“Porque mistério sempre há de pintar por aí” (I)
Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Alguém aí já ouviu falar do “doce Gravatinha” e do “abominável Sobrenatural de Almeida”? Uma dupla de peso que, à imagem e semelhança de Nelson Rodrigues, seu criador, o próprio Escritor Maldito, era formada por dois místicos e palpiteiros tricolores de primeira viagem. Ao que nos parece, ambos debutaram no futebol brasileiro nas roseadas páginas do saudoso Jornal dos Sports no segundo semestre de 1967. Sobrenatural de Almeida, talvez, antes de Gravatinha, protestando por lhe responsabilizarem pelas sete derrotas seguidas do seu Fluminense. Dali em diante, sempre acusado por influir na cobrança de um pênalti mal batido, na atrapalhada escalação da equipe ou na imprudência do frangueiro; especialmente nos jogos do tricolor. Já o elegante Gravatinha viria ao mundo para reparar as injustiças provocadas por seu oculto parceiro. Ou melhor, retornaria “do Além” especialmente para ver as vitórias do Fluminense, já que ele era uma alma penada, falecido em 1918 aos 80 anos, possivelmente em decorrência da Gripe Espanhola, um dos traumas de infância de Nelson Rodrigues. Uma personagem, como definiu o cronista, de fala “fininha de criança que baixa em centro espírita”, cuja aparição era sinal de bom presságio ao tricolor carioca.
Alguns poderão argumentar que o futebol hoje se encontra cercado de ciência e razão por todos os lados. Mas pode confessar que a gente não conta pra ninguém: tricolor ou não você já deve ter conhecido, encontrado ou visto um tipo como o Gravatinha ou o Sobrenatural de Almeida. Isso se você mesmo já não tiver sido um pouco cada um dos dois, renovando, a cada jogo, místicos pedidos. Afinal, como diria Nelson Rodrigues, “o mistério pertence ao futebol”. O futebol é encantador justamente por ser o jogo do imponderável, do “tudo pode acontecer”, guardando para si esse ar de mistério.
Nesses tempos de pandemia e fantasmagorias, nós do Memória FC decidimos encarnar os espíritos dessas personagens rodrigueanas e relembrar alguns mistérios que nos marcaram no futebol. Antes que nos acusem “isso nada tem haver com nível cultural ou racional, é manifestação religiosa.” E não somos nós que afirmamos isso, mas nosso principal interlocutor; o medievalista Hilário Franco Junior, e também autor de A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. Um livro publicado em 2007 pelo Grupo Companhia das Letras. Uma leitura obrigatória para todo pesquisador que vê o futebol para além das quatro linhas.[1]

Enxergando o futebol sob a ótica de seu ofício, o fazer histórico, Hilário Franco Júnior estabelece que não se pode analisar a prática futebolística fora de seu contexto, como uma manifestação cultural a-histórica. Ao contrário, devemos examinar o futebol tendo em mente que ele influencia e é influenciado por seu contexto, sem enxergar, contudo, essa relação de forma mecânica, o futebol como um reflexo puro e simples do seu tempo. Essa é a prerrogativa central do livro, especialmente expressa na primeira parte, “Futebol, micro-história do mundo contemporâneo”; uma troca de passes entre as transformações no mundo histórico e futebolístico. Na segunda parte, mais teórica que a primeira, o historiador ensaia algumas metáforas futebolísticas do mundo contemporâneo, como a sociológica, a antropológica, a religiosa, a psicológica e a linguística. Nessa série, nos interessa, sobretudo, o que o autor escreve sobre o futebol como metáfora religiosa. É ela que conduzirá nossas reflexões nos próximos textos da série.
Então se ligue, “Porque mistério sempre há de pintar por aí”.
Nota
[1] Hilário Franco Júnior, medievalista e também dedica-se ao estudo da História Social do Futebol. Nessa área, possui dois livros publicados. O que estamos nos referindo neste texto (A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade) e Dando tratos à bola: ensaios sobre futebol, também pelo Grupo Companhia das Letras, de 2017.