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Propostas para o reconhecimento da várzea como patrimônio

Raphael Rajão Ribeiro 27 de outubro de 2020

O texto de hoje encerra uma série de artigos publicados na coluna arquibancada que apresenta parte do estudo integrante do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018. Nesse percurso foram apresentados debates sobre as possibilidades de reconhecimento do futebol amador como patrimônio; a conformação de uma cultura esportiva popular, com suas diferentes formas de disputa; a distribuição espacial dos campos de jogo e os usos sociais que se fizeram deles; a reconfiguração do circuito varzeano; bem como as modernizações dos modos de fazer essa vertente do futebol.

Como se tentou demonstrar ao longo desse percurso, a prática do futebol amador em Belo Horizonte passou por uma série de transformações nas últimas décadas, fruto da capacidade de adaptação da manifestação frente às modificações da realidade urbana. Em que pesem as mudanças, é possível traçar múltiplas continuidades entre o cenário atual e a trajetória da atividade ao longo da história da capital mineira.

Rupturas recentes, assim como as do passado, colocam em risco a continuidade e a sustentabilidade do futebol amador, que vê ameaçada as formas historicamente constituídas para sua sobrevivência. Se nos anos 1970, a especulação imobiliária e o modo indiscriminado como foram realizadas as obras de infraestrutura urbana impactaram enormemente o fenômeno, com a estabilização apenas depois da fixação de sua maior parte em terrenos pertencentes à Prefeitura, as atuais mudanças de perspectiva sobre o uso das propriedades municipais lançam o desafio de construção de um modelo que seja capaz de garantir a continuidade dessa cultura esportiva popular. 

Campo do Pitangui, anos 1960. Acervo Pitangui Esporte Clube.

A partir dessas questões, com vistas à compreensão dos desafios que se impõe à prática e à elaboração de um plano de salvaguarda para o futebol amador no Município de Belo Horizonte, realizaram-se reuniões entre representantes da Fundação Municipal de Cultura e envolvidos e interessados pelo fenômeno, entre julho e setembro de 2018.

Essa série de encontros desdobrou-se na elaboração de um plano de salvaguarda que compõe o dossiê do Inventário do futebol amador em Belo Horizonte e é constituído de oito pontos, a saber:

  1. Preservação dos acervos documentais dos clubes;
  2. Valorização do futebol amador, dos clubes e dos campos pela cidade e pelas comunidades do entorno;
  3. Promoção dos direitos culturais em parceria com os clubes e os campos;
  4. Organização e qualificação das entidades para acesso a recursos públicos;
  5. Melhoria da articulação com o poder público e os clubes;
  6. Isenção fiscal de campos dedicados ao futebol amador;
  7. Gestão sustentável dos campos;
  8. Preservação dos espaços do futebol amador.

Apesar de toda a pressão exercida pela urbanização de Belo Horizonte e a busca incessante por novas áreas de exploração fundiária, os campos de várzea persistem na paisagem dos bairros periféricos da capital mineira. Muitas vezes invisível aos menos atentos, a presença dessa prática povoa o cotidiano da cidade. Basta observar a quantidade de pessoas que circulam pelas ruas ostentando as camisas dos clubes. Uniformes esportivos, para muitos, desconhecidos representam vínculos de pertencimento e orgulho comunitário.

Diversidade de modelos de camisas entre torcedores do Roma, 2016. Foto: Ricardo Laf.

Às terças-feiras, o público do futebol amador dirige-se às bancas, em busca do jornal mais popular da cidade, no qual estão estampadas as notícias recentes da prática, com os resultados de jogos e novidades sobre os próximos campeonatos. A informação não circula apenas por meio da mídia impressa; programas de rádio, páginas de internet, listas de whatsapp divulgam as novidades da várzea local.

Quando se fala do futebol amador, refere-se a uma atividade viva, com inúmeras interações com as comunidades das áreas periféricas. Ali, são os campos um dos poucos espaços de encontro e lazer dessas populações. Lugares de sociabilidade aos fins de semana, onde, enquanto um grupo de aficionados absorve-se pelo jogo que transcorre em campo, outros tantos conversam sobre amenidades, atualizam-se das novidades locais, acompanham os filhos em atividades ao ar livre, comem e bebem nos bares que se espalham pelo entorno.

Bar sede do Roma Esporte Clube, 2016. Foto: Ricardo Laf.

Campos de várzea não mobilizam apenas os envolvidos com o futebol, são espaços dinâmicos. Sua criação e permanência em contextos de ocupações que se desenvolveram de forma irregular, onde não foram criadas praças ou outras áreas de convivência pública, demonstram a significação que possuem para aqueles grupos sociais.

Esvaziar o futebol amador e seus campos desse sentido cultural ampliado é perder de vista outras possibilidades de produção do espaço urbano, outras apropriações possíveis para a prática esportiva, as quais se distanciam de sua mercantilização e espetacularização, por um lado, e de sua percepção exclusiva como motor de promoção de saúde e cuidado com o corpo, por outro. Ao lado desses discursos prevalentes sobre os significados da atividade atlética, outros olhares são construídos cotidianamente, articulados à sociabilidade, ao prazer do jogo desinteressado, à busca do sucesso e da afirmação do orgulho comunitário.

A percepção da prática como fenômeno ampliado, por meio de seu registro como patrimônio cultural de natureza imaterial, permitirá o reposicionamento de sua compreensão, especialmente, pelo poder público municipal. Reconhecer as singularidades dessa manifestação, bem como sua amplitude na própria constituição da experiência urbana de uma parcela considerável da população de Belo Horizonte, permite a formulação de ações mais adequadas para a sua continuidade na capital mineira.

Valorizar e preservar o futebol amador no Município de Belo Horizonte é garantir a continuidade de uma história que marcou boa parte da formação de seus bairros, especialmente os mais periféricos. É dar visibilidade e perspectiva para uma cultura esportiva popular que se reinventa junto com a cidade e que atualiza os laços de pertencimento das populações com seus territórios e suas comunidades.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. Propostas para o reconhecimento da várzea como patrimônio. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 59, 2020.
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