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Ponte Preta de paz, Ponte Preta de guerra: o clube do povo, pelo povo

Lucas Giachetto de Araujo 11 de agosto de 2020

Sempre que falam que futebol e política não se misturam, como já disse Tiago Leifert e Caio Ribeiro em alguma coluna da emissora em que trabalham, lembro-me de que torcer para a Ponte Preta por si só já é político, está na gene do clube, de sua torcida e não tem como mudar. Mais que isso, ser pontepretano é jogar contra os racistas, contra a desigualdade, ser do povo, contra a ditadura: ser pontepretano é ser de esquerda. Explicarei a seguir.

Bandeira escrito “POVÃO” fincada no campo do adversário em 1981. Foto: Reprodução.

Para começar, é necessário entender que a construção da esquerda e da direita como espectros políticos distintos é algo histórico dado dentro de condições específicas, que se alteram com o tempo, que formaram suas idéias e ações segundo suas convicções e visões de mundo. O termo tem origem após a Revolução Francesa, quando os que se sentaram à direita do rei eram favoráveis à monarquia, enquanto os defensores da revolução estavam à esquerda. Por um acaso isso é assim, mas por isso podemos já fazer um diagnóstico sobre o que a direita defendia nessa época: conservação da ordem estabelecida e a exploração do povo para a melhor qualidade de vida da aristocracia. Podemos substituir a aristocracia hoje pela burguesia, pelo empresariado, pelos bancos etc. Com o tempo, ainda na França, a monarquia caiu, retornou, caiu novamente, mas os espectros direita e esquerda se mantiveram, bem como suas ideias principais: a direita manter a ordem estabelecida e exploração máxima do povo, e a esquerda estar do lado do povo, dos oprimidos, dos explorados.

Vale ressaltar também como se deu o processo de exploração dos países europeus no resto do mundo. O processo colonial baseava-se por muito tempo em uma crença da superioridade europeia sobre os outros povos, que tornavam os não brancos como inferiores, a ponto de não serem considerados humanos, permitindo a sua máxima exploração, como uma mercadoria, que quando não tivesse mais utilidade poderia ser descartada. Assim, a escravidão, vista dentro da Europa como algo abominável, era defendida nas colônias. Por exemplo, John Locke era acionista da Royal African Company, enquanto defendia em seus escritos a liberdade: liberdade esta da propriedade privada, da livre exploração e acumulação, e dos homens, já que não considerava os escravizados humanos [1].

Ponte Preta - Vidas Negras Importam e Orgulho LGBTIQ+
Campanhas vinculadas nas redes sociais da Ponte Preta: Vidas Negras Importam (à esq.) e Orgulho LGBTIQ+ (à dir.). Foto: Reprodução/Facebook/PontePretaOficial.

Voltemos à Ponte Preta. Em 11 de agosto de 1900, doze anos após a abolição da escravidão oficial pelo governo brasileiro, é fundada a Associação Atlética Ponte Preta, por alunos do Colégio Culto à Ciência, que jogavam bola no bairro da Ponte Preta. Esse momento sublime do futebol brasileiro tem algo mais especial do que a de outros clubes, não por ser o time pelo qual torço, mas por não ter distinção racial dentre seus fundadores, e na figura de Miguel do Carmo o primeiro jogador negro do futebol brasileiro, dando origem à primeira democracia racial do futebol brasileiro, como o clube e grande parte da sua torcida se orgulham [2].

Miguel do Carmo (acima) e campanha dos tijolos (em baixo). Fotos: Wikipedia/CEDOC/RAC.

Com o passar dos anos, a Ponte Preta foi ganhando notoriedade na cidade e região, com sua torcida sendo amplamente popular, com muitos negros, o que incomodava outras equipes, que xingavam eles de macacos. Apesar do tom claramente racista da alcunha empregada pelos adversários, a torcida e a equipe transformaram a ofensa em seu mascote, sendo até hoje a macaca um dos símbolos da resistência e da luta da torcida alvinegra, entoada em cantos, bandeiras e vestimentas.

O tom popular da Ponte Preta tem um dos seus momentos mais icônicos com a construção do seu estádio. Com o terreno doado pelo então presidente Moyses Lucarelli, o estádio foi erguido através do voluntariado de muitos torcedores, além das doações de tijolos pelos mesmos. Inaugurado em 1948, o Estádio Moisés Lucarelli leva o nome de seu presidente, com a grafia alterada pois o mesmo não queria seu nome no estádio, e a diretoria aproveitou uma viagem sua para a Argentina para nomear seu estádio. Chamado de Majestoso, era o terceiro maior do país, atrás apenas do Pacaembu e de São Januário [3].

Esses fatos supracitados são só algumas demonstrações do caráter popular do clube. Ser um clube do povo tem que estar ligado à defesa dos interesses do povo, não aos interesses do capital. Não é coerente lutar pela democracia racial e apoiar políticas que estão contra os negros, como a reforma da previdência, a reforma trabalhista, a uberização etc. Não se pode defender uma democracia racial e dar a camisa do clube a alguém que diz que quilombolas não servem nem para procriar; que mata os trabalhadores por não dar as condições para ficarem em casa durante uma pandemia, enquanto repassa dinheiro aos bancos; que defende torturador.

Hoje vivemos numa sociedade capitalista, que necessita de suas contradições para sua manutenção, que faz os explorados defenderem seu explorador; que trabalhadores se sentem mais próximos dos banqueiros do que dos mendigos; e que colocam em nossas cabeças que devemos lutar todo dia para alcançar nosso lugar ao sol, mas que esse dia nunca chega, e a luta nunca acaba. Enquanto vivemos numa sociedade que quer massacrar e criminalizar as esquerdas, que é estruturalmente racista, machista e homofóbica, e que a cada dia gera mais desigualdade, não podemos estar do lado de quem quer manter o status quo. A história da Ponte Preta fala por si só: desde sua origem o clube foi vanguarda na luta contra as opressões e deve, a cada dia, honrar sua história. Mas a Ponte Preta é de todos, não distingue raça, classe, gênero, credo etc., mas quem está do lado dos opressores não entende a história do clube e não sabe o que é ser povão.

Torcedores fazem fila para entrar no estádio Moisés Lucarelli e assistir ao jogo Ponte Preta e Guarani, em 11 de agosto de 2019. Foto: Futebol de Campo.

Para concluir, venho ressaltar que a luta de classes é o motor da história [4], e a Nega Véia tem sua origem no povo, que é quem a cada dia luta para se manter vivo, não somente atender suas necessidades básicas, mas também ter lazer e divertimento, enquanto que a burguesia se esbalda em suas mansões através da espoliação do povo. Torcer pra Macaca é lutar todo dia, contra federação e mídia, contra todos os que estão contra o povo, e juntos com aqueles que construíram o clube e seu estádio, para assim continuar escrevendo essa maravilhosa e bela história centenária. Mas não podemos nos esquecer que, quando se entoa o nosso hino, lembre-se que é “Ponte Preta de paz; Ponte Preta de guerra”, mas é paz entre nós e guerra aos senhores.

Referências

[1] LOSURDO, Domenico. Marx, a tradição liberal e a construção histórica do conceito universal de homem. Lutas Sociais, n. 13/14, p. 23–42, 2005.

[2] ASSOCIAÇÃO ATLÉTICA PONTE PRETA. O primeiro time do Brasil: #TradiçãoTemNome! Acesso em: 29 jul. 2020.

[3] ASSOCIAÇÃO ATLÉTICA PONTE PRETA. Estádio Moisés Lucarelli. Acesso em: 29 jul. 2020. 

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Lisboa: Editorial “Avante!”, 1997.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lucas Giachetto de Araujo

"Nem gosto tanto de futebol, gosto mesmo é da Ponte Preta!"Bacharel em Educação Física pela Unicamp. Estudante de Mestrado em Educação Físicas e Humanidades na Unicamp.

Como citar

ARAUJO, Lucas Giachetto de. Ponte Preta de paz, Ponte Preta de guerra: o clube do povo, pelo povo. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 26, 2020.
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