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Primeiros Movimentos do Torcer em Belo Horizonte: “a fina roda de distinctos sportmen e gentis sportwomen” (1904-1915)

Georgino Jorge de Souza Neto 21 de janeiro de 2021

Foi em um ambiente emblemático e singular que o esporte e o divertimento ocuparam uma demanda social específica atrelada às novas exigências da recém criada capital do Estado de Minas Gerais. Neste sentido, o futebol, quer como prática, quer como fruição, revestiu-se de significativa importância na dinâmica da nova cidade. Um relato da época expressava a forma intensa com que a prática do futebol penetrou na capital mineira:

“Ante-hontem foi disputado mais um match de football no campo dessa novel sociedade, perante tão numerosa quão fina roda de distinctos sportmen e gentis sportwomen. Prestou-se graciosamente a servir de referee o sr. Capitão Haas, que se conservou durante toda a partida perfeitamente imparcial e attento, o que grandemente contribuiu para o bom resultado della. Venceu ainda desta vez o team do Sr. Victor Serpa por 2 gols a 1, apesar do denodo e do brilho com que se bateu o do dr. Oscar Americano. Os pontos foram marcados para os vencedores, pelos srs. José Mariano de Sales e Victor Serpa e para os vencidos pelo sr. Joaquim Brasil. A lucta esteve sempre animadíssima, o que demonstra que o popular sport está finalmente para sempre implantado em nosso áureo Estado” (SPORT Club. Minas Geraes. Belo Horizonte, p. 6, 04 out. 1904).

Planta geral da cidade de Belo Horizonte (1895)
Planta geral da cidade de Belo Horizonte (1895). Foto: Wikipédia

A constituição de novos hábitos, em uma cidade planejada e construída sob o ideário da modernidade, perpassa pela necessária compreensão da tensão estabelecida entre o embate de práticas sociais originais em um espaço ocupado por sujeitos educados em meio a valores tradicionais e conservadores. Neste aspecto, em particular, a historiadora Letícia Julião esclarece:

“Obviamente, uma transformação tão radical no modo de vida não ocorreu, em Belo Horizonte, como um passe de mágica. Só lentamente as elites mineiras se adaptaram àquele novo cenário urbano e adquiriram novos hábitos, vencendo suas resistências e desajustes. […] Mas, apesar das impressões de abandono ou provincianismo, não se pode deixar de admitir que o cenário urbano acabou por inspirar um modo de vida moderno na capital. Processo que, aliás, alimentou-se, justamente, dessas forças ambíguas e paradoxais, originando uma sociabilidade repleta de hibridismos. O desejo pelo novo articulava-se com o apego ao velho, assim como o cosmopolitismo com hábitos e valores tradicionais. Isso sem falar que a capital, ao mesmo tempo que oferecia espaços adequados e atraentes para o convívio público, contraditoriamente inibia, com sua “geografia” segregacionista e disciplinadora, a interação entre os indivíduos” (JULIÃO, 1996, p. 66).

Na construção de seu trabalho de doutoramento, Tarcísio Mauro Vago aponta a relação original que deveria estabelecer-se entre a nova cidade e os velhos corpos que nela habitavam. Assim, descreve:

“Como a própria cidade, o corpo que nela se movimentaria foi também um lugar para se implantar o ideário republicano. Praticar a cidade, transitar por ela, vivenciá-la corporalmente, isto é, provar a cidade com o corpo, isso era já uma forma – e uma fôrma! – de fazer o corpo se impregnar de racionalidade, da higiene, da assepsia, da civilidade desejada, uma forma de constituir o corpo pretendido para o cidadão republicano” (VAGO, 2002, p. 34).

Dentre o rol de transformações que a inauguração da pretensa cidade moderna promovia, estava o surgimento de um espaço favorável à apropriação do esporte. Nas memórias de Paulo Mendes Campos,

“a mudança da Capital foi muito proveitosa quanto aos esportes, pois Ouro Preto não se harmonizava bem com outras práticas atléticas além do truco, a cachaça e o violão” (CAMPOS, 1962, p. 73).

Esses novos modos de viver a vida se davam em múltiplos espectros da dinâmica social, mas é notadamente no tempo destinado à vivência das festas e diversões que o “moderno” vai se estabelecendo. Refletir um estilo de vida alinhado com uma fremente e inédita possibilidade, habitada na modernidade, seduzia (e induzia) às pessoas imersas na cultura urbana da nova cidade. O esporte se constituiu no propício espaço para o desenvolvimento de novas condutas, a apropriação de novos hábitos, inspirados em uma realidade vivenciada nas principais cidades europeias, sobretudo Paris. Este debate é instigado pelo pesquisador Gilmar Mascarenhas de Jesus, ao afirmar:

“Não podemos deixar de frisar o caráter elitista que todo esse movimento assumiu inicialmente: a imposição de uma nova atitude corporal, através da assimilação de esportes importados, se inseriu plenamente no projeto civilizador da classe dominante, refletindo a intolerância de nossa Belle Époque para com a cultura popular, e não apenas para com o passado colonial. Índios, ciganos, imigrantes nordestinos e negros foram elementos que o projeto de “cidade moderna”, a princípio, foi incapaz de absorver” (MASCARENHAS, 1997, s/p).

Belo Horizonte, ainda que preservando aspectos singulares da sua formação, não fugiu à tentativa de instituição de hábitos que fossem condizentes com o padrão civilizatório da modernidade; e neste sentido, os usos do tempo eram distintivos de um status, bem como se tornavam indicativos de pertencimento. Como expõe José Miguel Wisnik,

“[…] esse futebol torna-se logo a vitrine de um modo de vida europeizado, cosmopolita, e um índice de civilização e progresso, além de um traço de distinção social. Pondo-se como esporte vocacionado congenitamente para gente fina, seja na plateia ou no gramado, o futebol dos grandes clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo consolida-se como moda elegante ao longo já da primeira década do século” (WISNIK, 2008, p. 200).

A associação de uma vida social mais intensa e pública (possibilitada no futebol) com um incremento das relações pessoais, acabava por legitimar o discurso do esporte como um elemento social desejável. Assim, jogar e assistir o futebol em Belo Horizonte se tornava, cada vez mais, um hábito incorporado socialmente, chegando a ser rotulado como a “mania do foot-ball” (A EPOCHA, Belo Horizonte, p. 2, 30 out.1904).

O aparecimento do novo não se instituía sem provocar estranhamentos. Se jogar futebol era algo estranho e até mesmo difícil para boa parte das pessoas, o assistir ao jogo também não causava menos estranhezas. A crônica de Spiridiam34 demarcava claramente esta percepção, narrando a sua impressão ao assistir a uma partida de futebol pela primeira vez:

“[…] E a voz de Bicudo sorprehendeu-me: – que estás aí a murmurar? Nada!? Pois eu ouvi … avia-te e vamos assistir a partida de ‘foot-ball’: nunca vi tal cousa. – Nem eu, accrescentei. Quando chegamos ao chamado ‘campo’, fiquei sorpreso. Senhoras e cavalheiros lá estavam embevecidos, arriscando commentarios, interessados pelo jogo. Bicudo franziu os supercenhos e eu puz-me a observar. Marmanjos e crianças, todos de bonets e calções, as pernas nuas do joelho para baixo, calçados com sapatões de turco, atiravam pontapés numa bola que andava de Herodes para Pilatos. Momentos depois passou perto de mim um ‘foot-baller’ e eu pude ver-lhe as truculentas barrigas das pernas com cada mancha assim de sinapismo… Não me contive e chamei a atenção do Bicudo. O insigne mestre ria perdidamente, achando tudo aquillo tragico e comico ao mesmo tempo, e sem perceber, instinctamente repetiu o conceito de D. Quitéria: – Neste mundo ha cada uma… – Que até parecem duas -, acabei eu” (A EPOCHA. Belo Horizonte, 20 nov. 1904. Seção As Farpas, p. 2).

A noção de divertimento perpassava intensamente o universo que circundava a prática do futebol. Na tentativa de consolidação do esporte, a presença de um público assistente representava algo fundamental. Assim, desde os primeiros movimentos, iniciativas para atrair as pessoas aos campos foram estabelecidas. E estas passavam necessariamente pela lógica da diversão. Em uma partida em que o combinado do Club Athletico and Estrada Foot-Ball Club enfrentou o Sport Club Foot-Ball, foi possível perceber a ocorrência de um tradicional hábito de divertimento da população associado ao movimento esportivo. Na nota do Minas Geraes lê-se:

“É provavel haver amanhã, muita concurrencia de pessoas ao local da lucta, tanto mais que uma das bandas da Brigada Policial, obsequiosamente cedida pelo sr. dr. Chefe de Policia, tocará nas proximidades da raia do campo” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 01 jan. 1905. Seção Festas e diversões, p. 3).

A presença da Banda de Música demarcava o incremento da prática do futebol, dando ares de festa ao espaço frequentado pelos sportmen e sportwomen. É notório, aliás, o caráter festivo, deliberadamente posto no fenômeno esportivo, como característica marcante da modernidade. Assistir às partidas de futebol significava a apropriação de um divertimento público, onde se podia ver e ser visto. Ainda que embrionariamente, o espetáculo esportivo começava a ganhar contornos que seriam cada vez mais estruturados, condicionados a uma nova ordem social e econômica.

Inauguração de Belo Horizonte
Inauguração de Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 1897. Foto: Wikipédia

Todo este conjunto de práticas constituídas no movimento do espaço urbano e moderno da nova cidade, promovia uma reconfiguração permanente e conflituosa dos hábitos que viriam a ser efetivamente instituídos. Entre essas práticas, o esporte e o lazer ocupavam especial destaque. Belo Horizonte, na sua tentativa de tornar-se moderna, lançava mão, através do smartismo, de vivências bastante particulares. Neste sentido, uma das mais requeridas formas de ocupação do espaço de tempo, se localizava no “sport”. É a cidade moderna também a cidade esportiva, campo fértil para a ocorrência e desenvolvimento do futebol.

Pelos estudos realizados sobre o futebol na capital mineira, no início do século XX, dois momentos distintos da penetração desta prática no seio social podem ser vislumbrados. Um primeiro instante, em que o futebol se alastra rapidamente, com a adesão de grupos sociais privilegiados e com a tentativa de construção de uma prática restrita e distintiva. Esse período habitou os anos de 1904, 1905 e meados de 1906, sendo praticamente extinta em 1907. O ano de 1908 marcaria o retorno do futebol à cidade de Belo Horizonte, desta vez com uma menor euforia e com uma maior regularidade. Regularidade esta que fez com que o futebol só voltasse a ser uma prática mais popular nos primeiros anos da década de 1910.

Nos periódicos investigados no primeiro momento do futebol em Belo Horizonte, não foi possível perceber nenhum comportamento que indicasse, por parte do público assistente, um vínculo afetivo com algum clube. Assim, o termo “assistência” era literalmente adequado aos frequentadores dos campos de futebol. Outro termo de similar significado, utilizado pelos jornais, é a chamada “concorrencia”, ou ainda “concurrencia”, como forma de designar as pessoas presentes às partidas de futebol. “Apreciadores”, “amadores” e “espectadores” também representavam, de forma menos recorrente, a platéia assistente.

Em um campeonato da cidade realizado em 1904, no jogo ocorrido entre os “teams” do Grupo Colombo e do Grupo Vespucio, a nota indicava “os numerosos espectadores que concorreram a este match” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 26 out. 1904. Seção Festas e diversões, p. 7); em uma outra oportunidade, a referência do jornal às pessoas que iriam ao jogo do Athletico Mineiro Foot-Ball Club foi assim feita:

“É de presumir que haverá hoje grande concurrencia ao Athletico-Mineiro Foot-ball” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 24 nov. 1904. Seção Festas e diversões, p. 6).

Assistir, concorrer, frequentar, apreciar. Independentemente de como os jornais refletiam o público ao redor dos campos de futebol, fato é que as pessoas lá estavam, e em número cada vez maior. Quem eram esses sujeitos, e por quais motivos ocupavam aquele espaço? Ainda que os periódicos reverberassem as práticas sociais de um grupo distintivo, não seria equivocado inferir que o entorno dos campos de futebol se destinavam mesmo a uma assistência constituída pela família, pelas “senhoras e senhorinhas”, pelos sportmen, bem como, de forma crescente, pela classe política da Capital, intitulada de “mundo oficial”. Esse universo de atores representava o high-life belorizontino, tornado público através dos periódicos. Em um “match inter estadoal de foot-ball”, realizado no Parque (espaço emblemático de práticas da elite), a nota do periódico apontava a presença de representantes da classe política mineira:

“O bello festival correu animadissimo, tendo attrahido ao ground do “Sport Club Bello Horizonte” grande numero de familias e cavalheiros da nossa melhor sociedade, entre os quaes os srs. dr. Bueno Brandão Filho, official de gabinete, e capitão Joviano de Mello, ajudante de ordens, interino da Presidencia, representando o exmo. sr. Bueno Brandão. A lucta travou se entre o “Sport Club de Bello Horizonte” e o “Riachuelo F. C.”, do Rio, que sahiu vencedor. Os bravos rapazes receberam innumeros applausos das pessoas presentes, mostrando se gratos pelas gentilezas que lhes foram dispensadas pela nossa sociedade” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 12-13 set. 1910. Seção Festas e diversões, p. 6).

Ao indicar a apropriação do esporte por uma elite local, é fundamental que situemos a concepção que possuímos sobre este grupo social. No particular caso de Belo Horizonte, este aspecto se torna ainda mais relevante, posto que a cidade foi erguida sob a perspectiva segregacionista do pensamento moderno, que instituía espaços próprios (e não convergentes) para a ocupação de indivíduos com posições sociais distintas, e obviamente, com práticas sociais singulares. Ainda assim, cabe o esclarecimento de que:

“As elites são compreendidas não somente como os que detinham o poder econômico, mas também como a possibilidade de influenciar culturalmente o desenvolvimento da sociedade. A história do esporte no Brasil confunde-se com seu relacionamento com as elites políticas e econômicas. Assim, desde os primórdios os esportes apresentam algumas regularidades, entre elas o fato de ser uma prática que, mesmo popular, é conduzida por membros das elites, que nela percebem a possibilidade de obter lucros diretos e indiretos” (MELO, 2007, p. 59).

Praça Sete e Avenida Afonso Pena em 1900
Praça Sete e Avenida Afonso Pena em 1900. Foto: Wikipédia

Após 1910, o futebol começava a apresentar mudanças, que iam desde o aumento da popularidade até a apropriação de algumas posturas diferenciadas, tanto dos “foot- ballers” quanto da assistência. A fundação do “Yale Athletic Club”, em 1910, é emblemática deste momento. Representava, aos olhos da imprensa local, uma “sociedade formada dos melhores elementos sportivos desta Capital”. Embora formada, segundo a própria nota que anunciava a sua aparição, por um “numeroso grupo de rapazes, pertencentes na maioria ao operariado desta Capital”, o clube do Barro Preto seguiu a lógica de um grupo distintivo, mesmo com uma composição mais heterogênea do seu quadro social.

O Yale passava então a ser um agente promotor e difusor do esporte na cidade, organizando festivais esportivos com o intuito de promoção social e convívio público. Convém lembrar que o futebol se destacava enquanto prática privilegiada, ainda que outras vivências esportivas se situassem como parte integrante do seu rol de atividades. Um jogo, em especial, refletia o novo momento do futebol em Belo Horizonte. Apresentado como “Um Grande Match de Foot-Ball”, a partida entre o Yale e o Morro Velho despertava grande interesse por parte do Minas Geraes, enfatizando na sua nota que:

“Para maior brilhantismo da festa, o ground da avenida Paraopeba passou por notavel transformação material, não só de terraplanagem, como em tudo mais que se tornava necessaria para o conforto do grande publico alli esperado. Varios pavilhões e archibancadas foram contruidos, dando ao campo um aspecto novo, de local para diversões ao livre. […] Conta com a presença do exmo. sr. Bueno Brandão, presidente do Estado, dos seus secretarios e do prefeito dr. Olyntho Meirelles, aos quaes o club mandou convidar por commisões especiais. […]. A festa tem despertado extraordinario enthusiasmo entre os “sportmen” daqui e de Morro Velho, de onde vêm innumeras pessoas especialmente para assistir á lucta entre os dois clubs, cada qual com os seus partidários mais extremados, que fazem grandes apostas sobre o resultado do jogo” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 15 jul. 1911. Seção Festas e diversões, p. 6).

O texto do periódico oficial do Estado traz uma série de conotações importantes quanto à ocorrência de práticas até então não percebidas, em relação principalmente ao público assistente. A preocupação com “melhorias materiais”, no intuito de maior comodidade ao “grande público esperado”, dava a idéia de uma outra valorização desta prática no começo da década de 1910. A compreensão do evento como uma “diversão ao ar livre” também indica a forte relação estabelecida do futebol como um fato social, público, possibilitado na concepção do divertimento.

O Club Athletico Mineiro, juntamente com o Yale, assumia uma importante função no desenvolvimento e na apropriação do futebol na cidade. Fundado em 1908, por estudantes e acadêmicos, o Athletico vai se consolidando ao longo dos anos, se distinguindo dos clubes efêmeros que marcaram a primeira fase do esporte na Capital. Uma importante demonstração do apelo popular emanado pelo clube pode ser percebida em 1912, quando o Athletico começava a sua fase de expansão. Em uma partida realizada contra o Gramberiense, da cidade de Juiz de Fora, a repercussão explicitada nos jornais não foi discreta, chegando a se descrever desta forma o embate esportivo:

“Correu animadissimo o “match” hontem à tarde, travado entre o “Gramberiense” e o “Athletico”. Os destemidos “sportmen” do Grambery, reforçados no ataque e na defesa, ardilosos e calmos nos “passes”, tiveram varias vezes os applausos dos assistentes, entre os quaes figuravam distinctas familias da nossa alta sociedade e innumeros dilletanti. […]. O “match” despertou grande interesse entre os apreciadores do “foot-ball”, sendo assistido por mais de 1000 pessoas, que acompanharam, com vivo interesse, as varias peripecias da animadissima partida” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 13-14 maio 1912. Seção Festas e diversões, p. 7)

Um aspecto particularmente interessante é a presença do público feminino, desde as primeiras manifestações de ocorrência do futebol na cidade. Presença que, embora ao longo do tempo vá se reconfigurando, se mantém regular e constante. Na perspectiva de assistência, a mulher aparece como um elemento discreto, que dá brilho e orna a festa esportiva. Na partida realizada entre o “Estrada and Athletic Club” e o “Sport Club”, em 1905, a presença das senhoras no campo não passava sem a devida atenção:

“O campo apresentava um aspecto garrido, todo circundado de galhardetes e bandeirolas. Que este genero de sport já se introduziu definitivamente entre nós, prova-o a grande concurrencia de espectadores, e principalmente de senhoras, que affluiram, ante-hontem, ao Campo Novo, emprestando, por alguns momentos, áquelle logar quase sempre ermo, o brilho das suas ricas toilettes e da sua graça” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 9-10 jan. 1905. Seção Festas e diversões, p. 4).

Essa presença feminina nos campos horizontinos não parecia se diferenciar muito de outras importantes cidades. Como Capital da República à época, o Rio de Janeiro ditava os modos e costumes vigentes, e acabava por influenciar a recém-criada Capital mineira. Neste aspecto, o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira aponta, em seus estudos sobre o futebol no Rio de Janeiro, que “lotadas de cavalheiros e senhoritas com vestidos claros, as arquibancadas pareciam um salão de festas” (PEREIRA, 200, p. 74).

O espetáculo esportivo vai se consolidando como experiência da modernidade. Diversão pública, consumo, exposição. Todos estes aspectos se potencializavam quando a competição esportiva assumia maior valorização. Foi a competição exacerbada, aliás, que começou a redimensionar os valores e os modos de viver do divertimento esportivo. A dinâmica da cidade se configurava a partir das imagens de um espaço onde o “novo” se instaurava, ainda que lentamente e não sem o enfrentamento de resistências. O convívio público possibilitava a exposição necessária à efetivação de uma identidade moderna. Para isto, a diversão vivenciada sob a égide do espetáculo (onde o visual e o imagético imperavam) se apresentava como um importante caminho a ser trilhado. Caminho percorrido pelo futebol na sua tentativa de consolidação no espaço da cidade.

O corte definidor de uma nova etapa da cultura esportiva se dá em 1915, com a criação da Liga Mineira de Sports Athleticos. A entidade cria as bases para um novo modo de apropriação das práticas atléticas, estabelecendo parâmetros palpáveis para o desenvolvimento mais acentuado do esporte na cidade de Belo Horizonte. A partir de 1915, com a vida esportiva da cidade impulsionada pela criação da Liga Mineira de Sports Athleticos, o futebol era alçado à popularidade absoluta. Ainda que outras modalidades merecessem breves comentários nos periódicos, é de fato o futebol que absorvia a quase totalidade das notas referentes ao mundo esportivo da Capital. Pistas deixadas pelos periódicos corroboram essa efervescência do futebol na cidade, já anunciado como uma prática de divertimento predileta.

Um outro importante indício encontra-se na aparição do termo “torcida”, nos periódicos. A primeira referência que utilizou esta nova palavra para designar o público espectador dos jogos de futebol foi encontrada no Minas Geraes, em setembro de 1915. Ao anunciar o encontro entre os “teams” do Athletico e do Yale, o jornalista lança mão do termo torcida, no intuito de caracterizar os grupos de espectadores com predileção por uma das equipes disputantes. Na íntegra, o texto da nota narrava:

“O “field” do prado Mineiro, domingo, será, certamente, pequeno, para conter o numero consideravel dos que apreciam as boas partidas do “association”. Batem-se os “teams” do Athletico e do “Yale”, os dois mais fortes concorrentes do presente campeonato. Dadas as condições de “treno” em que se acham as “équipes” dos dois “clubs”, impossivel será fazer-se um prognostico. Sera, pois, uma bella tarde, proporcionada aos amantes do violento “sport”, pelo que, certamente, concorrerão as “torcidas” dos dois clubs, ao bello “ground” do Prado Mineiro” (MINAS Geraes. Belo Horizonte, 24 set. 1915. Seção Festas e diversões, p.6).

Um fato interessante está no estranhamento do termo torcida. Percebe-se, no texto, várias palavras entre aspas. Estas, com exceção do termo torcida, são assim marcadas por representarem um estrangeirismo, notadamente termos ingleses usados no universo do futebol no período. A aspa posta na palavra torcida significava que a mesma, por não pertencer ao vocabulário usual das pessoas, deveria então vir destacada como forma de demarcar o novo, o desconhecido.

Apesar de possuir elementos identificadores do torcer, este período sugere um marco transitório. Concomitante ao aparecimento de condutas desviantes, de termos próprios e da afeição pelos clubes, ainda é possível captar, em 1915, um cenário bastante próximo ao de anos anteriores, quando a assistência elitizada e distintiva era preponderante. Os indícios demonstraram, neste primeiro momento, um movimento oscilatório de inserção do futebol na cidade de Belo Horizonte, e consequentemente, da constituição das torcidas. Passando por uma fase marcadamente caracterizada pela assistência elitizada e sem demonstrações explícitas de afeto pelos clubes de futebol, na segunda metade da década de 1900, até o surgimento de pequenas e significativas mudanças no modo de se portar nas arquibancadas, na primeira metade da década seguinte, os textos da imprensa belo-horizontina refletiam a incontestável presença da nova prática social na rotina de parte dos moradores da cidade de Belo Horizonte.

 

Referências Bibliográficas

CAMPOS, Paulo Mendes. “Os tempos Olímpicos”. In: Homenzinho na ventania. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1962.

JULIÃO, Letícia. “Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920)”. In: DUTRA, Eliana de Freitas (Org.). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/Arte, 1996, p. 49-118.

MASCARENHAS, Gilmar. Construindo a Cidade Moderna: a Introdução dos Esportes na Vida Urbana do Rio de Janeiro. Texto elaborado a partir de pesquisa elaborada para a disciplina Geografia da Cidade do Rio de Janeiro, em curso realizado no segundo semestre de 1997 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

MELO, Victor Andrade de. Dicionário do esporte no Brasil: do século XIX ao início do século XX. Campinas, SP: Autores Associados; Rio de Janeiro: Decania do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, Coordenação de Integração Acadêmica de Pós-Graduação, 2007.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

VAGO, Tarcísio Mauro. Cultura Escolar, Cultivo de Corpos: Educação Physica e Gymnastica como Práticas Constitutivas dos Corpos de Crianças no Ensino Público Primário de Belo Horizonte (1906-1920). Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Como citar

SOUZA NETO, Georgino Jorge de. Primeiros Movimentos do Torcer em Belo Horizonte: “a fina roda de distinctos sportmen e gentis sportwomen” (1904-1915). Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 35, 2021.
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