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Por que traduzir um livro sobre futebol para o português?

Houve um tempo em que o acesso à bibliografia estrangeira sobre futebol, em geral, e sobre torcidas organizadas, em particular, costumava ser raro e episódico. Embora as livrarias na Europa estivessem, desde pelo menos os idos de 1980, abarrotadas de referências a respeito do assunto, foram poucos os números que chegaram a ser alvo de tradução no Brasil. Seria este fato um lapso fortuito ou uma rejeição deliberada das editoras brasileiras? Seria esta escassez fruto da falta de interesse e demanda pelo tema?

Se porventura a resposta a esta última questão for positiva, ela revela o descompasso entre a reflexão teórica e a avidez com que o futebol é tradicionalmente praticado e discutido em nosso país. De qualquer maneira, tal fato não seria de todo descabido, pois é bem difundida a preconceituosa ideia de que o pensamento abstrato não constituiria o ponto forte nem o modo de ser da universidade brasileira. No caso do futebol, a sua consagração internacional, no campo de jogo, já lhe parece o suficiente, dispensando uma reflexão acadêmica mais aprofundada.

Entretanto, é necessária a menção à existência de honrosas exceções históricas no campo editorial que possibilitam o conhecimento de títulos estrangeiros sobre o fenômeno. A editora Perspectiva, por meio de seu esplêndido editor Jacó Ginzburg, publicou desde o final da década de 1960 pelo menos três livros introdutórios fundamentais para a compreensão do futebol. Eles vieram a lume na série intitulada Debates: Hommo ludens – o jogo como elemento da cultura, do historiador neerlandês Johann Huizinga; Sociologia do esporte, do sociólogo francês Georges Magnane; e Negro, macumba e futebol, do crítico alemão Anatol Rosenfeld.

No que concerne, em específico, ao tema das torcidas organizadas, a consulta se torna frustrante para o pesquisador. Se há a possibilidade de localização da principal obra sobre o assunto em língua portuguesa – o livro de Norbert Elias, A busca da excitação – vale dizer que sua tradução foi feita em uma edição de Lisboa e não em uma edição brasileira. Isto em meados dos anos 1990; portanto, há cerca de duas décadas. Donde, a permanência da dificuldade no seu acesso.

Por outro lado, a obra sobre torcidas organizadas que adquiriu maior vulto ao ser traduzida para o português indica o caminho de algumas políticas editoriais no Brasil. Em 1992, a respeitada Companhia das Letras publicou a obra do jornalista norte-americano Bill Buford, intitulada Entre os vândalos – a multidão e a sedução da violência. A mesma fora publicada apenas um ano antes, em 1991. Já em 2010, Among the thugs, título original do livro, recebeu nova reimpressão da editora brasileira, desta feita em versão mais acessível, como série de bolso.

Resultado do convívio do autor estadunidense, acumulado durante alguns anos ao lado de torcedores britânicos, como os do Manchester United, em pubs e trens, em estádios e viagens pela Europa, o livro dedica-se ao relato dos atos de selvageria e arruaça de que são capazes aqueles indivíduos, em nome da suposta paixão pelo seu clube de futebol.

Sem a intenção de rechaçar de maneira integral as intenções desta obra, que contém, não resta dúvida, um relato importante, são oportunas algumas ressalvas na apreciação do livro.

Isso porque suas formulações se dão na chave do sensacionalismo e na esteira de acontecimentos de violência envolvendo os famosos hooligans. Dentre eles, o ápice é a final da Copa da Europa entre Liverpool e Juventus, em 1985, no Estádio Heysel, em Bruxelas, Bélgica, que em 2015 completa 30 anos. Após o avanço de ingleses sobre italianos juventinos, quarenta e um torcedores morreram esmagados contra o alambrado, fato que teve grande repercussão internacional na época e entrou na cronologia das tragédias esportivas.

Em princípio, com o intuito de decifrar o fanatismo esportivo de massa, o crítico literário Bill Buford acaba por descrever em minúcias, ao longo de mais de duzentas páginas, uma extenuante série de atrocidades protagonizadas por aqueles fãs futebolísticos. Ao fim da leitura, a sensação, até certo ponto nauseabunda, é a da plena confirmação da existência do bárbaro na vida contemporânea, reencarnado agora na figura do torcedor.

Aí reside nosso ponto de discordância quanto à política de traduções no Brasil. Escrito sob o impacto de graves incidentes, o que dificulta uma compreensão mais serena dos eventos, o autor procura endossar uma imagem já arraigada no senso-comum jornalístico. O conjunto de reportagens do jornalista parece servir apenas para a constatação de que haveria uma divisão peremptória na sociedade: puros e impuros, bons e maus, civilizados e bárbaros.

A irracionalidade do comportamento torcedor seria assim uma variante da dimensão patológica a que muitos indivíduos estariam destinados, de maneira inapelável, ao longo da história. De modo que a tradução da obra Entre os vândalos parece atender a uma recepção potencialmente positiva de parte expressiva do público leitor brasileiro, que compartilha de uma visão maniqueísta da sociedade e que se identifica com a ideia de que, na estrutura social, o inferno são os outros.

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Livro Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde de Christian Bromberger.

Há, contudo, percepções distintas do fenômeno, que ainda não foram divulgadas no Brasil. Veja-se o caso da obra do antropólogo francês Christian Bromberger, Football – la bagatelle la plus sérieuse du monde, publicada no ano de 1998, em Paris.  Afastando-se de uma visão reducionista e encampando o princípio antropológico do relativismo cultural, o autor realiza desde 1987 constantes pesquisas etnográficas acerca de torcidas italianas e francesas nas cidades de Marselha, Turim e Nápoles. No capítulo Du public et des supporters, do livro acima citado, procura inferir de sua etnografia um modelo alternativo ao das torcidas inglesas. Conquanto genéricas e esquemáticas, são válidas suas tentativas de tipologia.

Segundo o autor, o primeiro tipo se irradiou a partir da Inglaterra, em fins da década de 1960, e estendeu seu arco de influência sobre a Europa setentrional, em especial sobre a Alemanha, Bélgica e Holanda, além de ter atingido o norte da França. Sua formação social é homogênea, sua coesão interna é bem acentuada e associa-se com maior intensidade aos contingentes juvenis do proletariado. Seus membros são de difícil localização no cotidiano e avultam apenas nos dias de jogos.

Já o segundo tipo foi difundido na Itália durante a década de 1970 e sua propagação se deu em maior grau na Europa meridional, com destaque para a Espanha e para o sul da França. Com um tecido social menos uniforme e com uma composição mais híbrida, as torcidas latinas procuraram se congregar através da institucionalização. A distribuição espacial em subgrupos, a fixação territorial em sedes, a veiculação de revistas próprias – os fanzines – e a ritualização de certas práticas permitiram-lhes uma maior integração na sociedade.

Esse último aspecto parece assaz instigante, pois enseja a captação em potencial de uma pluralidade de formações sobre torcidas passíveis de serem apreendidas para além do âmbito europeu. Malgrado sua grande influência, o caso inglês não seria um paradigma irredutível a que todas as demais deveriam se sujeitar. A eleição de novos focos de pesquisa contribuiria para o enriquecimento deste ponto, bem como a sua correspondente publicação sob a forma de traduções.

Destarte, além dos hooligans ingleses, dos ultras franceses e dos tifosis italianos, o que seria possível conjeturar mediante o estudo das barras argentinas, das torcidas jovens cariocas dos anos 1960 ou mesmo dos “movimentos populares” surgidos mais recentemente?  No cotejo entre as torcidas da Europa e da América do Sul, haveria apenas semelhanças, continuidades e correlações ou uma série de diferenças substantivas poderia ser notada entre elas?

E, ainda, se Christian Bromberger pôde perceber a existência de um modelo alternativo ao tipo de torcida inglesa e, com isto, reconsiderar a univocidade das estruturas torcedoras, sem sonegar evidentemente o fascínio que o etos viril masculino suscita nas mesmas, caberia erigir também outras configurações de torcidas, além das já assinaladas?

A exiguidade de estudos comparativos, de publicações e de traduções dificulta o entendimento desse processo, o avanço nesse sentido. Eis o motivo para saudar a boa nova: a editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro tem o projeto de traduzir o livro supracitado, do etnólogo Bromberger, para o português.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Por que traduzir um livro sobre futebol para o português?. Ludopédio, São Paulo, v. 73, n. 3, 2015.
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