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Presidente Médici, “o mais belo estádio do mundo”

Sabemos que o Brasil passou por importante capítulo de sua História com o regime militar instaurado por um golpe em 1964.

O golpe não foi um raio caído de céu azul: ele se inscreve numa impressionante sequência de quarteladas ocorridas na América Latina. Mesmo no que diz respeito à política brasileira, 64 foi o ponto final de uma série de tentativas golpistas urdidas pelo conluio entre militares e seus aliados civis, os políticos da UDN, que sempre se apresentaram à opinião pública como ferrenhos defensores da “liberdade”. (FREDERICO, 2004, p.103)

Mais adiante, com a instituição do AI-5, em 1968, o Brasil entrou em um período marcado pela intensa repressão. Dentre outras medidas, este autorizava a cassação dos direitos civis de acordo com a suposta necessidade dos órgãos repressores. Assim, a relação entre Estado e sociedade passa a ser sistematicamente feita por aparatos repressivos, com o primeiro se impondo com poderes quase ilimitados. Em nome da “segurança nacional” a violência é instituída, com perseguições, prisões arbitrárias, tortura e assassinatos políticos.

A partir da decretação do AI-5, o Brasil passou a viver os “anos de chumbo” (1968-1974), período de maior utilização, sistematização e qualificação dos mecanismos repressivos. Isso não significa, porém, que os responsáveis pela violência instituída anteriormente estejam sendo eximidos. (PADRÓS, 2009, p.41)

Importante apontar que o período de 1969 a 1973, conhecido como “milagre econômico”, foi insistentemente caracterizado como um tempo marcado por transformações positivas e avanços econômicos. O Governo Médici (1969-1974) procurava reforçar sentimentos de confiança, nacionalismo e ufanismo exaltando as suas realizações. Servia-se dessa eloquente retórica para dissimular a restrição das liberdades individuais (entre outras coisas) e reafirmar, em contrapartida positivamente seu modelo de desenvolvimento econômico.

E foi durante os seus anos mais truculentos, os chamados “anos de chumbo”, que o governo Médici pretendia dar “cara nova” ao país. Dentre a execução de enormes construções, a de estádios de futebol merece destaque.

Integração Nacional: a construção de estádios de futebol

Um poderoso componente de propaganda da ditadura militar foi a inauguração de estádios de futebol. Muitos dos chamados gigantes de concreto foram construídos durante o período crítico deste regime de exceção.

Desta forma, Pernambuco não desejava ficar de fora dessa “coincidência nada casual com o período crítico do regime de exceção no Brasil” (MASCARENHAS, 2014, p.169). Assim, sob a égide do Governo Médici, o Recife viu “entrar em campo” um audacioso projeto.

Desta forma, nos finais de 1970, o Sport Club do Recife, na presença de autoridades militares do alto escalão, apresenta a sociedade o lançamento da maquete do seu novo estádio: o Estádio Presidente Médici.

A grandiosidade do empreendimento, com seus imponentes números, não passa despercebida. Com capacidade prevista para 100 mil pessoas “confortavelmente instaladas, ou 130 naquela base do salve-se quem puder”, o novo estádio rubro-negro previa um “parque de estacionamento para 4 mil veículos, o equivalente a 10 por cento dos carros existentes no Recife”. (Diário de Pernambuco, 12 de março de 1971, p. 02.)

As dimensões do futuro estádio seriam uma representação e afirmação do desenvolvimento do Estado de Pernambuco. Com tom esperançoso e de certeza, se anunciava a obra monumental.

O SPORT CLUB DO RECIFE, vizinho irrequieto [sic] há 69 anos, descobriu a Ilha de Joana Bezerra para construir ali a segunda praça de desportos do país: o ESTÁDIO PRESIDENTE MÉDICI. Para um grande Presidente um exemplo de arrojo, de trabalho, de dinamismo. A denominação PRESIDENTE MÉDICI sugere o apoio de todos os pernambucanos em busca da concretização de uma obra gigantesca voltada para a consagração dos desportos nordestinos. […] Mais alguns dias e centenas de operários estarão trabalhando 24 horas por dia objetivando, em 36 meses, a conclusão de um estádio moderno, amplo e confortável para acomodar 160 mil espectadores. […] Afinal, é tempo de construir [grifo nosso]. E Pernambuco se integra no esforço do desenvolvimento brasileiro, confirmando a capacidade realizadora do nosso Povo, sempre calorosamente saudado como tricampeão de futebol, entre outras memoráveis conquistas em todos os setores da atividade humana. (Diário de Pernambuco, 31 de março de 1971, 2º caderno, capa).

Estádio Presidente Médici
Boletim Informativo, Sport Club do Recife, Ano VI, SET 1971, nº 8, p. 4 e 5

Notemos ainda apropriação do discurso estatal como estratégia de propaganda não foi exclusividade do jornal Diário de Pernambuco. “É tempo de construir” foi um slogan criado pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP, criada em 1968). Esta reprodução discursiva fazia repercutir na sociedade os projetos e valores defendidos pelo governo militar. Assim, ao usar uma expressão do ideário “revolucionário” o anúncio do novo estádio legitimava a ditadura aliando-o ideologicamente ao “Brasil Grande”.

Estádio Presidente Médici
É tempo de construir. Boletim Informativo Sport Club do Recife, Ano VI, abr 1971, nº 1, p.2 e 3.

Vale observar que o autor do projeto do estádio era simplesmente o maior arquiteto brasileiro da atualidade: Oscar Niemeyer[1].

A seguir, a matéria do jornal delineia claramente sua linguagem com o projeto de país pensado pelo governo. Ao exaltar trecho do discurso de posse do presidente, ressalta a importância da coletividade, conclamando os pernambucanos à união em prol do desenvolvimento.

Conforme a filosofia do Presidente Médici – “homem do meu tempo, tenho pressa” – continuam ativamente as obras de construção do mais belo estádio do mundo. […] O local tem sido visitado por pernambucanos de todos os clubes, que se mostram eufóricos com a grandiosidade do estádio. (Diário de Pernambuco, 26 de setembro de 1971, 1º caderno, p.18).

Ainda, no clima de euforia e entusiasmo característico do “milagre econômico”, e seguindo a cartilha da megalomania pernambucana, o Diário de Pernambuco batiza o estádio com o “mais belo do mundo”.

Embora lardeado durante anos, o projeto do Estádio Presidente Médici ficou apenas no papel. Além da falta de recursos por parte do Sport Club do Recife, o insucesso da construção do Estádio Presidente Médici foi determinado por uma escolha política. Ao invés de uma obra que estava ainda começando, optou-se por outra que já estava em andamento, a ampliação do estádio do Arruda. Esta alternativa por parte daqueles que estavam a frente do Estado determinou onde se deveria empregar esforços e dinheiro público.

Estádio Presidente Médici
Diário de Pernambuco, 30 mai. 1972, p. 4, Edição 123, Caderno Esportivo

Em suma, a primeira metade da década de 1970 corresponde ao auge da febre de construção de grandes estádios no Brasil; na década seguinte, é notável a desaceleração abrupta desse processo, que se estanca ainda na primeira metade dos anos 1980. Podemos analisar esse ciclo por diversos ângulos, sendo o primeiro e mais expressivo a coincidência nada casual com o período crítico do regime de exceção no Brasil. Outro ângulo pertinente é o da consolidação do processo, que teria se esgotado ao concluir a construção de estádios em praticamente todas as capitais estaduais, conformando o parque de estádios suficiente para as aspirações de um espetáculo de massas (o Campeonato Brasileiro) que recobrisse todo o território. (MASCARENHAS, 2014, p.169)

Notas

[1] Gozando de fama internacional, no Brasil foi autor do projeto da Pampulha, em Belo Horizonte, a convite do então prefeito Juscelino Kubitschek. Projetou, em seguida, o Parque Ibirapuera em São Paulo. Ainda, idealizou Brasília, a nova capital federal. São exponentes maiores dessa obra os Palácios da Alvorada e do Planalto, a Catedral e o Itamaraty.

Bibliografia

 ABREU E LIMA, Maria do Socorro. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos, projetos. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Ed. Oito de Março, 2005.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. v. 4.

FREDERICO, Celso. 40 anos depois. In. O golpe militar e a ditadura 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2004, cap.6.

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.

PADRÓS, Enrique Serra e FERNANDES, Amanda S. Faz escuro, mas eu canto: mecanismos repressivos e as lutas de resistência durante os “anos de chumbo” no Rio Grande do Sul. In: Ditadura e Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1985): história e memória. Org. PADRÓS, Enrique Serra, BARBOSA, Vânia M. LOPEZ, Vanessa A. FERNANDES, Amanda S. Porto Alegre: Corag, 2009.

REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru SP: Edusc, 2004.

SILVA, Marcília Gama da; SOARES, Thiago Nunes (Orgs.). Pernambuco na mira do golpe, volume 1: educação, arte-cultura e religião [recurso eletrônico]. Marcília Gama da Silva; Thiago Nunes Soares (Orgs.) — Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

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Rodrigo Carrapatoso de Lima

Possui graduação em História (2008), especialização em História do Século XX (2010) e mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Atualmente é doutorando na Universidade de Coimbra (UC) e Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme) e Pesquisador das temáticas ligadas a ditadura e futebol.

Como citar

LIMA, Rodrigo Carrapatoso de. Presidente Médici, “o mais belo estádio do mundo”. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 8, 2023.
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