Introdução

A morte de Edison Arantes do Nascimento, Pelé, é um desses raros momentos que parece reunir pessoas diferentes e que de certa forma para o tempo. Claro, todas as vidas são importantes e a solidariedade nas perdas é parte de nossas constituições sociais, mas há pessoas que transcendem esse ato. Pelé é um deles. Um símbolo de um esporte, mas também de uma nação que foi se construindo ao longo do século XX.

Como historiador não posso cometer o pecado capital de atribuir a um indivíduo uma importância sobre-humana. Fazer como aqueles carcomidos chavões de que “tal pessoa estava à frente do seu tempo”. Ninguém está ou é posterior ao seu tempo, pelo contrário, é fruto dele, de suas tensões, de suas emoções, de suas incoerências e de seus signos. Portanto, Pelé é parte do seu tempo, mas é também eterno. Parece uma antítese, mas permitam-me explicar.

Representação Esportiva

Pelé é o maior atleta do futebol de todos os tempos. Afirmo isso numa constatação subjetiva – e de segunda mão, já que nunca vi ele jogar –, mas também recorrendo ao que temos de produção, de dados. Os números e as conquistas como jogador são extremamente relevantes e que mesmo alcançadas por atletas contemporâneos, demonstram a sua excepcionalidade. Um/uma atleta tem que ser analisado dentro do momento em que atuava, pois, cada jogo muda muito ao longo do tempo e fugir disso é anacronismo – outro erro que eu não posso cometer enquanto historiador.

Quando jogou pelo Santos e pela Seleção Brasileira, Pelé foi dominante. Para quem trouxer a contestação de que muitos jogos não eram oficiais, vale lembrar que era outro momento do futebol, em que torneios amistosos, excursões internacionais e campeonatos regionais eram muito mais significativos do que grandes eventos internacionais. Ser campeão do Campeonato Paulista era relevante, pois era esse o principal campeonato a ser disputado durante anos, assim como o Torneio Rio-São Paulo. Com a evolução da mobilidade os campeonatos nacionais e internacionais ganharam fôlego. É preciso reconhecer essa estrutura de campeonatos:  jogar a Libertadores não era o grande objetivo e um time sul-americano era tão competitivo quanto um time europeu.

Há questões do jogo de Pelé que também são importantes e precisam ser sempre lembradas. Li que ele é um dos inventores do futebol moderno, me assustei com a afirmação, mas acho que ela tem algum sentido sim. Além de qualidade física notórias, havia ali uma compreensão do jogo, não apenas pelo bom uso da técnica, mas da tática, das regras, do psicológico. Não apenas finalizador, driblador, goleador, mas também marcador, tencionador e propositor. O exercício sempre lúdico de pensar como seria ele nos campos do século XXI só é possível pela sua importância de domínio de estrutura do jogo.

Pelé
Foto: reprodução

Representação Social

E não é apenas do futebol que eu gostaria de justificar meu selo de eternidade. Eu queria pensar no que representa – e falo no presente porque a morte da pessoa não significa o fim da sua representação social. Pelé é personagem principal de alguns dos nossos grandes dilemas enquanto nação em construção.

Sua trajetória nas Copas do Mundo é a trajetória de um país que parecia ter um futuro brilhante, com contornos relativamente democrático e que soçobrou numa soturna ditadura. Assim, quando pensamos no futebolista tricampeão mundial como jogador, pensamos também em como o Brasil era, como se pensava e como se realizou. Claro, ele não foi o responsável por tanques ocuparem Brasília, mas ajuda a compreender os nossos otimismos, os nossos fracassos, as nossas tentativas de utopia e de fuga.

Pelé, negro, é parte dessa tensão racial que nunca deixou de existir. Não embarco na ideia de que ter um ídolo negro faz com que o racismo esteja vencido, mas problematizo. Problematizo como deve ser para os netos da Casa Grande ver que a grande imagem do Brasil no exterior é negra, como a debilidade da raça é tão sustentável como castelo torto de cartas. Mas problematizo como essa Casa Grande modernizada e ainda escravista, vem dizer “olha não somos racistas, até temos ídolos negros” e “olha como é possível ter sucesso sem ficar de mimimi”. Os ídolos e os sucessos não foram ganhos por uma igualdade inerente ou por concessão, mas foram conquistados à força e com muito sangue.

Se Pelé não foi de grandes posicionamentos políticos, vamos lembrar que ele não é exceção, mas regra numa sociedade que se omite constantemente e que à despeito de se enxergar como tolerante e amistosa, busca na neutralidade a segurança. Talvez o ponto é que Pelé nos convida a pensar como é o posicionamento político e social no Brasil. Um posicionamento que se dá em atitudes indiretas, que se dá em ações discretas, muito mais do que em grandes atos. Em vez de comparar ele com Maradona ou Ali, eu convido a nos comparamos com a Argentina e os EUA negro.

Eterno, sim

Acho que é nisso que falo de eternidade. Como figura Pelé ainda vai nos convidar a reflexões e mostrar um pouco do Brasil para o Brasil. E também para o mundo, já que nenhum brasileiro foi tão importante internacionalmente. E acho fundamental que lembremos também de um ser humano, ou seja, alguém com erros e acertos. Elas são parte dessa biografia como são parte de nossas biografias, individuais e coletivas.

Por isso – talvez mais dados e mais passagens – Pelé é eterno. E vamos ter de nos acostumar que um personagem humano agora é uma ideia na história.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Harian Pires Braga

Professor de História na Rede Municipal de Campinas, Mestre em Educação Física e Sociedade pela FEF UNICAMP.Membro do Grupo de Estudos de Futebol da FEF (GEF/FEF)Áreas de pesquisa: Ensino de História; História do Esporte; Sociologia do Esporte. 

Como citar

BRAGA, Harian Pires. Por que Pelé é Eterno?. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 2, 2023.
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