Há alguns anos, o atacante da seleção brasileira e do Manchester City, Gabriel Jesus, chamou a atenção ao comemorar seus gols de uma maneira diferente. Após marcar seus tentos, o jogador simula estar ao telefone. A comemoração ficou conhecida como “alô, mãe!”. E, de tão marcante, já fez parte de peças publicitárias e diversas entrevistas do jogador.

Gabriel Jesus foi criado apenas por Dona Vera Lúcia, mãe a quem o jogador não cansa de render homenagens. As ligações, como mostra o comercial da VIVO no período da Copa do Mundo de 2018, eram a forma de estar presente na rotina de formação do filho. Cabe mencionar, entretanto, que como a história de Gabriel e Dona Vera Lúcia, existem diversas outras.

Gabriel Jesus
Foto: Reprodução Twitter

Matérias jornalísticas do período da Copa de 2018 abordaram o tema da monoparentalidade feminina. Como exemplo mais marcante, temos a reportagem de Breiller Pires para o El País, intitulada  “A seleção dos filhos sem pai”, na qual o autor  apontou que, dos 11 titulares da seleção brasileira, dentre eles Gabriel Jesus, 6 cresceram sem a figura paterna.

Essa reflexão se faz necessária, porque vai de encontro ao imaginário coletivo onde o pai é a figura que desperta e ensina o amor pelo futebol, como o responsável por introduzir e manter o filho no esporte. Ao destrinchar a história dos jogadores da seleção brasileira de 2018, observamos que as mães solo também são responsáveis por despertar e apoiar os filhos no sonho de ser jogador. Ainda que isso venha articulado a outros atravessamentos, como de classe e raça, o gênero é um elemento significativo para pensar o contexto futebolístico.

Essa importância do gênero como “categoria útil de análise”, para mencionar Joan Scott[1], fica ainda mais evidente se traçarmos um paralelo entre jogadoras e jogadores de futebol, pensando nas relações de maternidade e paternidade. A maternidade-maternagem[2], como destacada anteriormente, é elemento fundamental que sustenta e mantém os jogadores do futebol masculino. Mas ela interfere da mesma forma no cotidiano e nos sonhos das jogadoras de futebol?

Certamente que muitas atletas também foram apoiadas por suas mães para seguirem o sonho de jogar futebol, mas não podemos ignorar que para tantas outras, há uma ruptura com uma “expectativa de gênero”[3]. E, nos casos em que a negociação com as normas sobre identificação – que se associam à heterossexualidade compulsória -, se tornam um problema, o apoio não se forja como a dinâmica mais evidente ².  Mas, para além dessa questão de suma importância, outras nos parecem ainda pouco refletidas: e quando a maternidade é vivenciada pela jogadora? É possível para o futebol conceber mães que jogam?

Durante o século XIX algumas teses com relação a gênero foram sustentadas. Em alguns desses estudos se defendia que as mulheres não deveriam estudar muito, pois o cérebro era menor e mais frágil, e, deste modo, o excesso de estudos poderia acarretar doenças. No início do século XX, focando mais especificamente no corpo feminino, de forma a controlá-lo, foi concluído que determinados esportes seriam impróprios às mulheres, dentre os quais estava o futebol. E, deste modo, durante os anos de 1941 até 1979 a prática futebolística foi proibida para elas, devido às “condições da sua natureza”, a “frágil natureza feminina”[4].

Após todo esse longo período de proibição e uma gradativa reabertura da prática às mulheres, o futebol feminino só foi regulamentado como modalidade legítima em 1983. Esse atraso causado por certo desinteresse de quem poderia incentivar a modalidade, impactou diretamente o desenvolvimento do futebol de mulheres no Brasil, segundo o jornalista Diogo Magri, em sua reportagem para o El País.

Cabe destacar, no que tange às alegações para a proibição, que estas foram apresentadas sem qualquer comprovação cientifica. E não foi colocada a necessidade de pesquisas sobre o assunto. Isso se justifica pelo fato de a restrição ter sido construída de forma extremamente bem-intencionada, com o objetivo de manter mulheres em sua função única e essencial: gestação-maternidade. Outra possibilidade não pareceu necessária: ouvir quem era diretamente afetada pela medida, ou seja, as mulheres jogadoras! E nem vamos ponderar sobre a diversidade que implica (e sempre implicou) essa construção e identificação com o feminino. Essa questão parecia passar longe de qualquer reflexão da época, tendo em vista que era pressuposto, na elaboração do decreto-lei, que mulheres – e aqui numa lógica da cisgeneridade, branca e heterossexual –, deveriam ser mães. A quem cabe o desejo, não é mesmo?!

Bom, fato é que a proibição acabou, mas o futebol jogado por mulheres continua carregando os seus efeitos e a maternidade ainda segue um tabu quando relacionado ao “futebol de mães”. Essa questão parece se desdobrar em dois eixos: um que passa pela reafirmação de uma feminilidade que pressupõe a maternidade-maternagem e outra que implica na construção da carreira. O “fardo” de suportar o controle e o cerceamento que são vinculados socialmente à identificação com a feminilidade, parece ter continuado com outras roupagens. Ainda que agora não seja um pressuposto explícito, a maternidade (não se enganem) segue como obrigação. E juntamente a isso, há a necessidade de equilibrar o processo de ter uma carreira[5]. No caso de ser atleta, especificamente, isso implica em acumular mais jornadas e funções, o que parece inviável, para não dizer impossível[6]. Apesar disso, a maternidade-maternagem é publicizada como uma escolha para as mulheres, inclusive para as jogadoras de futebol. O que parece ser apagado dessa “escolha” é o entendimento da maternidade-maternagem, conforme dito anteriormente, como desejável à feminilidade (cisgênera, binária, heterossexual, branca). E, assim, quando “ser mãe” não figura como “opção” ou “primeira opção”, independente dos motivos ou dos desejos das pessoas envolvidas, estereótipos são rapidamente acionados para enquadrar as atletas como mulheres destoantes. Afinal, maternindade é instintivo[7]!

Dentre as jogadoras da seleção feminina brasileira que participaram do mundial de 2019, apenas Tamires era mãe. Fazendo uma rápida comparação, apenas 6 jogadores do plantel masculino não são pais, como aponta Pires (2019). No mínimo inusitado, não?!

Tamires, tendo em vista o enquadramento solitário na maternidade, é sempre citada como exemplo de mãe-atleta. Uma série de questões foram fundamentais para que ela se mantivesse no esporte. Em contrapartida, alguns fatores foram cruciais para dificultar esse retorno: ela não teve contrato mantido e não conseguiu nenhum tipo de vínculo com clubes no período de retorno da “licença maternidade”[8].

Tamires
Tamires aplica uma linda caneta. Foto: Rener Pinheiro/Mowa Press.

Ao time de mães jogadoras se uniu posteriormente Alex Morgan. Após vencer o mundial de 2019, jogando pela seleção dos Estados Unidos, a gestação de Morgan teve grande destaque na mídia. Isso parece ter feito emergir com mais amplitude as discussões sobre gravidez, maternidade, maternagem e esporte. Cabe mencionar que a atleta usou toda a sua visibilidade para discutir essas questões-tabu.

Diferentemente do que aconteceu no caso de Tamires, a atacante estadunidense teve mantidos seus contratos e patrocínios durante a gravidez. Essa maior estabilidade e segurança em torno do futuro, pós nascimento da criança, permitiu também que os Jogos Olímpicos figurassem como parte dos planos de retorno da jogadora. Conforme mencionado em reportagem de Renata Mendonça para o portal Dibradoras, a atleta defende veementemente que as mulheres não deveriam ter que escolher entre maternidade e carreira.

Somente em 2020 (talvez pela repercussão da gravidez de Morgan, bem como a manutenção de contratos e garantias de retorno pós licença maternidade), a FIFA parece ter despertado para o fato de que a maternidade é uma possibilidade para as jogadoras de futebol. E assim, com o um atraso de percepção e um lapso temporal, no que tange a garantia de direitos das trabalhadoras atletas, a entidade aprovou mudanças no Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores (RSTP, na sigla em inglês).  Esses novos parâmetros estabelecidos na normativa, se voltam para as jogadoras que engravidam garantindo licença maternidade de 14 semanas, das quais pelo menos 8 semanas devem ser após o parto; manutenção de dois terços do salário durante o período da licença; acompanhamento médico independente – para questões relacionadas à gestação e pré-natal; direito a local adequado para amamentação ou retirada de leite no clube de trabalho; possibilidade de inscrição fora do prazo para a substituição de jogadora que saia do time para o período de licença ou para as jogadoras que retornem às atividades após este período[9].

Essas mudanças que buscam a proteção das jogadoras e suas famílias, não impedem que haja mobilizações de instituições locais ou do próprio clube no sentido de proporcionar ainda mais tranquilidade às jogadoras-mães. Todavia, ainda não é possível mensurar os efeitos dessa normativa tão recente para a modalidade. Comemoramos, em meio a um amálgama de sentimentos, o reconhecimento da possibilidade da maternidade para mulheres jogadoras de futebol, por meio da garantia de direitos. A maternidade-maternagem, com essa medida, ficou um pouquinho (pouquinho mesmo), mais próxima de uma escolha – apesar de não ser possível afirmar essa questão no âmbito das decisões pessoais, no contexto brasileiro, com a intensificação do controle do corpo feminino por meio do avanço de ondas conservadoras do âmbito político. Mesmo que a variabilidade de contextos implique em pensar diferencialmente sobre a feminilidade, sobre “ser mãe” e ser jogadora, o reconhecimento de algumas especificidades e dos direitos das atletas mães pela entidade máxima do futebol torna este esporte um pouco mais democrático.

Mas muito ainda há que ser feito. Cabe pensar, por exemplo, como esses direitos serão pensados no caso das mães que não passam pelo período gestacional. Porque elas existem! A Cris Rozera e o Bento, que nasceu no último dia 26, estão aí como exemplo! E tendo isso em vista, não é mais possível negligenciar experiências múltiplas. Existe uma diversidade de possibilidades de maternar, assim como há uma diversidade posta quando o termo “mulher” é evocado. Universalizar as experiências em torno de certo modelo seria criar outro hiato na garantia de direitos: novas impossibilidades assistidas.

Enfim, o tema é vasto e são diversas as reivindicações. Principalmente porque o futebol praticado por mulheres segue sendo pensado e construído a toque de caixa e, na maior parte dos casos, sem cuidado, planejamento ou estruturação que leve em consideração todas as pessoas envolvidas na modalidade. São anos de resistência e qualquer avanço que garanta equidade e lógicas mais amplas de percepção das diferenças, dentro e fora de campo, deve ser comemorado. Ainda que fique o alerta de que essas mudanças não serão aceitas como suficientes, como um fim, em um contexto de tantas assimetrias e faltas.

 

Notas

[1]Referência ao texto “Gênero uma categoria útil de análise histórica” de Joan Scott, historiadora e teórica dos estudos de gênero. Para a autora, além de um elemento das relações sociais, que seria percebido e denominado com base nas diferenças dos sexos, o gênero seria a “forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86).

[2] Esse binômio foi usado como forma de contemplar não só a dimensão de se identificar como mãe e com a concepção hegemônica da maternidade, mas, também o que tange ao cuidado que esse processo implica. Ressaltando que esse cuidar não se destina somente à figura das filhas, filhes e filhos, mas de forma mais ampla se estende aos familiares e demais pessoas envolvidas e/ou em relação com estas mães.

[3] Para saber mais sobre o tema, acesse reportagem do Globo Esporte, adaptada para o portal GE, que relaciona gênero e futebol, a partir da perspectiva das jogadoras. Apesar de trazer um contexto de Roraima, em que as relações de gênero parecem se intensificar no que diz das violências possíveis, não destoa da lógica cisheteropatriarcal brasileira.

[4] Para saber mais sobre o decreto-lei que proibia a prática do futebol por mulheres, vale a pena consultar a reportagem de Juliana Sá, para o GE – Futebol Feminino, publicada no dia 14 de abril de 2021 em referência aos 80 anos da normativa.

[5] A discussão sobre feminilidades e inserção no contexto de trabalho, passa por questões de classe e raça. As reivindicações por inserção no mercado de trabalho e direito ao espaço público pautadas por movimentos feministas ao longo da história, não contemplam as experiências de mulheres negras. Estas, colocadas em condição de subcidadania, pelas lógicas racistas e cisheteropatriarcais, são obrigadas a se inserirem no meio público e “trabalhista” em contextos e dinâmicas precárias que forjam e ampliam as vulnerabilidades politicamente estabelecidas, as quais são submetidas. E, num processo que mescla resistência e necessidade, por mais paradoxais que esses elementos se apresentem, a inserção de mulheres negras no âmbito público e no mercado de trabalho, não se configura como vontade ou, até mesmo, direito. Para saber mais sobre essa questão, recomendamos a leitura do texto “Mulheres em Movimento”, de Sueli Carneiro, publicado em 2003, na revista Estudos Avançados.

[6] Cabe destacar sobre isso, que ser jogadora de futebol no contexto brasileiro, já implica, para muitas mulheres de diversas faixas etárias, acúmulo de funções. Por conta do escasso investimento, mesmo com uma maior formalização (que passou por exigências externas que implicavam em sansões para os clubes e para o futebol masculino), muitas atletas não obtêm, com o futebol, renda suficiente para garantir o sustento de seu núcleo familiar. Assim, acabam precisando se inserir em outros contextos de trabalho, para complementar o salário recebido como jogadora. Colocamos como inviável e impossível conjugar maternidade e ser jogadora, porque, mesmo tendo em vista que há esse acúmulo de funções “inicial”, quando a maternidade passa a ser um dos elementos que ocupa o tempo das mulheres jogadoras, há uma exigência de certo padrão de cuidado com os filhos, ao passo que também é condicionada à sua manutenção na equipe um bom desempenho. E nessa complexa tessitura, há a necessidade de equilibrar esses dois âmbitos da vida sem nenhum suporte da instituição que emprega essa mulher, com possível prejuízo financeiro – tendo em vista que. sendo a maternidade somada a mais de um contexto trabalhista, um excesso de atribuições, comumente as mulheres abrem mão de alguma das fontes de renda. Dito de outro modo, não há suporte para a mulher-mãe-jogadora (sem pressupor uma hierarquia entre esses eixos), nem mesmo seguindo a dinâmica perversa de exploração que perpassa trajetórias femininas em relação ao trabalho e às normas de gênero, nos moldes sedimentados no/pelo capitalismo.

[7] Negritando que este, como outros pontos do texto, são marcados por ironias. Para saber mais sobre a vinculação entre maternidade-maternagem e feminilidade, fica como indicação o texto “Entrelaçando consensos: reflexões sobre a dimensão social da identidade de gênero da mulher”, de Alejandro Cervantes Carson, publicado em 2008, na revista Cadernos Pagu.

[8] As aspas se devem ao fato de que com o vínculo rescindido, coube a ela a determinação do tempo adequado para retorno às atividades como jogadora após o puerpério.

[9] Sobre isso, recomendamos o texto de Débora Miranda, para o Universa UOL e a postagem da advogada de Direito Desportivo Maria Pessoa

 

Referências bibliográficas

BREILLER, Pires. A seleção dos filhos sem pai. El País, São Paulo, 20 de junho de 2018. Esportes. Acesso em 09 de maio de 2021.

_______________. Gravidez: ser mãe ou jogar futebol, o dilema das mulheres que vivem da bola. El País, São Paulo, 13 de junho de 2019. Esportes, Copa do Mundo Feminina. Acesso em 09 de maio de 2021.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, 17 (49), p. 117-32, 2003. Acesso em 10 de maio de 2021.

CARSON, Alejandro Cervantes. Entrelaçando consensos: reflexões sobre a dimensão social da identidade de gênero da mulher. Cadernos Pagu, Campinas, n. 4, p. 187–218, 2008. Acesso em 10 de maio de 2021.

MAGRI, Diego. Proibido há 80 anos por “prejudicar maternidade”, futebol feminino estreia Brasileirão histórico. El País, São Paulo, 17 de abril de 2021. Esportes, Futebol Feminino. Acesso em 09 de maio de 2021.

MENDONÇA, Renata. Alex Morgan: “Atletas não deviam ter que optar entre esporte e maternidade”. Dibradoras, 02 de abril de 2020. Acesso em 09 de maio de 2021.

MIRANDA, Débora. Novas regras da Fifa pode pôr fim à era de mães sem salário no futebol?. Universa UOL, 11 de abril de 2021. Opinião. Acesso em 09 de maio de 2021.

PESSOA, Maria. Quais são as novas proteções da FIFA para o futebol feminino?. Blog Maria Pessoa – Advogada de Direito Desportivo, 09 de abril de 2021. Acesso em 09 de maio de 2021.

RANGEL, Sérgio; JUSTO, Fred. Jogadoras enfrentam família e depressão pelo futebol no estado mais violento contra a mulher. GE, Boa Vista, 22 de setembro de 2019. Esporte Espetacular. Acesso em 09 de maio de 2021.

SCOTT,  Joan  Wallach.  “Gênero: uma   categoria   útil   de   análise histórica”. Educação  &  Realidade. Porto   Alegre,   vol.   20,   nº   2, jul./dez. 1995

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bárbara Gonçalves Mendes

Psicóloga, doutoranda em Psicologia Social pela UFMG, pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH).

Jéssica Montanhini de Souza

Graduada em História pela UFOP, mestranda em Estudos do Lazer na UFMG. Membro do grupo de estudos GEFuT.

Como citar

MENDES, Bárbara Gonçalves; SOUZA, Jéssica Montanhini de. Pode uma mãe jogar futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 46, 2021.
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