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Preconceito e Discriminação: temos no esporte e no Brasil, Mourão!

No final do mês de setembro de 2020, ao buscar elementos para traçar uma proposta de trabalho intersetorial, tendo em vista a realização de atividades remotas com adolescentes vinculados à política da Assistência Social e do Esporte e Lazer em Belo Horizonte, foi possível identificar a potência de um trabalho focando a relação entre esporte e discriminação racial. Inicialmente, o olhar das três pessoas do grupo de trabalho do Programa Esporte Esperança (do qual eu faço parte) estava focado na questão racial/étnica. E à medida em que fomos debatendo e estruturando as ações, outras formas de discriminação foram se destacando. Explicitadas em narrativas de experiências pessoais, ou vividas por outras pessoas, constatamos o quanto se produz e se reproduz preconceitos e discriminações em nossa sociedade, expressas, por exemplo, em situações relacionadas à idade, gênero e religião.

Os preconceitos e as discriminações podem ser percebidas em diferentes tempos e espaços. Ao ligar o rádio, a televisão ou acessar sites na internet não é incomum nos depararmos com notícias que mencionam situações de violência, em que mulheres são tratadas de modo discriminatório, pejorativo e desrespeitoso. Frases e comportamentos violentos, que ferem a condição humana, o direito de ser mulher e de ser respeitada. Situação semelhante observamos em relação à discriminação devido à cor da pele e à etnia. Homens, mulheres, crianças, jovens e adultos que terminam se deparando com frases, atitudes, olhares e gestos de discriminação[1]. Em 2018, a judoca Rafaela Silva relatou ter passado por essa inconveniente experiência.

Rafaela Silva denunciou o racismo de policial em 2018.  Foto: Wikipédia

No dia 20/11/2020 o vice-presidente da República Hamilton Mourão negou a existência de racismo no Brasil. Durante uma entrevista[2], após lamentar a morte de João Alberto Silveira Freitas (motivada pelo espancamento realizado por seguranças de um supermercado em Porto Alegre), Mourão foi perguntado se ele considerava que isso seria um caso que mostrava um problema de racismo no Brasil. Segundo o vice-presidente “o Brasil não existe racismo, isso é uma coisa que querem importar aqui pro Brasil, isso não existe aqui.” Ele seguiu dizendo que existe racismo é nos Estados unidos, onde ele morou por dois anos, quando era adolescente. E na época ficou impressionado com o fato de que lá “o pessoal de cor andava separado”. Para Mourão, o que existe no Brasil é uma “brutal desigualdade aqui, fruto aí de uma série de problemas.”

Parece que apesar de atualmente estar no Brasil, e ser o vice-presidente da República, ele não enxerga a nossa realidade. Talvez viva em um Brasil paralelo, diferente daquele em que milhões de brasileiros e brasileiras vivem, em que sofrem xingamentos racistas, agressões e espancamentos devido à cor da pele. Caso contrário, o que restaria para justificar tal resposta seria o desconhecimento que ele demonstra sobre a história brasileira, que caso se atentasse a ela, observaria que durante a colonização do Brasil houve preconceitos e discriminações contra negros e etnias indígenas, que com outras roupagens, ainda são perceptíveis no tempo presente, e que podem ser constatadas, por exemplo, por meio da mídia.

Nesse sentido, o esporte pode contribuir para identificarmos situações em que a manifestação do preconceito é perceptível. Por se constituir enquanto um fenômeno cultural, que tem no corpo a possibilidade de expressão dos movimentos e da plasticidade de cada modalidade, evidencia padrões de comportamento. O esporte pode comportar códigos mais universais, que são incorporados em diferentes grupos, ou mais específicos, que estão relacionados aos modos pelos quais pequenos grupos se apropriam dele.

Enquanto um fenômeno moderno que passou por transformações ao longo do século XX, destaca-se de modo especial a sua espetacularização[3]. Nesse sentido, a mídia contribuiu significativamente nesse aspecto e para a sua ampla difusão. Se em um primeiro momento o esporte estava presente em jornais impressos que circulavam na sociedade, com o advento e a popularização da televisão, sua propagação foi ainda mais ampliada ao longo da segunda metade do século passado. Nos anos 2000, dada a expansão do uso da internet e de suas ferramentas, o esporte vem demarcando espaço também nesse ambiente. Vem surgindo novas experiências relacionadas ao esporte no universo dos jogos eletrônicos, se constituindo enquanto prática no mundo dos games, e a ampliação do uso da internet, ainda favorce uma nova extensão da espetacularização do esporte.

Desse modo, ao assistir aos jogos, torneios ou competições das mais diversas modalidades, seja por meio da televisão ou através de aplicativos na internet, ou acompanhando a imprensa esportiva posteriormente aos jogos, poderemos nos deparar com situações em que o preconceito se faz presente. E, de nossas casas, ter uma aproximação com a discriminação direcionada a atletas, torcedores ou torcedoras, dentre as quais se encontra a discriminação racial, o racismo.

Retomando a ideia da construção do trabalho sobre esporte e discriminação, que foi apresentada no começo desse texto, ao fazer o levantamento de materiais para embasar e construir as atividades a serem realizadas (podcast, artigos acadêmicos e outros portadores de texto sobre o assunto), foi se destacando tanto a presença da discriminação, e de modo especial aquelas contra negros e contra mulheres, e também como atletas resistiram e lutaram contra o preconceito e a discriminação, tanto no Brasil quanto fora dele.

Nos aproximamos de trajetórias como a do norte-americano Jesse Owens, atleta negro que participou dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Naquela época, ao conquistar 4 medalhas em provas de Atletismo nesse grande evento esportivo, Owens abalou o projeto de afirmação da raça ariana, defendido por Adolf Hitler e outros nazistas. E nos surpreendemos com o esquecimento da memória de Irenice Maria Rodrigues (FARIAS, 2018)[4], atleta negra nascida em Minas Gerais, que durante os anos de 1960 esteve vinculada a equipes de atletismo como Vasco e Guanabara (ambas do Rio de janeiro) e foi silenciada durante a ditadura militar no Brasil. Seu posicionamento contra a discriminação de gênero e em defesa da ampliação da participação de mulheres em provas ainda não permitidas (tais como os 800m), sua liderança e sua mobilização para garantir os direitos das atletas, juntamente com um desentendimento que teve na Vila Olímpica envolvendo Maria Conceição Cipriano, uma colega de equipe, lhe custou o afastamento da delegação que participou dos Jogos Olímpicos do México, em 1968.

Irenice Maria Rodrigues e a luta contra a discriminação de gênero. Foto: Reprodução Twitter

Histórias como estas, ainda que ocorridas no âmbito do esporte, extrapolam o campo esportivo, ecoando o nosso cotidiano, uma vez que as práticas esportivas podem manifestar diversos conflitos e contradições presentes na sociedade, sendo um campo profícuo para estudos. Desse modo, pesquisadores e pesquisadoras de diferentes áreas de conhecimento vem abordando essa temática em seus estudos, o que pode auxiliar na compreensão de prováveis causas e na reflexão sobre estratégias de enfrentamento dos preconceitos e das discriminações. Encontra-se entre esses estudos os de Tonini (2016)[5], Goellner (2005)[6] e Almeida (2019)[7].

Esse percurso me aproximou dessas e de outras trajetórias de atletas que foram marcados e marcadas pelo preconceito. Ampliou o entendimento sobre a necessidade constante de olharmos o passado para compreender as questões do presente, e desse modo, ter elementos para construir perspectivas mais positivas para o futuro.

O preconceito e a discriminação no Brasil se manifesta de formas variadas e em diferentes tempos e espaços sociais, impactando significativamente negros e negras. E, no campo esportivo, tem relação com episódios que vem se repetindo em diferentes modalidades e marcando de modo negativo a construção da história do esporte. Assim, não há como dizer que não existe racismo no Brasil, Mourão. Preconceitos e discriminações de diferentes aspectos existiram e continuam existindo no país. Cabe a nós a construção de novos olhares, pensamentos e ações, inclusive, dizer não ao racismo e a seu negacionismo!

 

Notas

[1] Um exemplo de racismo e preconceito relacionado à condição econômica pode ser observado no site de notícias Uol, em reportagem intitulada “Judoca Rafaela Silva Denuncia Racismo que Sofreu de Policial no Rio”. Acesso em 24/11/2020.

[2] Veja esse trecho da entrevista no Visão CNN. Acesso em 25/11/2020

[3] BETTI, Mauro. A Janela de Vidro: esporte, televisão e Educação Física.  Campinas, São Paulo: Papirus, 1998.

[4]FARIAS, Cláudia Maria de. “Irenice Maria Rodrigues, o esquecimento de uma atleta olímpica brasileira”. In: Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da ANPUH- Rio: História e Parceria. Niterói ANPUH, 2018.

[5] TONINI, Marcel Diego. Dentro e fora de outros gramados: histórias orais de vida de futebolistas brasileiros negros no continente europeu. 2016. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. 

[6] GOELLNER, Silvana Vilodre. “Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades”. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 1 jun. 2005.

[7] ALMEIDA, Caroline Soares de. “O Estatuto da FIFA e a igualdade de gênero no futebol: histórias e contextos do Futebol Feminino no Brasil“. FuLiA / UFMG[S. l.], v. 4, n. 1, p. 72–87, 2019. 


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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Preconceito e Discriminação: temos no esporte e no Brasil, Mourão!. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 20, 2020.
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