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Qual é a função social do futebol no meio de uma pandemia?

Victor de Leonardo Figols 26 de março de 2021

O futebol não deveria ter voltado, mas voltou. É claro que foi uma pressão enorme da televisão e dos patrocinadores, de um lado, e do outro, a pressão dos próprios clubes em garantir o filão da televisão em um momento em que as economias dos clubes iam para o ralo sem a renda do público nos estádios. Nós sabemos porque voltou e como voltou, então, eu não vou gastar mais linhas falando sobre isso de novo. Deixo o link de um texto de junho de 2020.

Chegamos em 2021 ainda disputando o Campeonato Brasileiro e a Copa do Brasil (e eu nem vou falar da bizarrice que foi a final da Libertadores no Maracanã com público no meio da pandemia), e a sensação segue a mesma do ano passado: o futebol precisa parar. Os jogos não deveriam estar acontecendo, quando os casos de infeção e as mortes são piores do que março do ano passado. Ainda mais agora com variantes desconhecidas do vírus, em pleno colapso dos hospitais, com um Ministro da Saúde omisso e um genocida no poder.

Após um ano de pandemia no Brasil, o país está batendo recordes de mortes diárias por Covid-19. Enquanto o mundo inteiro registra baixas, estamos na contramão, fazendo – rigorosamente – tudo que não é recomendado pelos especialistas e pela OMS. Nas últimas duas semanas, o Brasil é o país que registra mais mortes diárias por Covid-19 no mundo.

Do título brasileiro do Flamengo naquela quinta-feira (25/02), até o domingo seguinte (01/03), quando Palmeiras e Grêmio se enfrentaram pelo primeiro jogo da final da Copa do Brasil, o número de mortes diárias passou de 1500, e só vem crescendo desde então. O Brasil vem enterrando quase 10 mil pessoas por semana, e desde o começo da pandemia, já são quase 300 mil vidas perdidas. A comparação é mórbida, mas ilustrativa, o país já enterrou gente suficiente para encher Maracanã (78.838), Morumbi (77.190), Mané Garrincha (72.788), Mineirão (61.846), e quase meia Arena do Grêmio (30.270), os cinco maiores estádios do Brasil. E a perspectiva é desoladora: encheremos muitos mais estádios.

No momento em que eu escrevo esse texto morreram mais de 3 mil pessoas nas últimas 24 horas, e parece que o futebol está alheio a isso. Em meio à segunda onda – aliás, não sei nem se saímos da primeira, mas a situação está muito mais grave do que a antes – as partidas seguem acontecendo como se nada estivesse acontecendo. Times nacionais viajando pela América do Sul para jogar a Libertadores: o Santos até a Venezuela e o Grêmio no Peru. Enquanto isso, clubes nacionais se deslocam pelo país para jogar a Copa do Brasil, como, por exemplo, o Corinthians, que saiu de São Paulo (um Estado que está na fase vermelha há pelo menos uma semana, e com um sistema de saúde já colapsado) e foi a Pernambuco, enfrentar o Salgueiro (no dia seguinte após o jogo, o Estado nordestino aumentou ainda mais as restrições de deslocamento de pessoas para conter o avanço da pandemia).

Parece que algumas poucas pessoas ligadas ao futebol estão atentas à grave situação que o país vive hoje. O treinador do América-MG, o Lisca (que de doido não tem nada) disse com todas as letras que o futebol precisava parar, e que é uma insensatez realizar os jogos da Copa do Brasil em meio ao caos que vivemos hoje.

 

 
 
 
 
 
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E mais do que isso, que os clubes das primeiras divisões, as federações e a CBF precisam criar mecanismos para ajudar os clubes das divisões inferiores, e principalmente, os jogadores que foram diretamente afetados pela pandemia.

Não bastasse isso, a Federação Paulista está brigando na justiça para manter o campeonato, e pior, querendo levar os jogos para outros Estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, tudo com aval dos clubes paulistas. Aliás, com as restrições dos jogos no Estado de São Paulo, a cidade de Volta Redonda (no Rio de Janeiro) receberá pelo menos duas partidas do Campeonato Paulista, e em troca, a FPF está oferecendo 10 leitos de UTI na cidade. E essa notícia saiu no mesmo dia em que o Estado de São Paulo registrou mais de 1 mil mortes nas últimas 24h.

E é justamente nesse momento crítico que os clubes precisam assumir a sua responsabilidade social, e atuar para evitar mais contaminação, mais internações e mais mortes. Aliás, é sempre bom lembrar, que essa responsabilidade social consta na maioria dos estatutos dos clubes brasileiros. E quando eu digo em responsabilidade social, não estou me referindo ao entretenimento e diversão que o futebol pode proporcionar, ou como disse o técnico Renato Gaúcho: “o futebol está fazendo um favor para o povo”.

Campeonato Carioca 2020
A volta do Campeonato Carioca (junho de 2020) – Autor: Ribs

A gente precisa parar de pensar que futebol só serve para divertir e entreter, ou como pensam os governantes, para alienar o povo, como pensam os dirigentes, apenas como negócio. O futebol precisa ser mais do que isso. O futebol é mais do que isso.

O esporte mais popular do país tem um papel social e cívico importante em nossa sociedade, ainda mais agora em que vivemos uma das maiores crises sanitárias – e humanitárias – do último século. E quando eu estou falando de responsabilidade social dos clubes, estou me referindo a assumir um papel onde o Estado é negligente. Em um momento em que um genocida que ocupa a cadeira de presidente e promove, de maneira deliberada, a propagação do vírus e a morte, os clubes precisam entrar em ação.

É o momento de deixar de lado o futebol e resguardar as vidas de todos os funcionários que trabalham direta ou indiretamente com o futebol, além de todos os familiares. O futebol precisa parar, porque além dos jogadores, há inúmeros profissionais que arriscam a suas vidas a cada partida de futebol, a cada treino. Como disse o médico Miguel Nicolelis em entrevista para a SporTV: “o futebol deveria estar ajudando a combater a pandemia, não gerando riscos”.

É o momento de instruir a sua torcida sobre os riscos de aglomeração na chegada do ônibus ao estádio, ou na concentração do hotel, ou em qualquer ambiente. E sabe por que isso é importante? Porque o maior patrimônio de um clube de futebol é a sua torcida, e o vírus também está matando torcedores. Deixar que a torcida morra – seja de covid ou de qualquer outra coisa – é matar o futebol aos poucos. O futebol é do povo, e o povo está morrendo.

Alguns exemplos práticos dessa responsabilidade social podiam ser vistos, por exemplo, na comunicação que o São Paulo adotou desde o começo da pandemia. O clube da capital paulista – que assume em seu estatuto que tem uma responsabilidade social a zelar – adotou uma postura de informar a torcida dos riscos do vírus, instruindo como higienizar as mãos, ou como usar máscara de forma correta, a fim de evitar lugares com muita gente. E quando o governo federal passou a ocultar os dados oficiais sobre os infectados e vítimas da Covid-19, o clube criou boletins oficiais em suas redes, informando aquilo que deveria ser o papel do Estado. O São Paulo ainda abriu as suas instalações para o tratamento de infectados não-graves. E quando a vacina finalmente chegou, o clube entrou em campo com os dizeres  #VacinaFC no lugar do patrocinador, além de abrir – por mais de uma vez – as instalações do Estádio do Morumbi para ser um dos pontos de vacinação na cidade de São Paulo.

 
 
 
 
 
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Claro que combater o negacionismo gerou “problemas” para o clube, que passou a ser atacado por bolsonaristas, e por toda uma sorte de pessoas que não acredita na letalidade do vírus, ou na eficácia da vacina, como se isso fosse uma questão de crença. É importante pontuar também que, a nova diretoria do São Paulo parece bem menos comprometida em combater a propagação do vírus, ou até mesmo criar ações mais enfáticas para informar a torcida. Aliás, o presidente do clube foi um dos que votou contra a paralisação do Campeonato Paulista, após o Estado entrar na fase vermelha.

Outros clubes fizeram ações muito semelhantes, como o Bahia, que desde muito antes da pandemia tem como uma de suas principais pautas o combate ao racismo. Diante desse compromisso de responsabilidade social – que consta no estatuto da maioria dos clubes brasileiros, é bom reforçar isso – as ações para combater o vírus precisam ser mais incisivas, principalmente onde o Estado vem sendo ausente.

O esporte precisa parar, e mais do que isso, atender a sua comunidade. As Federações, e principalmente os clubes, precisam assumir essa responsabilidade, e pedir a suspensão dos campeonatos.  É preciso lembrar que um clube é feito de sua comunidade, e que, portanto, precisa ouvi-la e atendê-la. O momento é de luto, de dor e sofrimento, mas também, de evitar a propagação do vírus e o colapso (ainda maior) do sistema de saúde. É um momento de respeitar vidas. É o momento do futebol parar, e usar a estrutura dos clubes para atender a população.

* * *

Mas de que adianta escrever tudo isso quando os clubes se omitem diante da CBF na discussão sobre a paralisação das competições?

 

Referências

Aumento de mortes coloca Brasil na contramão da pandemia no mundo

Futebol ignora auge da pandemia e campeonatos continuam sob protestos de médicos e treinadores: “A covid-19 é um rival que mata”

Estatuto do São Paulo Futebol Clube

FPF negocia 10 leitos de UTI com prefeito de Volta Redonda em troca de aval para jogo do Palmeiras

CBF quer continuidade do futebol, diz que TV Globo também é a favor e dispara para os clubes: ‘Vocês estão fodidos se não tiver (campeonato)’

São Paulo registra 1.021 mortos por Covid-19 em 24 horas

Médico Miguel Nicolelis defende paralisação: “Futebol deveria estar ajudando a combater a pandemia, não gerando riscos”

Lista dos maiores estádios de futebol do Brasil

 

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Qual é a função social do futebol no meio de uma pandemia?. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 54, 2021.
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