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Por que falamos tanto sobre futebol?

A estreia desta coluna é mais uma continuidade do que exatamente um começo ou recomeço. Contribuo com o Ludopédio desde 2015 de maneira mais ou menos sistemática, através do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), mas agradeço ao Sérgio Giglio e a toda Equipe Ludopédio pelo convite para colaborar como colunista. Primeiro porque é realmente uma satisfação pessoal e o reconhecimento de um trabalho (nada solitário) o mérito dessa confiança e, segundo, porque é preciso que mais mulheres ocupem lugares historicamente destinados aos “entendedores notórios” (e nem sempre tão entendedores assim). Mas aqui, nesse “oásis” da pelada acadêmica e jornalística, sabemos que há mais questionadores que entendedores e é dentre esses que gosto de estar.

Pois bem, treze anos de estudos sobre futebol e mais uns treze antes disso de lembranças afetivas com esse que não é um mero esporte, já dizia Simoni Lahud Guedes. E aqui me pego pensando: por que falamos tanto do assunto? Por que fazemos das nossas paixões profissão?

Outro dia li num muro de Instagram que a obrigação de produzir diminui a liberdade de criar. Frase adaptada do filósofo belga Raoul Vaneigem. De certo, quanto mais alienado é o trabalho, mais essa máxima se torna verdade. Mas por que diabos insistimos em transformar as nossas paixões em problemas de pesquisa? É claro que falo aqui sobre um seleto grupo de pessoas que se envolveram profissionalmente com suas paixões, digamos assim. Isso é para poucos.

Dos diversos caminhos que nos levam a nos interessar e a criar uma relação acadêmica prolongada com o futebol, talvez a paixão, por um clube ou pelo esporte de maneira mais ampla (precisaríamos de pesquisas para afirmar isso com mais precisão), seja a motivação inicial e que torna possível a existência de um portal como o Ludopédio, com conteúdo inesgotável sobre o assunto.

Nas andanças por aí nesse universo da pelada acadêmica, poucas pessoas conheci que começaram a estudar algum tema sem ter ligação afetiva nenhuma com o futebol. E arrisco a dizer que, dos trabalhos que conheci com essa peculiaridade, muitos miravam o gol e erravam feio os cruzamentos. Por suposto, guiados por nossas paixões, erramos muitas vezes também, mas é o interesse pelo futebol nos leva com frequência a ter um primeiro contato que muitos não teríamos com a pesquisa. Eu, por exemplo, não sei se teria me interessado pelas categorias de base e jogadores profissionais como objetos (sujeitos?) de pesquisa na graduação em psicologia, em 2007, não fosse a Copa do Mundo de 1994 ou o Galo ter passado um tempo na Segunda Divisão em 2006, como agora faz o rival.

Foto: Sandro Vox

É claro que não é somente isso. Nenhuma construção na vida é tão simplória assim, nem mesmo as dos temas de pesquisa. Mas não sei mesmo se eu teria enxergado questões relevantes no futebol, na perspectiva das ciências humanas e sociais, ou talvez o meu trabalho perdesse muito em qualidade não fosse essa relação íntima prévia.

E se, por muitas vezes, somos solicitados a deixar a paixão de lado (exercício cotidianamente necessário), outras vezes o próprio distanciamento compulsório da pesquisa nos inibe essa paixão no campo onde ela deveria ser livre para fluir – o do clubismo. Saber direcionar os afetos é a chave. Não tornar nossas paixões problemas de pesquisa de maneira indiscriminada, da mesma forma como não devemos transformar nossas neuroses em problemas de Estado, prática cada vez mais comum no Brasil e mundo afora.

Penso que no caso do nosso seleto grupo de pesquisadores aqui referido, é a paixão pelo futebol que nos leva à obrigação de produzir e ao interesse de falar sobre suas potencialidades e até mesmo sobre suas mazelas. Pois é preciso um pouco de paixão para escavar as profundezas da falta de compromisso ético com o qual nos deparamos no futebol dito profissional, muitas vezes. É preciso até uma falta de bom senso para não largar tudo e ir fazer outra coisa da vida.

A paixão também nos leva à sensibilidade para enxergar aquilo que, de tão corriqueiro, já não é visto mais. E é preciso sensibilidade também para enxergar a vida que rola além da bola. E por isso continuamos a falar sobre futebol, mesmo quando parecemos não ter nada mais a falar sobre ele (em tempos de pandemia). Mas nós sabemos muito bem que há muito futebol acontecendo por aí, sim, mesmo neste momento. E se há tanta gente interessada no futebol é porque dele é relevante falar.

Bom, o que vocês podem esperar pela frente desta colunista, eu não sei. Possivelmente muito sobre política em seu sentido amplo, sobre futebol profissional e suas polissemias, sobre psicologia do esporte para além do treinamento mental, e também sobre futebol e mulheres sem compulsoriedade. E sobre outras coisas a mais que o meu nomadismo futebolístico me permitir. A única coisa que tenho certeza é que continuarei escrevendo sobre futebol e espero que vocês gostem.


Notas

[1] “A obrigação de produzir aliena a paixão de criar” (VANEIGEM, 1967, p.33). VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad, 2002 [1967].

[2] Obviamente, dentre desse grupo mencionado aqui de forma genérica e abstrata, as singularidades de cada um e cada contexto tornam infinitas as combinações de anseios e motivações em relação à pesquisa e o futebol.

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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora substituta no Departamento de Fundamentos da Educação na Universidade Federal do Piauí e no Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG) e no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG). Produtora  no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. Por que falamos tanto sobre futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 7, 2020.
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