regatas Vasco da Gama compromete-se em promover ações educativas neste sentido junto ao seu torcedor, certa de que encontrará em cada vascaíno um aliado no combate a qualquer tipo de discriminação. O Vasco é a casa de todos.”
A atitude da arbitragem me deixou um pouco mais otimista em relação ao cenário extremamente homofóbico que vemos ao ligar à TV num domingo às quatro da tarde ou que encaramos ao sair de casa para acompanhar de perto nosso time no estádio. Podemos incluir aí o machismo e o racismo como outras práticas discriminatórias que se potencializam nesse lugar onde ainda impera uma masculinidade tóxica. O racismo, no entanto, creio estar um pouco menos evidente pelo fato de as punições serem mais efetivas.

Os gritos de “macaco” ainda não foram totalmente extintos das arquibancadas, porém, nos dias de hoje, talvez não sejam entoados com a mesma frequência com que aparecem o canto “time de viado” e o grito “ôoo bicha” quando o goleiro adversário vai cobrar o tiro de meta. Enquanto escrevo este texto, me lembro de um coro que ecoava nas arquibancadas do Mineirão no final dos anos 90 quando o Flamengo ia jogar contra o Cruzeiro. Nessa época, eu vivenciava minhas primeiras memórias do futebol e ainda não entendia muito bem o que aquele refrão pejorativo queria dizer: “Ô Júlio César, seu viadinho, sua mulher deu o c* pro Ronaldinho”.

O canto em alusão aos relacionamentos da então modelo Susana Werner com o atacante Ronaldo e o goleiro Júlio César – com quem ela é casada atualmente – destilavam preconceito tanto contra os gays quanto contra as mulheres, os quais até hoje me pergunto se são mesmo grupos minoritários nos estádios. Sobre as mulheres, felizmente já conseguimos ver números mais equiparados entre a presença masculina e feminina nas arquibancadas. Os gays, por sua vez, seguem receosos de sequer poder dar as mãos ao parceiro em um cenário tão excludente.

Prova disso é que no último dia 1º de setembro, na partida entre Cruzeiro e Vasco pelo Campeonato Brasileiro no Mineirão, um casal de torcedores cruzeirenses foi ameaçado por estarem abraçados e se beijando no estádio. A troca de carinhos entre Yuri e Warley – troca esta que, vale lembrar, é tão recorrente entre casais héteros e inclusive aplaudida pelos espectadores nas famosas “câmeras do beijo” – foi gravada por alguns torcedores que espalharam o vídeo nas redes como forma de intimidar o casal. Fico imaginando o que essas carícias têm de diferente em relação aos abraços calorosos que um bando de homens suados troca com o desconhecido ao lado quando o time deles faz um gol.

Também vem das arquibancadas mineiras outro (mau) exemplo de preconceito sob o álibi de canto de torcida. “Ô cruzeirense, toma cuidado, Bolsonaro vai matar viado” gritavam os torcedores do Atlético-MG em direção aos torcedores celestes em um clássico válido pelo Campeonato Brasileiro do ano passado.

Fato parecido ocorreu no metrô da Estação da Sé, em São Paulo, onde um grupo de palmeirenses aparece entoando o mesmo coro em relação aos são-paulinos, às vésperas das eleições presidenciais brasileiras. Infelizmente, casos assim ainda são recorrentes nos estádios, mas hoje já consigo ter alguma esperança com os nossos primeiros passos.

Mídia, punições e torcidas queer

É inegável o potencial da mídia e, mais especificamente, do jornalismo esportivo, no combate às ações discriminatórias recorrentes nos estádios. De alguns anos para cá, vem crescendo gradativamente o número de matérias, reportagens e documentários que denunciam preconceitos, apontam perspectivas e divulgam campanhas a favor de causas ditas minoritárias, como a causa negra, feminista e LGBT. O caso Richarlyson, por exemplo – que creio ser o mais emblemático da homofobia no futebol brasileiro – imagino que hoje seria pautado de forma diferente, bem mais inclusiva e bem menos sensacionalista como foi em 2007.

Naquele ano, surgiu na mídia a especulação de que um jogador de um grande time brasileiro assumiria publicamente sua homossexualidade. Diante do ineditismo da situação, o programa Debate Bola, exibido pela Rede Record, questionou em mesa redonda se esse jogador estaria atuando pelo Palmeiras. O dirigente do time alviverde José Cyrillo Júnior, convidado do programa, respondeu prontamente que “o jogador Richarlyson quase foi do Palmeiras”, porém havia aceito a proposta para jogar no São Paulo. A então revelação do nome do volante e meia Richarlyson provocou risos dos jornalistas e demais participantes do debate.

Sentindo-se ofendido com a citação de seu nome, o jogador – que sempre se declarou publicamente heterossexual – entrou com uma queixa-crime contra José Cyrillo por injúria. No entanto, o processo foi arquivado pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, que simplesmente julgou o caso improcedente, embasado no argumento de que o futebol era um jogo “viril” e “varonil” e que, portanto, ofensas homofóbicas entre “boleiros” são parte do jogo e deveriam ser resolvidas dentro de campo.

“A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir. […] Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante. […] Quem é, ou foi boleiro, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num tête-à-tête. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro. […] Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. […] Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. […] É assim que eu penso… e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! Rejeito a presente Queixa-Crime.” (Trechos da sentença proferida pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho em 5 de julho de 2007, arquivando a queixa registrada pelo jogador Richarlyson. O texto completo da sentença está disponível em: folha.uol)

Ação do Bahia no combate à homofobia. Foto: Felipe Oliveira.

Os advogados de Richarlyson entraram com recurso contra o arquivamento e, felizmente, o referido juiz foi punido pelo ato. Entretanto, deste fato em diante, a carreira do jogador ficou marcada pela homofobia, apesar das passagens de destaque em vários clubes do país, incluindo aí uma convocação para a Seleção Brasileira. Em sua trajetória de cinco anos defendendo o São Paulo, não raro Richarlyson era alvo de ofensas da torcida que ignorava seu nome no ritual pré-jogo, quando os torcedores cantam a escalação do time.

Me lembro também que, logo após deixar o clube tricolor para assinar contrato com o Atlético-MG, o jogador também foi alvo de homofobia em piadas sem graça que associavam sua contratação à recém-lançada camisa cor-de-rosa do time, que à época seria o segundo uniforme da equipe alvinegra. Nem precisamos entrar aqui na discussão em torno do termo “bambi”, comumente associado à torcida do São Paulo e popularizado no início dos anos 2000 pelo jogador Vampeta, que em 2016 tentou se justificar em entrevista ao Esporte Espetacular, da Rede Globo: “o Corinthians tem o gambá, o Santos tem a baleia, o Palmeiras tem o porco e o São Paulo precisava adotar um animal de estimação. Essa história do bambi já existia e eu só acordei o gigante adormecido.”.

Quase duas décadas depois do ocorrido, o São Paulo Futebol Clube se posicionou pela primeira vez a favor da causa. Em 28 de junho deste ano, no Dia Internacional do Orgulho LGBT, o departamento de Comunicação do clube manifestou seu repúdio ao preconceito com uma mensagem publicada nas redes sociais: “Dentro e fora do esporte, o amor há de prevalecer diante do ódio. Que hoje, e todos os dias, repensemos atitudes. O amor não é o problema. E o São Paulo é de todos.”. Na mesma data, vários clubes brasileiros se manifestaram pelo Orgulho LGBT, como o Sport Club Internacional, que iluminou o estádio Beira-Rio com as cores do arco-íris.

Beira-Rio iluminado em homenagem ao Dia do Orgulho LGBTI+. Foto: Popy Martins.

Iniciativas como essas seguem ganhando espaço na mídia tanto por intermédio de jornalistas de grandes emissoras quanto pelas assessorias dos próprios clubes de futebol, que há poucos anos atrás sequer pautavam a causa. O advento das torcidas queers nos últimos cinco anos também é outro destaque bastante favorável ao cenário. Galo Queer, Cruzeiro Maria, Bambi Tricolor, Palmeiras Livre, Gaivotas Fiéis, Grêmio Queer, Queerlorado, EC Bahia Livre, Vitória Livre, entre outras, são exemplos resultantes da articulação de torcedores em prol da causa LGBT e contra o padrão normatizador vigente nos estádios brasileiros. Cabe aqui também a referência às pioneiras ColiGay e FlaGay, torcidas organizadas de Grêmio e Flamengo que, no contexto da ditadura militar dos anos 1970, se reuniam nos estádios para apoiar seus respectivos clubes e, mesmo que ainda não fosse este o foco, se legitimar em um lugar de domínio heteronormativo.

Para finalizar, respondo à pergunta proposta no título deste texto com o exemplo das punições registradas pela FIFA e CONMEBOL à Confederação Brasileira de Futebol: entre 2016 e 2018, a CBF precisou abrir os cofres e pagar multas significativas por cantos homofóbicos em jogos válidos pelas eliminatórias do Mundial e pela Copa América, recentemente sediada no Brasil. Tais punições em âmbito internacional, aliadas ao ineditismo da súmula do árbitro Anderson Daronco, que paralisou uma partida ao ouvir o canto “time de viado” no maior campeonato de futebol do país, deixam claro que NÃO, não se pode gritar bicha no estádio. Nem em lugar algum.


Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thalita Neves

Jornalista (UFOP), mestra em Jornalismo (UFSC) e doutoranda em Comunicação (UERJ). Pesquiso aspectos socioculturais das rivalidades clubísticas do futebol brasileiro.

Como citar

OLIVEIRA, Thalita Raphaela Neves de. Pode gritar “bicha” no estádio?. Ludopédio, São Paulo, v. 127, n. 1, 2020.
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