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“Porque mistério sempre há de pintar por aí” (II): inclusive talismãs

Em abril de 2020, surgiu na imprensa esportiva mais um capítulo da “via crucis” enfrentada pelo Cruzeiro Esporte Clube, que caiu para a Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro de Futebol em 2019. A nova da vez foi o calote em um pai de santo contratado para ajudar o clube na luta contra o rebaixamento. A notícia, como era de se imaginar, trouxe à tona outros casos que envolvem futebol e fé, seja em religiões, superstições, enfim, tão comuns ao futebol.

Diego Costa, em ação pelo Atlético de Madrid no ano de 2013. Foto: Wikipedia.

Um debate, em especial, nos chamou atenção e impulsionou a escrita deste texto. Em uma live (entre os 11 e 15 minutos) no canal do YouTube “Arnaldo e Tironi” entre os jornalistas Mauro Cezar Pereira, Arnaldo Ribeiro e Eduardo Tironi, relembrando esses casos, citaram o “tratamento alternativo” que o jogador Diego Costa fez com placenta de égua, na esperança de uma cura milagrosa, para a jogar a final da Uefa Champions League. Para os jornalistas, o apelo soou contraditório no futebol desse nível, “de primeiro mundo”, em times de ponta, com acesso ao de melhor que a ciência pode oferecer e, mais do que isso, concordaram que esse tipo de prática não pertence mais ao futebol.

Apesar de o futebol hoje estar cercado de ciência e razão por todos os lados, isso não impossibilita que ao mesmo tempo esteja cercado de misticismo, afinal, o futebol é encantador justamente por ser o jogo do imponderável, do “tudo pode acontecer”, guardando para si esse ar de mistério; como bem escreveu Nelson Rodrigues, “o mistério pertence ao futebol”. E concordamos: “isso nada tem haver com nível cultural ou racional, é manifestação religiosa.”[1]

O historiador Hilário Franco Júnior, em A dança dos deuses: futebol, sociedade e cultura, enxerga o futebol como uma metáfora religiosa e chama atenção que o próprio vocabulário da prática seja repleto de termos de cunho religioso: “os jogadores são ‘ídolos’, a camisa e a bandeira do clube, ‘manto sagrado’, os gols aparentemente ilógicos ‘espíritas’ […] as defesas incríveis são ‘milagrosas’ e seus autores ‘santos’. O Maracanã é o ‘templo sagrado do futebol brasileiro’.”[2]

O futebol tem um tom religioso mesmo para aqueles que não seguem nenhum tipo de religião ou seita, ou mesmo para os que negam a existência seja de uma ou várias divindades, uma vez que o próprio ato de torcer para um clube já faz do sujeito uma pessoa de fé. O adepto, consciente ou inconscientemente, acredita que de alguma forma torcer para o seu clube do coração poderá ter algum efeito sobre o jogo. Até os mais pessimistas, a cada nova partida, possuem a esperança que seu clube possa vencer, mesmo que este seja mais fraco que seu oponente. “Acima de tudo torcer é tentar distorcer o futuro, interferir nele. É esperança de ‘alterar o destino’.”[3] O que estamos querendo dizer, em última instância, é: torcer é ter fé em uma divindade, o clube.[4]

O clube, entretanto, é um ser indefinível, “o objeto de veneração do torcedor é uma abstração”.[5] Ele toma corpo através dos “ídolos”, indivíduos que construíram ao longo dos anos as grandezas da divindade (o clube). Os ídolos, podem ser técnicos, como no caso de Telê Santana no São Paulo, Alex Ferguson no Manchester United, Pep Guardiola no Barcelona, e, mais recente, Jorge Jesus no Flamengo. Podem ser ainda, dirigentes como Eurico Miranda no Vasco, Alexandre Kalil no Atlético Mineiro.

O mais comum, contudo, é que a idolatria esteja voltada para os jogadores. O caso mais significativo sem dúvida é o de Diego Armando Maradona, que possui uma igreja em sua homenagem na Argentina e um altar no Napoli. Para os adeptos da “igreja maradoniana”, o Natal não é comemorado no dia 25 de dezembro, mas sim no dia do aniversário do argentino. Do mesmo modo, para os flamenguistas, o Natal possui outra data, é dia 3 de março, dia do nascimento do “Messias rubro-negro”, Zico. Já outros são tratados como santos, caso do goleiro Marcos no Palmeiras e Victor no Galo. Alguns clubes, inclusive, possuem santos padroeiros, os mais conhecidos são os de Corinthians e Flamengo, que possuem como santos protetores São Jorge e São Judas Tadeu, respectivamente.

Além disso, outro ponto que, para nós, merece destaque é o modo como Hilário Franco Júnior propõe pensar a partida de futebol. Para o autor, toda partida é um rito, “conjunto de atos repetitivos que se supõe estabelecer ou recuperar certa ordenação cósmica ou humana”.[6] O ambiente que cerca esse evento é acompanhado de forte carga emocional, é por isso que muitos torcedores se lembram facilmente da primeira ida ao estádio, mesmo que o episódio tenha ocorrido na infância, muitos, inclusive, decidem nesse momento qual será seu clube do coração. Além disso, essa espécie de “iniciação” é rememorada com frequência por torcedores. O autor destaca, também, que, assim como os ritos religiosos, o futebolístico ocorre em um local específico, o estádio. Este, mesmo que modesto, impõe-se na paisagem de qualquer cidade e, como destaca Hilário Franco Júnior, na maioria das vezes, são os maiores espaços públicos fechados da atualidade. Demonstrando, assim, toda a grandeza do evento.

A partida, vista nos termos citados acima, impõe uma série de ações a todos os participantes daquele ato, sejam eles jogadores, técnicos, árbitros ou torcedores; tais ações podem ser de cunho protocolar, e outras não, aqui nos interessa o último caso. Para que tudo ocorra bem no rito (a partida), os participantes do evento treinam, estudam, enfim, realizam toda a preparação formal necessária. Contudo, há ainda uma preparação não formal, muitas vezes ligada ao misticismo. Casos de arranjos desse cunho não faltam, seja no passado, no presente, na América, na Europa. O futebol, como nenhum outro esporte, abre espaço para essas práticas, porque, como já citamos, permite que o improvável aconteça, tendo como máxima: o jogo só acaba quando termina.

Um dos clubes com histórico de casos supersticiosos, sem dúvida, é o Botafogo. Em 1962, por exemplo, na decisão do Campeonato Carioca contra o Flamengo, o alvinegro jogou de camisas de mangas longas, em pleno Rio de Janeiro. O motivo? O roupeiro do clube, Aloísio, havia sonhado que o clube venceu o clássico usando mangas longas. Se foi por conta da camisa ou por conta de Garrincha, fato é que naquele dia o Botafogo venceu o Flamengo por 3 a 0.

No início deste ano, foi a vez de outro carioca apostar na superstição para ganhar jogo. O técnico do Vasco, Abel Braga, jogou sal grosso no campo. No Velho Continente, não é diferente. A UEFA, no ano de 2016, em seu site, fez um post sobre as superstições do futebol europeu. Até os “frios” ingleses estão na publicação:

O capitão do Chelsea, John Terry, também tem os seus rituais; durante bastante tempo ouviu o mesmo CD de Usher no carro antes de cada jogo, estacionou no mesmo sítio, sentou-se no mesmo banco do autocarro da equipa e até usou o mesmo par de caneleiras durante dez anos.

Assim como o clube do coração, o respeito pelas superstições também foi herança paterna no meu caso. Em 2007, 2008 e 2009, o Flamengo ganhou todas as finais de Campeonato Carioca sobre o Botafogo. Além disso, o rubro-negro não perdia para o Glorioso fazia dez jogos. Dessa forma, minha confiança em 2010 era alta. Antes da final de mais um Carioca, contudo, cruzou o caminho do Flamengo, um tal “talismã”. O jogo era a semifinal da Taça Guanabara. Naquele dia, eu assistia ao jogo ao lado do meu pai, como sempre. O Flamengo jogava melhor e o histórico contra o rival era ótimo. Contudo, o placar persistiu o mesmo até os 37 do segundo tempo. Pouco tempo antes, o Botafogo havia feito uma substituição. Não dei muita atenção. Meu pai, mais experiente, sim, declarou: “temos que ter cuidado, esse é o ‘talismã’ deles”. Caio o “talismã”, marcou aos 37 do segundo tempo, o Botafogo venceu o jogo e o Campeonato Carioca de 2010.

Nove anos depois, mais consciente do poder que o sobrenatural tem sobre o futebol, apelei para todos os santos naquele fatídico 23 de novembro de 2019 e quem poderá dizer que não foi a prece desta torcedora apaixonada que iluminou Gabriel Barbosa do time de Jesus a operar o milagre de Lima?


Notas

[1]  FRANCO JÚNIOR , Hilário. Metáfora religiosa. In: ______. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 297.

[2] Ibid., p. 259.

[3] Ibid., p. 293.

[4] Ibid., p. 260.

[5] Ibid., p. 260.

[6] Ibid., p. 270.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Letícia Marcolan

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas. Participa do FULIA/UFMG e do Memória FC.

Como citar

MARCOLAN, Letícia. “Porque mistério sempre há de pintar por aí” (II): inclusive talismãs. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 66, 2020.
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