
O esporte, e principalmente o futebol, é uma das atividades mais beneficiadas com a globalização. Não apenas o maciço intercâmbio entre times e atletas, mas os próprios torcedores podem acompanhar em tempo real seus campeonatos favoritos, transmitidos em multiplataformas mundo todo. Além disso, a agenda esportiva é forte motivadora do turismo.
No Museu do Futebol, por exemplo, observamos como cresce a presença de visitantes estrangeiros, especialmente uruguaios, argentinos, chilenos e colombianos, quando há jogos do Campeonato Libertadores da América, por exemplo, na cidade de São Paulo. Durante a Copa do Mundo de 2014, 40% dos visitantes do Museu vieram de outro país.
Na pandemia do novo coronavírus/COVID-19, acompanhamos dia-a-dia os impactos globais impostos pela necessidade do isolamento social. E, com isso, todas as atividades esportivas foram afetadas, inicialmente com jogos sem torcidas, depois com adiamentos e cancelamentos de competições. E dois dos torneios mais tradicionais de futebol foram adiados: a Copa América e a Eurocopa, ambos ocorreriam em junho de 2020 e foram remarcados para 2021.
Mas o futebol, esse esporte que já atravessou mais de um século, já passou por isso outras vezes. E sempre continuou depois. Separamos aqui alguns casos em que a bola parou de rolar, mas retomou com força depois.
Na Europa
Será a primeira vez que a Eurocopa muda de data. Para se ter ideia do quanto é incomum qualquer tipo de alteração nesse torneio, sua a última crise foi durante a Guerra da Bósnia em 1992. A Iugoslávia, após ter sido suspensa pela Organização das Nações Unidas, viu sua seleção ser desclassificada do torneio pela UEFA. A seleção da Dinamarca ocupou a vaga e acabou campeã daquele ano.
As crises mais sérias vividas pelo futebol europeu, no entanto, foram mesmo durante as duas Grandes Guerras, que cancelaram os Jogos Olímpicos de 1916, 1940 e 1944, além das Copas do Mundo de 1942 e 1946. Aliás, curioso ver como o futebol inglês agiu de maneira distinta em cada um dos conflitos.
Na Primeira Guerra Mundial (1914–1918), muitos jogadores foram para o front, por isso o Campeonato Inglês ficou paralisado entre 1915 e 1919. Com o grande contingente de homens nos campos de batalha, as mulheres foram para as fábricas, substituindo a mão de obra masculina e, também, para os gramados. O futebol feminino floresceu na Inglaterra, com direito a torneio próprio, a Challenge Cup, e o time sensação Dick Kerr Ladies F.C. Ao final da Guerra, no entanto, a Football Association (FA) boicotou os times femininos vetando jogos masculinos nos estádios que recebessem jogos de mulheres. Como praticamente todos os principais campos tinham vínculos com times masculinos e estes participavam das competições da FA, nenhum clube quis apoiar o futebol feminino, que praticamente desapareceu até a década de 1970.
Já na Segunda Guerra (1939–1945), o torneio inglês também foi alterado: os clubes foram reorganizados em 10 torneios regionais, nos quais alguns jogadores chegaram a atuar por duas equipes. Tudo fazendo parte do esforço de guerra e pela manutenção da moral dos ingleses. Após o fim da guerra, os resultados foram anulados e o Campeonato Inglês, retomado.
Na América do Sul

A primeira interrupção feita pela Conmebol foi durante o Torneio Pré-Olímpico de 1964, no Peru. Mas, diferente do contexto europeu de guerras entre nações, o motivo desta foi totalmente interno.
A Argentina ganhava da Seleção Peruana por 1 a 0. No finalzinho, o Peru marcou um gol, anulado pelo árbitro. Torcedores invadiram o gramado do Estádio Nacional, e a polícia reagiu com bombas de gás lacrimogênio. O pânico se espalhou pelas abarrotadas arquibancadas e, na confusão, 328 pessoas morreram. O tumulto espalhou-se por Lima, levando o governo a impor lei marcial. Uruguai e Equador desistiram da disputa, enquanto Brasil e Peru disputaram a última vaga para os Jogos Olímpicos, no Maracanã, duas semanas depois.
As epidemias virais do século XXI

A FIFA viveu o pesadelo da gripe em 2003, quando a epidemia de SARS atingiu a China, que estava pronta para receber a 4ª edição da Copa do Mundo feminina. Faltando menos de cinco meses para a competição, a FIFA optou trocar a sede e levar, pela segunda vez consecutiva, o Mundial das mulheres para os Estados Unidos. Mas tomou o devido cuidado de confirmar a China como sede da edição de 2007
Em 2009, o México foi atingido pela epidemia do H1N1 (que entrou para a história como “gripe suína”) e o campeonato nacional ocorreu com portões fechado. Mas, havia clubes mexicanos disputando a Copa Libertadores da América. O Chivas Guadalajara e o San Luís estavam classificados para as oitavas de final. Depois de muitas idas e vindas, a Conmebol propôs jogo único na casa do São Paulo F.C.e do Nacional do Uruguai, os respectivos adversários, visto que esses times não poderia viajar até o México. Os mexicanos preferiram abandonar a competição a se submeterem a essa condição. A reação da Conmebol, contudo, foi surpreendente: classificou os dois times para as oitavas de final da Libertadores de 2010.
Em 2014, a epidemia do vírus Ebola provocou o cancelamento de amistosos e jogos eliminatórios da Copa das Nações Africanas, especialmente em Guiné e Serra Leoa, países com alto índice de infectados.
No Brasil
Ainda não sabemos o quanto o novo coronavírus vai afetar o calendário esportivo nacional. Na nossa história futebolística, a pior crise foi decorrente da gripe espanhola de 1918. A doença matou 50 milhões de pessoas ao redor do mundo, 35 mil só no Rio de Janeiro, cuja população total à época era de pouco mais de 900 mil.
A Liga Metropolitana de Sports Athléticos suspendeu o campeonato carioca por 56 dias, retomando-o no começo de dezembro. O Fluminense foi o vencedor, mas não houve comemoração nas Laranjeiras. Uma das vítimas fatais da gripe espanhola foi o inglês Archibal French, atacante tricolor e campeão post-mortem. Com o título nas mãos o time sequer foi ao último jogo. Além do luto por Archibald, metade do time estava doente.

No país, a gripe espanhola provocou o adiamento da primeira edição do campeonato gaúcho e a paralização do campeonato pernambucano.
E se você que mora em São Paulo tem se surpreendido com as atuais medidas de contenção da COVID-19, saiba que já tivemos cancelamentos mais abruptos….
O Campeonato Paulista de 1918 foi interrompido faltando menos de uma hora para o início dos jogos, em 20 de outubro. Agentes sanitários invadiram os campos de futebol por toda cidade para impedir os jogos e esvaziar os estádios, uma maneira de impedir as aglomerações que facilitavam o contágio. A bronca da Associação Paulista de Sports Athleticos (APEA) ficou por conta do momento escolhido para a interrupção das competições esportivas, isto é, depois que os torcedores compraram ingressos e entraram nos estádios e dos jogadores já estarem em campo…
Assim como a gripe surgiu de repente, ela também desapareceu. Em dezembro o número de infectados e de mortes caiu o suficiente para a APEA retomar o campeonato, com alguns cuidados: os jogos foram disputados em dois tempos de 35 minutos (o normal eram 40) e só os times que tinham chance de título voltaram a campo. O C.A. Paulistano garantiu o título em 19/01 com uma goleada de 7X0 sobre a A.A. das Palmeiras. No elenco campeão estavam Sérgio Pereira, Carlito Aranha e Benedicto Ferreira que sobreviveram à gripe.
Aliás, durante a crise o C.A. Paulistano e o Palestra Itália transformaram suas sedes em hospitais, atendendo as vítimas da gripe, além de, após a crise, terem doado todos os móveis e utensílios à Superintendência dos Hospitais Provisórios. Tradição paulista… em 2020 o Estádio do Pacaembu abrigará 200 leitos para tratamento dos casos menos graves da COVID-19, e outros estádios estão oferecendo suas instalações para ajudar a conter o possível colapso do sistema de saúde do país.

Sabemos que o momento é excepcional e diante de tantas privações, ficar sem nosso futebol diário — seja na TV, na arquibancada ou na rua — é difícil. Mas temos de ficar juntos e em casa até essa crise passar. O futebol, já vimos aqui, superou outras crises e, logo logo, voltará com força total. E tão melhor será se pudermos, nós todos, sairmos mais solidários e altruístas após essa fase!
O que fazer enquanto estiver em casa
Preparamos uma lista de textos, séries e documentários sobre a história do futebol nos contextos que mencionamos no artigo.
Futebol europeu
Primeira Guerra Mundial
Artigo: PEREIRA, Ricardo Costa. O futebol no tempo da Grande Guerra (1914-1918). Revista de História da FLUP, Porto, n. 2, v. 8, 2018, p. 174-196. Acesso em: 23 mar. 2020
Analisa o futebol brasileiro durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), especialmente o impacto que a participação dos jogadores nos serviços militares trouxe aos clubes da época. Se, por um lado, a guerra colocou entraves à evolução deste desporto, por outro, o futebol soube adaptar-se e ajudar as vítimas do conflito através dos jogos de solidariedade.
Guerra dos Bálcãs
Série: The Real Football Factories International — Balcãs. Narração: Danny Dyer. [S. l.]: Bravo: CNN, 2007. 1 vídeo (45 min). Publicado pelo canal Vinicius Basan. Acesso em: 23 mar. 2020.
A série com 14 episódios traça um panorama do Hooliganismo na Europa. No episódio dedicado à Servia e Croácia, repúblicas da antiga Iugoslávia, revelam como a guerra atravessou o futebol local.
Artigo: NARCIZO, Makchwell Coimbra. Dos campos de futebol para os campos de batalha: uma análise da Guerra dos Bálcãs. FuLiA, Belo Horizonte, n. 2, v. 2, mai./ago. 2017, p. 112–126. Acesso em: 20 mar. 2020.
O trabalho aborda a influência do futebol no início e no desenrolar dos conflitos da Guerra dos Balcãs, conhecida na história recente da Europa por sua violência e crueldade.
Futebol brasileiro
Documentário: Como foi o primeiro título da Seleção Brasileira, em 1919. Produção: Jornal O Globo. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 29 maio. 2019. 1 vídeo (33 min). Publicado pelo canal O Globo. Acesso em: 23 mar. 2020.
Conheça mais sobre como era o país no início do século XX, qual a ideia que os brasileiros tinham sobre sua seleção nacional e por que esse campeonato, adiado em 1 ano devido à epidemia de Gripe Espanhola,
Documentário: Almanaque dos esportes: os anos sem Copa e a Copa no Brasil 1950. Produção: Almanaque dos Esportes. [S. l.]: Almanaque dos Esportes, 2014. 1 vídeo (52 min). Publicado pelo canal André Vieira. Acesso em: 23 mar. 2020.
O documentário traça um panorama do futebol brasileiro e sulamericano do final dos anos 1930 até a Copa de 1950 no Brasil. Interessante para compreender o impacto da 2ª Guerra Mundial na volta do Mundial para a América do Sul e o surgimento da rivalidade Brasil x Argentina.
Autoria
Este texto é de autoria da equipe do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol. Agradecimento ao Club Athletico Paulistano pelas imagens.