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Qual a relação entre futebol e linguística?

Luciane Corrêa Ferreira 21 de setembro de 2015

Quem acha que essa relação é fruto da mera imaginação de lingüistas vai levar um ‘cartão vermelho’, só para mencionar uma expressão freqüentemente usada na linguagem cotidiana que foi tomada emprestada do domínio experiencial do futebol. E essas são muitas: ‘escanteio’, ‘bola fora/ bola dentro’, ‘gol de placa’, ‘na trave’, e assim por diante, usadas para falar de relações amorosas, ganhos na empresa e erros e acertos de todo tipo. O português brasileiro (PB) é repleto de expressões motivadas pela experiência cotidiana dos brasileiros com o futebol. Tais expressões, geralmente metáforas, são tomadas emprestadas do futebol para se falar de política, religião, arte. Um exemplo disso é como políticos se apropriam da linguagem do futebol para, por exemplo, explicar o governo. Veja as expressões sobre futebol usadas pelo ex-presidente Lula para falar sobre a então candidata à Presidência:

(1)

“Eleger a Dilma significa dar continuidade para continuar fazendo as coisas”, discursou. Fazendo referência à presença do técnico de futebol Wanderley Luxemburgo, que é pré-candidato ao Senado por Tocantins, disse que a candidata do PT sabe montar uma equipe. O presidente comentou que, dentro do governo, é preciso montar os ministérios de uma maneira que os projetos do governo possam andar. “Como grande técnico, o Luxemburgo pode dar palpite. Quem vai ser o lateral direito, o lateral esquerdo, quem vai ficar na reserva, até quem vai ficar na reserva.” (Coelho, 2010)

Todos lembram da atitude do político Eduardo Suplicy ao dar um cartão vermelho literalmente ao presidente do Senado José Sarney.

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O senador Eduardo Suplicy mostra, em plenário, um cartão vermelho, dirigido simbolicamente ao presidente do Senado, José Sarney, pedindo seu afastamento. Foto: Wilson Dias – Agência Brasil.

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No caso, o Suplicy lançou mão de ironia, utilizando o cartão vermelho para pedir a saída de Sarney do Senado. Tratou-se de uma atitude criativa, na verdade uma metáfora gestual, com um grande impacto no público, já que todo mundo entendeu imediatamente qual era a sua intenção. É sabido que o ex-primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi lançou mão da linguagem do futebol na sua campanha política ao se aproximar dos eleitores e com isso vencer as eleições na Itália. Portanto, utilizar o futebol para se falar de política, a fim de se aproximar do público e dos eleitores é um recurso comum adotado por políticos, tanto no Brasil como no exterior em países que têm uma cultura do futebol.

Entretanto, futebol é guerra, e especialmente a imprensa fala sobre futebol utilizando expressões ligadas a essa experiência. Vejamos alguns exemplos:

(3) O confronto com o Botafogo, na rodada passada, expôs ainda mais a fragilidade do Coelho,(…) (Estado de Minas,16.08.2011, p.3)

(4) Já o Cruzeiro tem muitos jogadores com larga experiência no duelo, (…) (E.M., 26.08.2011, p.4)

As torcidas dos times de futebol freqüentemente usam nomes ligados ao domínio de guerra ou crime, como ‘Máfia Azul’, uma torcida organizada do Cruzeiro, ‘Pavilhão 9’, do Corinthians, e ‘Exército Gremista’, do Grêmio:

(5) exército gremista

A religiosidade do povo brasileiro se reflete no discurso sobre o futebol, os times têm um santo padroeiro, por exemplo, o santo padroeiro do Corinthians é o São Jorge, do Flamengo é o São Judas Tadeu que, inclusive, na imagem a seguir veste o ‘manto sagrado’, termo usado freqüentemente para designar a camisa de um time:

(6) sajudas-flamengo

Tite faz sua oração antes da partida contra o rival Palmeiras. Foto: Daniel Augusto Jr. - Ag. Corinthians.
Tite faz sua oração antes da partida contra o rival Palmeiras. Foto: Daniel Augusto Jr. – Ag. Corinthians.

Os torcedores e os jogadores seguem vários rituais católicos, de religiões afro-brasileiras ou rituais sem motivação religiosa com o objetivo de apoiar o seu time do coração. Por exemplo, é comum ver os jogadores brasileiros fazer o sinal da cruz antes de entrar em campo ou bater um pênalti. Fala-se em ‘ter no time’, uma metáfora de religião. Tal religiosidade se reflete nas práticas dos torcedores de pagar promessas quando seu time ganha:

Torcedora reza durante a partida entre Brasil e Chile, válida pelas oitavas de final da Copa do Mundo 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

(7) No filme Fiel, torcedores do Corinthians descrevem seus rituais, como usar o mesmo brinco para assistir às partidas do time. Tal prática não se restringe ao povo brasileiro. Em uma propaganda de uma marca de automóveis alemã, feita antes da Copa do Mundo da Fifa na África do Sul em 2010, um jogador da seleção alemã descreve o seu ritual de só jogar com chuteiras de cor branca. Portanto, futebol é religião, mas também é mágica.

Por fim, fala-se muito de futebol utilizando palavras relacionadas à experiência com arte, como ‘elenco’, ‘estréia’ e ‘inspiração’, como podemos constatar nas frases a seguir, extraídas da imprensa mineira:

(8) Mostrando ter conhecimento do mais tradicional confronto mineiro ele promete buscar inspiração em atacantes como […]        (Estado de Minas, 16.08.2011, p.4)

(9) André Dias, que ainda não estreou, […]       (Estado de Minas, 16.08.2011, p.3)

(10) Elenco já pensa no Vasco. (O Tempo, 2.09. 2011, p.41)

Como vimos, por meio de exemplos da imprensa e imagens, a relação do futebol com a lingüística é norteada pelas experiências dos torcedores com vários fenômenos do cotidiano, como política, religião, arte e guerra, que vão motivar expressões da nossa linguagem cotidiana.

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Luciane Corrêa Ferreira

Possuo graduação em Bacharel em Letras Tradutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em Lingüística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado em Tradução - Universitat Wien, Áustria, doutorado-sanduíche em Psicologia - University of California Santa Cruz (2005 - 2006) e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Sou professora adjunta na Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Minas Gerais,professora do programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PosLin) da FALE/UFMG e professora colaboradora do programa de pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará. Tenho experiência na área de Linguística, ensino de língua estrangeira (Alemão, Inglês e Português como Língua Estrangeira), e atuo principalmente nos seguintes temas: lingüística aplicada, lingüística cognitiva, cognição e tradução. Gremista.

Como citar

FERREIRA, Luciane Corrêa. Qual a relação entre futebol e linguística?. Ludopédio, São Paulo, v. 75, n. 9, 2015.
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