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“Prazer, meu nome é Marcelo!”

Maurício Rodrigues Pinto 20 de fevereiro de 2020

Na carteira de identidade, meu nome é Marcela Nascimento Leandro. Eu jogo futebol. Tenho três títulos mundiais com a seleção brasileira feminina de futsal. Tenho um título brasileiro com o Corinthians no futebol de campo. Mas quando me olho no espelho, eu não vejo essa jogadora de sucesso. Quando me olho no espelho, é o Marcelo que eu vejo. Porque eu, Marcelo, sou transgênero. E quero continuar jogando futebol. Mas com os homens. (LEANDRO, 2020).

É dessa forma que Marcelo Nascimento Leandro abre o seu relato publicado pelo portal Globoesporte.com no dia 29/01/2020[1], não por acaso data em que é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Transexual. Em um extenso relato em primeira pessoa, Marcelo se apresenta ao público como um homem trans e narra algumas passagens da sua potente e emocionante história de vida.

Marcelo sendo entrevistado para a reportagem do Globoesporte.com. Foto: Reprodução/Instagram.

Marcelo construiu uma bem-sucedida carreira no futsal e no futebol de campo feminino, com passagens por clubes importantes do cenário nacional, como São Paulo, Santos e Corinthians. Em função da depressão e do crescente sentimento de inadequação de seguir fazendo parte de times formados por mulheres, Marcelo decidiu abandonar o futebol feminino no ano passado para dar início ao processo de hormonização e ao percurso burocrático de retificação da documentação, passando a se apresentar publicamente como um homem trans.

Na posição de um homem cisgênero, heterossexual, no momento pesquisando o tema da transexualidade no esporte e, mais especificamente, times de futebol amadores formados por homens trans – que encontram no jogo e no pertencimento a um time novos espaços de sociabilidade e de possibilidade de afirmação política da identidade transmasculina –, além de ter ficado profundamente impactado e emocionado com a leitura do potente relato de Marcelo, foi inevitável também relembrar de um relato etnográfico apresentado pela antropóloga Mariane Pisani em sua tese de doutorado intitulada “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo.

Em determinado ponto da tese, ao analisar as aproximações do seu campo de pesquisa com os marcadores sociais da diferença, tais como gênero, sexualidade, raça e classe, a autora conta a história de Rafa – apelido atribuído pela própria Mariane – que lhe foi relatada por Sylvia, uma de suas interlocutoras de campo:

Outra jogadora, a Sylvia, também me contou uma história de violência. Assim como Sylvia, a irmã dela – que aqui chamo de Rafa – era lésbica e também gostava muito de futebol. Elas sempre jogavam juntas, como uma atividade de lazer entre irmãs, para passar o tempo. A mãe de ambas ficava muito decepcionada e entristecida com Rafa, pois a jovem performatizava seu gênero de maneira masculinizada: trajava roupas largas, não usava brincos/maquiagem, possuía cabelos curtos, amarrava os seios com faixas para que eles não aparecessem (PISANI, 2018, p. 185).

A sexualidade e a performance de gênero de Rafa (lida como uma mulher cis, lésbica) eram consideradas destoantes dos padrões hegemônicos de feminilidade – inadequação essa reforçada pelo fato de gostar de jogar futebol, modalidade que ainda é entendida hegemonicamente, no Brasil, como um campo de sociabilidade masculina. Essa “inadequação” fica expressa na decepção demonstrada pela família de Rafa, que a expulsou de casa pela família depois da descoberta que mantinha um relacionamento com uma mulher.

Após a saída de casa, Sylvia conta que Rafa teria passado a usar drogas e a atuar no tráfico dentro do bairro onde morava, onde sofreu abusos e violências sexuais, tais como estupros corretivos, justamente em função da rejeição social à sua orientação sexual e, sobretudo, à sua performance de gênero.

Com base no relato de Sylvia, Mariane infere que possivelmente Rafa dava início a um processo de transição da sua identidade de gênero[2]. Infelizmente não é possível conhecer mais sobre este e tantos outros aspectos da vida de Rafa, visto que sua vida foi brusca e precocemente interrompida:

Há uma clara indicação para mim, no relato da jogadora, de que sua irmã estava começando o processo de mudança de identidade de gênero e que foi assassinada, não somente pela dívida de drogas, mas também por causa dessa mudança. A jogadora relata que a irmã não gostava de ser chamada por seu nome de batismo e escondia os seios em faixas bem amarradas junto ao corpo. Provavelmente, Rafa tornar-se-ia – se tivesse sobrevivido – um homem transexual (PISANI, 2018, p. 185).

Tanto na história de Rafa como na de Marcelo – que revela situações de abuso sexual que sofreu na sua infância, praticadas por um parente – ficam evidentes algumas das formas de violência que, infelizmente, ainda são recorrentemente praticadas contra a população trans no Brasil. Segundo o Dossiê dos assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), foram confirmados 124 assassinatos de pessoas trans no país apenas no ano de 2019[3]. De acordo com o levantamento produzido pela associação europeia Transrespect em 72 países, no Brasil ocorreram cerca de 40% dos assassinatos de pessoas trans em todo o mundo, entre os anos de 2007 e 2017. Esses dados reforçam a imagem do Brasil como o país mais violento e que mais mata pessoas transexuais e travestis em todo o mundo, o que faz com que a expectativa de vida média dessa população seja de apenas 35 anos, número inferior à metade da média da expectativa de vida nacional, que é de 75 anos, de acordo com o Censo 2010 (IBGE).

Marcelo durante um treinamento. Foto: Reprodução/Instagram.

No seu relato, Marcelo relata algumas experiências de sofrimento e violência decorrentes de inadequações com a identidade de gênero com a qual fora designado no nascimento e com códigos de feminilidade com os quais foi sociabilizado ao longo de sua vida:

Teve uma vez que minha mãe me levou para tirar a primeira foto 3×4. Para me deixar arrumadinho, colocou em mim uma saia azul-turquesa e uma blusa branca, com uma fitinha. Eu sei que ela comprou com carinho, mas chorei muito por isso. Na minha cabeça, era um insulto tirar a foto do meu primeiro documento vestido daquele jeito. […] Aquele foi um de muitos episódios de crise. E sempre pelo mesmo motivo: a obrigação de ser e parecer uma menina. […] Eu pensava que havia algo errado comigo. Me sentia diferente por gostar das coisas que os meninos faziam. Na época, como poderia entender essas questões de gênero? Para mim, era algo muito simples: eu queria ser menino, eu era um menino! Mas então por que todos me diziam o contrário? (LEANDRO, 2020).

Pesquisadoras e teóricas dos estudos de gênero e sexualidade, como Gayle Rubin (2018) e Anne Fausto-Sterling (2001), ressaltam a complexidade da construção do gênero e da sexualidade humana, não sendo possível determinar o sexo de um corpo em termos estritamente biológicos, como se a diferença sexual residisse em uma base física simples, seja ela a genitália ou mesmo os cromossomos sexuais, mas sim que o corpo sexuado e a sexualidade humana são carregados de significados conferidos social e culturalmente: “Quanto mais procuramos uma base física simples para o ‘sexo’ mais claro fica que o ‘sexo’ não é uma categoria física pura. Aqueles sinais e funções corporais que definimos como masculinos e femininos já vêm misturados em nossas idéias sobre o gênero” (FAUSTO-STERLING, 2001, 19).

Tanto para Berenice Bento (2006) como para Guilherme Almeida (2012), também contrárixs a uma concepção estritamente biologizante do gênero e da sexualidade, a transexualidade é sobretudo uma experiência identitária que entra em conflito com as normas de gênero e que pode ser vivida de múltiplas formas. Almeida, estudioso das transmasculinidades, elabora a seguinte definição do que é ser uma pessoa trans:

[…] é possível falar de pessoas que, em diferentes contextos sociais e culturais, conflituam com o gênero (com que foram assignadas ao nascer e que foi reiterado em grande parte da socialização delas) e, em alguma medida (que não precisa ser cirúrgica/química), decidem modificá-lo. É possível afirmar que essas pessoas (quase que universalmente) enfrentam dificuldades em função da predominância do binarismo de gênero e da matriz heterossexual na maioria das culturas. Mas a natureza das dificuldades enfrentadas e os dispositivos de enfrentamento não são universais. (ALMEIDA, 2012, p. 515).

Marcelo comemorando um gol com as jogadoras do Corinthians. Foto: Reprodução/Instagram.

Marcelo conta que iniciou o que chama de “metamorfose” no ano de 2015, ocasião em que teve contato pela primeira vez com a palavra “transgênero” e conheceu pessoas com histórias de vida parecidas com a sua, deixando de conviver com um sentimento permanente de solidão e de deslocamento. Por mais que a partir desse momento passasse a se entender como um homem transgênero, a decisão de tornar pública a sua transição não foi fácil.

“Mas o que seria de mim se gritasse para o mundo que eu não sou o que você vê? O que seria de mim se abandonasse o futebol feminino?” foi a pergunta que rondou Marcelo. No documentário intitulado “Metamorfose”, também produzido pelo Globoesporte.com, é possível compreender o que envolveu a decisão de seguir jogando no futebol feminino, ainda que a sua vontade fosse a de ser reconhecido publicamente como homem e de poder jogar em equipes e competições masculinas:

Se eu pudesse escolher teria feito a hormonização mais cedo e seguido uma carreira no masculino, assim como meus grandes ídolos, mas sou muito grato por tudo o que consegui com o futebol feminino. O futebol feminino me deu oportunidade de viajar, de conhecer outras culturas, conquistar títulos… De ajudar minha família. Tudo que o futebol me deu, eu devolvi para eles (METAMORFOSE, 2020).

No entanto, conforme destacado pelo próprio Marcelo, o custo da decisão de seguir jogando entre as mulheres foi alto, trazendo grande impacto para a sua saúde mental e mesmo física, ficando impossibilitado de entrar em campo e seguir atuando. Até que no ano passado, às vésperas da Copa do Mundo de Futebol Feminino, em que chegou a ser cotado para fazer parte do elenco que disputaria a competição, Marcelo optou por renunciar ao futebol feminino e dar início aos processos de hormonização – que vai lhe permitir uma corporalidade mais próximas daquela que almeja – e de retificação dos documentos.

É possível imaginar as dificuldades que Marcelo encontrará nessa nova etapa da vida, dada a transfobia estrutural da sociedade e que pode ser percebida no próprio documentário sobre a sua vida. Nele todas as pessoas convidadas a falarem sobre Marcelo – pais, familiares, namorada, colegas de profissão e até o ex-técnico da seleção feminina, Vadão – aparecem referindo-se a ele no feminino e chamando-o de “Marcela”, o que, de alguma forma, nega a existência de Marcelo em sua inteireza e pode eventualmente causar dúvidas, para quem assiste ao documentário, sobre qual seria a “verdade” acerca de Marcelo – sensação essa que não existe para quem lê o relato escrito em primeira pessoa pelo próprio.

O jogador Marcelo, ainda vestindo a camisa do Corinthians, durante uma partida. Foto: Reprodução/Instagram.

De acordo com o já mencionado dossiê produzido pela ANTRA, o respeito às múltiplas experiências trans passa pelo respeito à reivindicação política à própria identidade de gênero, à autodefinição feita pelos próprios indivíduos. “Defendemos a autodeclaração para o reconhecimento das identidades pessoais autopercebidas de cada pessoa e esse talvez seja o ponto mais importante, devendo ser respeitado em sua integralidade” (ANTRA, 2020, p. 10). Partindo de tal premissa, será muito mais fácil compreender histórias e trajetórias de pessoas trans como Marcelo e, assim, aprender sobre o respeito às muitas formas de se existir no mundo, seja enquanto pessoa cis ou transgênera.

Ao propor o debate sobre a visibilidade trans no esporte, e mais especificamente no futebol, e também colocar-se neste campo, creio que Marcelo já pode ser considerado uma referência e que a publicização da sua história tem grande potencial para ajudar outras pessoas que vivenciam conflitos semelhantes e inspirá-las a seguirem suas “metamorfoses”. Junto às crescentes apropriações do esporte por corpos lidos como dissonantes e às reivindicações para que estes sujeitos sejam reconhecidos como interlocutores dentro do campo esportivo, a trajetória de Marcelo pode contribuir para que este campo venha a se constituir em um universo mais inclusivo e menos regido pelo binarismo e a hierarquização dos gêneros que estruturaram o esporte moderno ao longo da história (MACHADO, 2020).

Apesar das dificuldades – aquelas já enfrentadas e ainda as que virão –, Marcelo mostra-se empolgado com o que chama de começo de uma vida nova, visualizando novas possibilidades, descobertas e, por que não, novos limites a serem testados e transgredidos.

Se tiver que voltar para o futebol, que seja no masculino. Quem sabe eu não serei o primeiro a abrir essa barreira?

Por enquanto, só quero que todos saibam que eu não desisti de nada. Meu nome é Marcelo, e minha vida está apenas começando (LEANDRO, 2020).

Seja muito bem-vindo a esta nova vida, Marcelo!


Referências

ALMEIDA, Guilherme. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 513-523, maio/ago. 2012.

BENEVIDES, Bruna G.; BONFIM, Sayonara Nader. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, p. 9-79, 2001/02.

LEANDRO, Marcelo Nascimento. “Meu nome é Marcelo”. Globoesporte.com, 29 de janeiro de 2020. Acesso em: 29 jan. 2020.

MACHADO, Fidel. O binarismo no contexto esportivo: um corpo “entre” polos. Ludopédio, 04 de fevereiro de 2020. Acesso em: 07 fev. 2020.

METAMORFOSE. Globoesporte.com, 2020 (17 min).

PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. In: ______. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017, p. 62-128.

Notas

[1] O relato de Marcelo foi feito à jornalista Joanna de Assis e está disponível, junto ao documentário “Metamorfose”’, nesse link. Acesso em: 29 jan. 2020.

[2] Importante dizer que se trata apenas de uma inferência feita pela autora e que não se tem aqui o ponto de vista de Rafa. A partir dos sinais descritos anteriormente, Rafa poderia até já se entender como um homem trans, independente de ser algo que ela tenha tornado público, mas também é possível que fosse muito bem resolvida como uma mulher cis e lésbica. O que é certo é que muitas das violências sofridas por Rafa deveram-se justamente pelo fato de a sua performance de gênero e a sua sexualidade serem consideradas dissonantes em relação às convenções de gênero e sexualidade, que estabelecem a heterossexualidade como parte da “natureza” humana, reiterando uma coerência entre identidade de gênero, performance de gênero e a orientação afetiva (BUTLER, 2008).

[3] Do total de 124 assassinatos levantados pela ANTRA, 121 das vítimas eram travestis e mulheres transexuais e as outras três pessoas assassinadas eram homens trans. De acordo com a Antra, foram encontradas notícias de que apenas 11 casos tiveram os suspeitos identificados, o que representa 8% dos dados, e que apenas 7% estão presos. Importante considerar a ausência de dados governamentais acerca da violência contra a população trans brasileira e que ainda é muito comum a subnotificação crimes praticados contra a população LGBTQI+. De acordo com a ANTRA: “Esse fenômeno pode ocorrer pela dificuldade do registro das ocorrências, visto que, muitas vezes, os órgãos de segurança pública são hostis no atendimento e acolhimento de denúncias feitas pela população LGBTI; pela constante negativa da aplicação do entendimento da decisão do STF; pela falta de respeito e negação do uso do nome social das vítimas ou, ainda, pelo apagamento da identidade de gênero que é estruturalmente deslegitimada (BENEVIDES; BONFIM, 2020, p. 22).

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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. “Prazer, meu nome é Marcelo!”. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 23, 2020.
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