05.2

Prazer, meu nome é João

Julyane Stanzioni 12 de novembro de 2009

O que seria do futebol sem o técnico? Será que os jogadores conseguiriam se entender em campo sem suas recomendações? Talvez essas respostas sejam difíceis, já que de um modo ou de outro nunca vimos um time sem técnico.

Eduardo Galeano, no livro “Futebol ao sol e à sombra”, fala sobre essa figura que chega a ser quase mítica. Personagem que tanto jornalistas quanto torcedores adoram usar em seus diálogos, textos e conversas de botequim. Galeano afirma: “antigamente, existia o treinador, e ninguém dava muita atenção a ele. O treinador morreu de boca fechada, quando o jogo deixou de ser jogo e o futebol profissional precisou de uma tecnocracia da ordem. Então, nasceu o técnico, com a missão de evitar a improvisação, controlar a liberdade e elevar o máximo o rendimento dos jogadores, obrigados a transformar-se em atletas disciplinados”.

No futebol brasileiro, alguns técnicos marcaram minha pequena “experiência” no mundo do futebol. Quando criança, início da adolescência, Telê Santana. Figura do “avô”, que transparecia docilidade, que sabia transformar um bando de garotos em exímios jogadores, que unia disciplina técnica ao tão sonhado futebol-arte.

Já na metade da década de 90, dois personagens de um mesmo time: Vanderlei Luxemburgo, jovem treinador vindo do Bragantino para fazer história no Palmeiras. Técnico sonhado por dez entre dez torcedores por sua visão tática. Paradoxal: cinco vezes campeão brasileiro e sem título na Copa Libertadores; Luis Felipe Scolari, vindo do sul para se aventurar em terras paulistas, amado por praticamente todos os torcedores do mesmo Palmeiras. Recebeu duras críticas por ser considerado um técnico retranqueiro, de jogo feio e que até mandava bater nos adversário. Em 2002, caiu nas graças do povo brasileiro ao conquistar a Copa do Mundo, com a tão impensada, à época, “família Scolari”.

Nos tempos de hoje, dois extremos: Muricy Ramalho e Mano Menezes. O primeiro, altruísta, de antecipar os fatos dentro de campo, de reproduzir em campo, com quase 100% de acerto, as divagações táticas da prancheta. Folclórico por suas ranhetices e mau-humor com imprensa e afins. O segundo vindo da ‘escola de futebol do sul’, que na visão de muitos, tende a ser mais de força do que técnica. Observador, equilibrado, baixo tom de voz, sempre muito educado em suas respostas. Alguns acharam estranho vê-lo dirigindo o Corinthians, que por si só deixaria qualquer um sob tensão. Mas talvez aí esteja o contraponto para se treinar um time de massa.

Para eles, Eduardo Galeano diria: “o técnico jamais conta o segredo de suas vitórias, embora formule explicações admiráveis para suas derrotas (…) a engrenagem do espetáculo tritura tudo, tudo dura pouco e o técnico é tão descartável como qualquer outro produto da sociedade de consumo”.

Pensando por esse aspecto, me vem à mente uma figura apaixonante, que conheci melhor há pouco tempo. Um homem destemido que Nelson Rodrigues, em uma crônica, chamou de João Sem Medo.

João Saldanha nasceu em Alegre, no Rio Grande do Sul. De família politizada, logo se tornaria membro do Partido Comunista. Amante do futebol desde a infância, pelos ofícios do pai, mudou-se para o Rio de Janeiro na juventude. Lá descobriu os prazeres da vida, entre eles sua paixão pela bola. Foi jogador do Botafogo por alguns anos. Tempos depois, começou sua incursão como treinador de futebol. E todos admiravam aquele franzino homem à beira do gramado com seu cigarro na boca, transformando jogadores em ídolos.

Também se aventurou nas artimanhas da escrita. É, até hoje, um dos mais respeitados cronistas esportivos. Foi apresentador de um programa esportivo na televisão, comentarista amado e venerado por todos os torcedores. Não havia quem fosse ao Maracanã sem o seu radinho de pilha grudado ao ouvido para escutá-lo.

Talvez uma de suas passagens mais importantes na história do futebol brasileiro tenha sido ter assumido o cargo de treinador da seleção nacional nas eliminatórias para a Copa de 70. Depois da campanha pífia em 1966, o brasileiro perdera sua auto-estima “futebolística”. Em 1969 Saldanha, comunista, em meio ao período ditatorial, é convidado pelo então presidente da CBD, João Havelange, a assumir a equipe canarinho.

Havelange alegara à época que convidou Saldanha para o cargo de treinador para que os jornalistas fizessem menos críticas à seleção, tendo um deles no comando. Fato é que, com seu modo próprio de tratar os jogadores, sem grandes frescuras e com uma linguagem muito direta, João Saldanha levaria o time brasileiro à Copa mais famosa de nossa história.

Na biografia escrita por André Iki Siqueira, “João Saldanha – uma vida em jogo”, é claro o saudosismo de Tostão, Gérson. O canhotinha de ouro revelou: “democrata por um lado e disciplinador por outro. As concentrações tão famosas pelo carteado eram muito diferentes sob a batuta de Saldanha. Ele sabia que a rapaziada gostava de jogar baralho. Me chamou e disse: Gersón, você sabe, eu já falei para esses caras: meio-dia, eu quero todo mundo na mesa; Senta na mesa quinze para o meio-dia, e meio-dia eu vou servir o almoço. Quero todo mundo lá. E sete horas da noite quero todo mundo na mesa também. Quem não estiver fica sem almoço e janta”.

Infelizmente, a história de João no comando da seleção não duraria muito tempo. Tempos antes da Copa de 70 ele foi demitido do cargo. Há quem diga que sua saída tenha sido ordenada pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici, que queria “escalar” jogadores no time. E assim, Saldanha teria dito uma de suas famosas frases: “o presidente cuida de seu ministério, mas quem toma conta daqui sou eu”.

Outros acreditam que além desse fato, a saída de Saldanha foi inevitável pelas jogadas de bastidores que até hoje assolam a CBF. Daquelas tentativas de criar personagens e ídolos que se reverenciem às ordens superiores e não tenham atitudes próprias. Depois de sua demissão, ele foi substituído por Mário Jorge Lobo Zagallo, que logo quando Saldanha assumiu o cargo da seleção brasileira, fez críticas ao seu sistema de trabalho.

Por sua postura firme e irrefutável, duvido que hoje algum Código Brasileiro de Justiça Desportiva conseguiria “calá-lo”. Ou mesmo se entregaria os pontos, dizendo-se cansado depois de perder algum título pelo Botafogo como fez seu sobrinho, Bebeto de Freitas, após a decisão da Taça Guanabara de 2008. Ele simplesmente diria: “Prazer, meu nome é João”.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

STANZIONI, Julyane. Prazer, meu nome é João. Ludopédio, São Paulo, v. 05, n. 2, 2009.
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