131.2

Quando a preparação faz a diferença: o “Planejamento México” e a Seleção Brasileira de 1970

No dia 02 de maio de 2020, serão completados 50 anos da chegada da Seleção Brasileira a Guadalajara, primeira estação para a conquista do tricampeonato mundial no México.

Na preparação para a Copa de 1970, a Seleção Brasileira venceu por 3 a 0 o Combinado Irapuato, México, no dia 25 de abril daquele ano. Em Pé: Carlos Alberto, Wilson Piazza, Brito, Clodoaldo, Marco Antonio, Ado. Agachados: Jairzinho, Rivellino, Tostão, Pelé, Paulo Cézar. Foto: Divulgação/CBF.

Introdução: uma preparação à sombra da memória do “futebol arte” e da ditadura

Está sedimentado no senso comum dos entusiastas do futebol, no Brasil e mundo afora, toda a qualidade técnica da Seleção Brasileira de 1970. Porém, menos conhecida é a história da preparação que antecedeu o evento e, consequentemente, a glória em campos mexicanos, em meio a um contexto político conturbado no país.

Nos perguntamos, a título de exemplo, por que a preparação da Seleção Alemã, em 2014, na segunda Copa do Mundo do Brasil, foi tão discutida no seio da imprensa esportiva brasileira, enquanto a preparação do esquadrão de 1970 não recebe a devida atenção na contemporaneidade. Enquanto a primeira foi objeto até mesmo de um livro intitulado 40 dias com a campeã do mundo, do jornalista Gustavo Hofman[i], no qual se destaca o planejamento, a adaptação ao clima e ao povo local, a empatia criada com a camisa “Third” nas cores do Flamengo, intencionalmente ou não, criando um capital simbólico e uma simpatia entre os locais, a segunda ainda é mantida silenciada e obscurecida, apesar de bem documentada. Conforme bem apontam os historiadores Antonio Jorge Gonçalves Soares, Marco Antonio Santoro Salvador e Tiago Lisboa Bartholo, “[o]s jornais, ao esquecerem o processo de racionalização do treinamento de 70, reforçam a imagem que alimentamos sobre ʻnós mesmosʼ do autêntico e puro futebol nacional”.[ii]

Nessa mesma direção, Ronaldo Helal, Antonio Jorge Gonçalves Soares e Hugo Lovisolo, em A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (2001)[iii], Marco Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares, em A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional (2009)[iv], e Lívia Gonçalves Magalhães, em Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (2013)[v], já apontaram para o curioso silenciamento da crítica sobre o planejamento técnico daquela Seleção, onde exalta-se a técnica, o improviso tático, a genialidade, a raça e o entrosamento em detrimento do “trabalho duro” de preparação física que antes fora fundamental. Segundo Marco Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares, “[a] euforia da conquista do tricampeonato mundial em 1970 obscureceu o discurso do treinamento e da dedicação, presentes durante a competição, em favor da afirmação das qualidades do futebol e do povo no Brasil”.[vi]

Sobre esse ponto de vista, iniciamos a nossa investigação sobre o tema recorrendo a matérias publicadas no Jornal dos Sports e a crônicas de Nelson Rodrigues, para obter a visão da imprensa esportiva à época, além de consultarmos obras acadêmicas consagradas sobre aquela Copa e, por fim, (auto)biografias de importantes protagonistas daquela memorável equipe – Pelé, Tostão e Rivellino –, a fim de encontrarmos pistas sobre a preparação da Seleção tricampeã do mundo em 1970, tema menos conhecido do público em geral.

A necessidade da preparação científica após o fracasso na Copa de 1966

Como bem ressaltam Marco Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares,

[r]esgatar o passado pelas páginas amareladas dos jornais possibilita que pensemos os significados que a seleção de 1970 assume em nossa memória coletiva no presente. Os jornais editados durante a Copa de 1970 descrevem o minucioso trabalho da preparação física daquela Seleção que teve como base os conhecimentos científicos produzidos no campo da educação física e da medicina esportiva.[vii]

Para entendermos o surgimento da necessidade da preparação científica, devemos voltar ao contexto da Copa da Inglaterra. Em 1966, após o fracasso colossal (a equipe, pela primeira vez na história, não passara da fase de grupos do torneio) da Seleção Brasileira na Copa do Mundo nas terras da Rainha, num contexto de brigas políticas internas à CBD (Confederação Brasileira de Desportos), convocação numerosa e desorganizada, críticas ao comportamento tático da equipe e em meio ao intenso debate sobre as virtudes do futebol europeu recheado de força, tática, jogo coletivo e preparação física frente ao “futebol-arte” brasileiro e a suas características de improviso, técnica e valorização da individualidade, criou-se no seio da imprensa e da própria administração da CBD, a necessidade de uma modernização geral da equipe e da comissão técnica. Segundo Marco Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares, o fracasso de 1966 exigiu uma “modernização”:

A ideia de que a vitória da “força” predominou sobre a “arte” em 1966 pode ser traduzida como um atraso do futebol nacional em relação às novas tecnologias do treinamento físico e tático […]. Esse argumento foi central na mobilização de atores sociais e instituições no sentido de reestruturar o modelo organizativo do treinamento da Seleção nacional na época.[viii]

Em sua “autobiografia” publicada em 2006, que contou com o auxílio dos “redatores” Orlando Duarte e Alex Bellos, Pelé menciona que, dentre os fatores que o motivaram a suspender a “aposentadoria” da Seleção (anunciada logo após o fracasso de 1966), estava a reestruturação da CBD: “[…] as lições de 1966 tinham sido aprendidas: ele [João Havelange, presidente da CBD] estava trocando toda a comissão técnica.”[ix] Assim, para Pelé, com a parte administrativa resolvida, a Seleção teria tudo para superar as dificuldades dentro e fora de campo: “Depois do desastre de 1966, só perderíamos dessa vez se fôssemos superados por um time melhor, não por falta de preparação ou de ponderação sobre nossas táticas.”[x]

O Planejamento México e os bastidores do caminho para o Tri

No início de fevereiro de 1970, ainda sob o comando do técnico João Saldanha, a Seleção definiu os locais de preparação no México: Guadalajara e Guanajuato. O planejamento foi homologado em reunião com o preparador físico Lamartine Pereira, contando com a participação de Admildo Chirol, Carlos Alberto Parreira e do supervisor Cláudio Coutinho, todos militares e acadêmicos reconhecidos ligados à Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx).[xi]

A equipe brasileira viajaria a terras mexicanas um mês antes do início da competição, que começaria no dia 31 de maio de 1970, tendo como foco a adaptação plena ao clima, ao povo, e às cidades. Inicialmente, a delegação permaneceria cerca de sete dias em Guadalajara (de 02 a 09 de maio de 1970), onde disputaria a maioria de seus jogos naquela Copa e, posteriormente, vinte e um dias em Guanajuato (de 09 a 30 de maio), cidade próxima, com o foco total na “aclimatação”, termo com o qual designavam a adaptação à altitude. Guanajuato fica a cerca de 2.000 metros de altitude, fator decisivo no planejamento da Seleção, como evidencia o seguinte trecho do Jornal dos Sports, extraído da matéria “Guanajuato já está reservado até maio”:[xii]

Jornal dos Sports, n. 12833, 14 fev. 1970, p.5.

Assim, a Seleção teria um local para realizar amistosos em uma altitude intermediária, maior que a cidade de Guadalajara e menor que a da cidade palco da grande final, a Cidade do México. Em entrevistas ao mesmo periódico, Saldanha cita a conversa com técnicos que conheciam a altitude e também dissertava sobre o método de preparação física utilizado, o famoso teste de Cooper, avançado recurso de treinamento para a época, que fora implantado pela comissão canarinho.[xiii]

Dessa forma, a disputa pela conquista definitiva da Taça Jules Rimet, que ficaria então com o país que a conquistasse pela terceira vez, começou bem cedo e com a reclamação de dirigentes dos clubes brasileiros, justamente pela Seleção retirar os craques dos elencos precocemente, impedindo a aquisição de renda proporcionada pelos chamados “amistosos caça-níqueis”, ou seja, jogos não oficiais, em sequência temporal curta, onde os clubes arrecadavam com a bilheteria à revelia do tempo mínimo necessário para a recuperação física adequada dos atletas de um jogo para o outro. Mesmo com os embates e pressões, João Saldanha não cedeu, pois preferiu preservar o cronograma da preparação e salvaguardar a condição física dos atletas.

Por sua vez, a expectativa em torno da conquista brasileira era grande. Além disso, a disputa seria particularmente acirrada com a Itália e o Uruguai, os outros dois selecionados que poderiam almejar a conquista eterna do troféu, justamente, assim como o Brasil, por ostentarem duas conquistas mundiais cada.

Ainda em fevereiro de 1970, o Planejamento México já estava traçado, faltando detalhes para sua conclusão, conforme a matéria “Programa no México sai logo”, publicada no Jornal dos Sports.[xiv] Ainda na primeira etapa de preparação, na cidade de Guadalajara, a Seleção Brasileira realizaria um jogo amistoso contra a equipe do Guadalajara, então campeão mexicano da temporada anterior, no dia 06 de maio de 1970. No dia 09 de maio, a delegação viajaria para a cidade de Guanajuato e, por fim, realizaria mais três amistosos, em Leon e Irapuato, cidades próximas à última base de concentração, nos dias 13, 17 e 24 de maio contra equipes locais.

Sai Saldanha, entra Zagallo, e o Planejamento México segue firme

Em meio a toda preparação, ocorreu um baque: João Saldanha caiu do comando técnico da Seleção no dia 18 de março de 1970, após uma série de indisposições, atitudes temerárias e resultados duvidosos em amistosos, embora tenha tido um ótimo desempenho nas Eliminatórias. Além disso, os elogios do General Emílio Garrastazu Médici, presidente do país no regime ditatorial, ao jogador Dario, do Clube Atlético Mineiro, e a pressão da imprensa quanto a um posicionamento de Saldanha a respeito, nas vésperas da convocação, geraram uma polêmica declaração do treinador:

O Brasil tem 80 ou 90 milhões de torcedores, de gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, somos gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time. Você tá vendo que nós nos entendemos muito bem.[xv] (grifos nossos)

Tal frase, assim como a posterior convocação de Dario pelo técnico substituto Mário Jorge Lobo Zagallo, além das conhecidas ligações de Saldanha com a esquerda política brasileira deram subsídio para uma série de teorias conspiratórias envolvendo a conturbada relação de Saldanha com o regime militar. O próprio Saldanha, posteriormente, endossou o discurso de que sua demissão fora um ato político, diretamente ligado aos altos escalões do regime.[xvi]

Por outro lado, atletas como Gérson, dirigentes como Havelange e acadêmicos como Lívia Gonçalves Magalhães[xvii]  rejeitam a tese de perseguição política, seja pela série de trapalhadas que Saldanha protagonizara às vésperas da crise que culminou com sua demissão (briga pública com Yustrich, então técnico do Flamengo, amplamente criticada pela imprensa, declaração de que Pelé poderia não ter condições de jogar pois tinha problema de visão etc.), seja pelos resultados ruins nos jogos amistosos precedentes ao torneio, como as derrotas para a Argentina e para a equipe do Atlético Mineiro, além do empate amargo com o modesto Bangu. Outro fato que vai ao encontro da tese de que sua demissão não foi um ato político é a sua inexplicável e misteriosa contratação para técnico, pelos agentes ligados ao regime militar, mesmo sabendo do notório e público envolvimento prévio de João Saldanha com o Partido Comunista e seu óbvio descontentamento com a ditadura militar vigente à época.

No dia seguinte ao da demissão de Saldanha, Nelson Rodrigues, na crônica intitulada “Guerra suja, tão suja”, publicada no jornal O Globo, criticou o papel da imprensa esportiva que, segundo ele, sempre torceu contra Saldanha, à revelia do povo:

Mas cada notícia sobre Saldanha era, normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado terrorismo contra o técnico. Isso, em toda a imprensa, em todo o rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.[xviii] 

Porém, autores como Euclides de Freitas Couto cita a pesquisa realizada pelo IBOPE dias após a demissão de Saldanha, veiculada na página 5 do Jornal dos Sports em 22 de março de 1970, na qual aferia já na manchete “O povo está com Zagallo” a suposta aprovação popular sobre a troca de comando na Seleção:[xix]

Jornal dos Sports, n. 12869, 22 mar. 1970, p.5.

Segundo Euclides de Freitas Couto, a pesquisa fora “encomendada” pela AERP (Agência Especial de Relações Públicas), órgão de publicidade oficial do regime, como forma de legitimar e camuflar os “verdadeiros motivos” (políticos) da troca de comando.[xx]O historiador ainda cita as entrevistas de Saldanha concedidas a alguns periódicos franceses antes de sua demissão, que estão reproduzidas na biografia de João Saldanha escrita por João Máximo, falando sobre os abusos do regime, em uma excursão pela Europa. Tais entrevistas ilustrariam o suposto descontentamento do regime e a demissão posterior.[xxi]

Porém, em sua Tese de Doutorado intitulada Com a taça nas mãos, Lívia Gonçalves Magalhães, baseada em documentação do Arquivo Nacional, Fundo SNI Informação nº 70/DSI/MJ, de 08 de maio de 1970, argumenta que “[…] o governo já tinha conhecimento de sua ligação com o Partido Comunista quando o indicou para técnico, não sendo razoável apontar tal fundamento como justificativa para o posterior desligamento do técnico”.[xxii]

Apesar de todas as polêmicas que envolvem o caso Saldanha, Tostão atesta com sobriedade em sua mais recente obra: “As versões [sobre a demissão de Saldanha] costumam ser muito mais interessantes do que os fatos em si”.[xxiii] Para Tostão, a demissão de Saldanha resultara de um conjunto de motivos políticos e contextuais:

Por que Saldanha saiu? Não sei. Sabia que ele estava bebendo muito nos momentos de folga, falava de temas políticos, era contrário ao regime militar. Disse que Pelé estava com sérios problemas visuais! Que Médici escalava ministros e ele escalava time […]. Saldanha, com sua ideologia, comunista, não queria ser usado, junto com a seleção brasileira, pela ditadura. Daí começou a arrumar problemas, consciente ou não, para sair e não compactuar com o regime.[xxiv]

Para Pelé, que afirma ter tido um bom relacionamento com Saldanha, os episódios de destempero do treinador foram os principais motivos de sua saída. Além disso, definiu Zagallo como “um homem sério, honesto e trabalhador”,[xxv] o que denota a aprovação do principal craque da equipe quanto à mudança de comando na Seleção. 

Sobre a modernização dos métodos de preparo, além de reforçar a necessidade de aprimoramento após do fracasso de 1966, o Rei não deixou de elogiar o Planejamento México com as seguintes palavras: “A preparação foi muito profissional […]. O suporte científico era o melhor possível […].”[xxvi]

Desse modo, mesmo com a troca de comando, o Planejamento México permaneceu inalterado. Seguindo o cronograma, no dia 08 de abril de 1970, o Jornal dos Sports documentou os ajustes finais para a viagem ao México, na matéria “Preparação vai a debate”.[xxvii] João Havelange reuniu a nova comissão técnica, os preparadores físicos, a equipe médica e a equipe administrativa para um balanço geral a respeito da preparação, onde cada setor apresentou seus relatórios.

Após a reunião de balanço, Zagallo fez sua estreia no dia 12 de abril de 1970, no Estádio do Maracanã, diante da modesta seleção do Paraguai, que resultou em um empate por 0 x 0. Uma semana depois, a Seleção venceu o selecionado mineiro por 3 x 1, no Estádio do Mineirão. No dia 26 de abril, no Estádio do Morumbi, mais um empate sem gols contra a seleção da Bulgária deixou a torcida preocupada. No esteio do clima pré-Copa, a despedida da Seleção se deu no dia 29 de abril de 1970, contra a seleção da Áustria. Sob a apreensão da torcida e da imprensa, o Brasil venceu o último amistoso em solo brasileiro pelo placar mínimo de 1 x 0, o que aliviou a tensão do grupo e tranquilizou o embarque para o México.

Finalmente, no dia 02 de maio de 1970, o escrete canarinho partiu para as terras altas mexicanas com confiança, como atesta o depoimento do preparador físico Admildo Chirol, reforçando o bom preparo de seus comandados e o mérito do Planejamento México:[xxviii]

Jornal dos Sports, n. 12910, 02 maio 1970, p. 5.

O comandante Zagallo não poupou o tom bélico em entrevista concedida no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, antes do embarque, na matéria “Zagalo: ‘Vamos à guerra armados’”:[xxix]

Jornal dos Sports , n. 12910, 02 maio 1970, p. 5.

No curioso trecho acima, Zagallo reforça o estereótipo do “futebol força” versus “futebol arte”, apontando para a principal qualidade do jogador brasileiro: a técnica diferenciada.

No dia 06 de maio de 1970, a Seleção enfrentou o campeão mexicano à época, o Guadalajara. O jogo treino terminou com a vitória do esquadrão de ouro por 3 x 0, dando uma amostra de que a adaptação à altitude não seria problema. Naquela partida, destacou-se o gol de falta magistral de Rivellino, fazendo jus à fama de “patada atômica”.

Em seguida, no dia 08 de maio de 1970, a delegação brasileira embarcou para Guanajuato, como destaca a matéria abaixo, intitulada “Feras vão a local mais alto”:[xxx]

Jornal dos Sports, n. 12916, 08 maio 1970, p. 3.

Assim, enquanto algumas seleções ainda estavam em seus países e outras treinavam nas altitudes peruana e colombiana, o Brasil já estava em solo mexicano se adaptando a uma altitude superior à de Guadalajara (cidade em que a Seleção realizaria cinco dos seis jogos naquela vitoriosa campanha). A receita para a preparação em Guanajuato: treinos leves nos primeiros quatro dias e mais pesados, sucessivamente, a partir do quinto dia. No relatório publicado pela FIFA, há informações precisas fornecidas pela CBD à entidade máxima do futebol, sobre a fase da preparação brasileira na altitude mexicana:

A aclimatação ocorrerá em graus, um período inicial de quatro semanas em Guadalajara (1.680 metros) e um período de três semanas em Guanajuato (2.050 metros), para que a adaptação possa ser alcançada caso cheguemos à final na Cidade do México (2.240 metros). É preciso enfatizar que a adaptação fisiológica adquirida será mantida por 20 a 30 dias, e assim alcançaremos nosso objetivo. Além disso, ao retornar a Guadalajara, a equipe deve estar em excelente condição física, pois isso foi adquirido em grandes altitudes.[xxxi] (tradução própria)

O planejamento detalhado da Seleção Brasileira, datado de 12 de fevereiro de 1970, incluía, além da logística privilegiada, treinamentos personalizados para cada atleta e detalhes preparatórios, que, hoje, somos plenamente acostumados a lidar, com equipes de análise de desempenho e diversos recursos tecnológicos. Porém, para a década de 1970, tratava-se de um avanço sem precedentes no esporte de alto rendimento. De acordo com Marco Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares,

[n]o estudo sobre a altitude, o planejamento analisava a questão dos fusos horários: o tipo de treinamento a ser utilizado em cada etapa do processo de preparação; o uso da câmara de baixa pressão como suporte para a simulação dos efeitos da altitude em cada atleta individualmente; a alimentação; as condições climáticas do local; a umidade do ar; os efeitos do stress; o horário de treinamento físico, técnico e tático equivalente ao horário dos jogos da competição; os resultados da massagem muscular em altitude e o preparo psicológico dos atletas, com o objetivo de atingir o máximo da capacidade atlética dos jogadores da Seleção nas vésperas e durante o evento.[xxxii]

Contudo, a parte tática gerava uma polêmica pública que rondava a equipe. Zagallo, que, antes da viagem dispensara os talentosíssimos meias Zé Carlos e Dirceu Lopes, ambos jogadores do Cruzeiro, preferindo em seus lugares dois atacantes, Roberto e Dario, o primeiro do Botafogo e o segundo do Atlético Mineiro (jogador envolvido na polêmica entre Médici e Saldanha), era questionado sobre a escalação ou não de Tostão. Este último, craque aclamado pela mídia e por toda a torcida, recuperara-se de uma lesão no olho nas vésperas daquela Copa.

Zagallo, inicialmente, dissera em entrevista coletiva que preferia um homem de referência à frente, um centroavante ao estilo mais clássico, e que, por esse motivo e por considerar que Tostão era o reserva natural do ponta-de-lança Pelé, deixou a entender que não escalaria “a fera de ouro” (apelido de Tostão que deu origem a um filme com o mesmo título). Porém, a qualidade técnica de Tostão fez com que Zagallo mudasse de ideia após alguns amistosos. Tostão jogou à frente, fazendo uma espécie de falso camisa 9, voltando para armar o jogo e dando mais opções para os craques do meio-campo lendário da Seleção de 1970: Pelé, Rivellino, Gérson e Clodoaldo. Além do teste bem sucedido nos gramados, já em Guadalajara, os principais jogadores da equipe, mais próximos a Zagallo, aprovaram e “bancaram” a escalação do craque mineiro, conforme trecho da matéria publicada no Jornal dos Sports em 09 de maio de 1970, intitulada “Tostão divide opiniões sobre a escalação”:[xxxiii]

Jornal dos Sports, n. 12918, 10 maio 1970, p. 6.

Dessa forma, o futebol, tido como uma das principais manifestações culturais do país, e a Seleção Brasileira tornaram-se, naquele contexto, objetos de um projeto que visava à construção de uma imagem triunfal, como um decalque da ditadura que o promovia. Como um dos fatores para que tal imagem pudesse, ao fim e ao cabo, ser erigida, foi a preparação física e técnica, baseada em métodos científicos. Os seis jogos disputados naquela Copa, nas condições de altitude, atestariam a eficácia de tal preparação.

Considerações finais

Os Anos de Chumbo confundiram-se e misturaram-se com o auge dos Anos de Ouro da Seleção Brasileira, num processo complexo, longe da tensão maniqueísta e redutora dos prós, contras e indiferentes ao regime militar, ou dos que torceram, não torceram ou apenas torceram de forma camuflada pela Seleção.

Por mais difícil que seja para a crítica acadêmica e jornalística, deve-se reconhecer o papel fundamental da comissão técnica militarizada no planejamento e no preparo físico da Seleção, que, segundo analistas atentos, se valia muito do condicionamento físico para se sobressair perante os adversários no segundo tempo das partidas daquele mundial.

Após cinquenta anos distantes no tempo, pode-se constatar que o sucesso da Seleção de 1970 se deve a esta conjunção curiosa e contrastante de arte (no esplendor técnico dos craques que a compunham), à expertise tática dos comandantes (desde toda a convocação base de João Saldanha aos ajustes pontuais e valorosos do “velho lobo” Zagallo), à boa administração (Havelange, na chefia da CBD, que corrigiu os erros que culminaram no fracasso de 1966 e recuperou os acertos de 1958 e 1962) e ao planejamento militar (de logística e preparação física, principalmente). Conforme ressalta Carlos Eduardo Sarmento,[xxxiv] “[a] vantagem física, aliada à técnica excepcional dos jogadores, mostraria mais uma vez que a antiga receita de Havelange de criteriosa programação e forte preparação física da equipe ainda se mostrava eficaz.”

O produto de tudo isso foi um dos maiores times que o mundo já viu, culminando na conquista perene da eterna e lendária Taça Jules Rimet. E, como bem definiu Bernardo Borges Buarque de Hollanda, o debate interpretativo sobre o tema tomou dois caminhos:

Para uns, o futebol fazia as vezes de “ópio do povo” e servia, afinal, para desviar o foco da população para os assuntos ditos sérios, a política e a economia. No contexto autoritário, tratava-se de ofuscar temas subterrâneos, indesejados, como os abusos e arbítrios que vinham sendo cometidos como política de Estado pela ditadura. Para outros, a relação mecânica entre jogo de futebol e alienação das massas, ou válvula de escape, não deveria ser considerada de modo tão elementar, pois havia muitos outros fatores intervenientes. O desenvolvimento acelerado da economia, mediante altos índices do PIB, o afluxo de capital estrangeiro e a ascensão extraordinária ao consumo das classes médias, entre fins dos anos 1960 e início da década de 1970, contribuíam para legitimar o status quo.[xxxv]

Também não se pode negar o uso da imagem de prestígio da Seleção pelo regime militar (imagem que de certa forma o próprio regime ajudou a construir),  liderado pelo então presidente-ditador em exercício, Emílio Garrastazu Médici, através do aparato propagandístico da AERP. A agência soube canalizar o clima de otimismo com a economia e o esporte emplacando a figura de Médici. Segundo Euclides de Freitas Couto, a AERP soube camuflar as mazelas e exaltar os feitos do regime com maestria, uma vez que “as imagens que remetiam ao futebol, ao carnaval, à alegria a ao otimismo ganharam força nas campanhas produzidas na década de 1970”,[xxxvi] ajudando a consolidar o clima ufanista e eufórico na memória social.

Em depoimento para sua biografia escrita pelo jornalista Maurício Noriega, Rivelino admite que tinha uma relação próxima com Médici, que, antes de tudo, era um torcedor fervoroso e ligava para os jogadores após os jogos:

O [major-brigadeiro] Jerônimo Bastos, que era o chefe da delegação, me chamava e dizia que o presidente queria falar comigo. Era aquele papo de sempre, ‘vamos ganhar’ etc. Ele falava ‘parabéns’, aquele papo de torcedor mesmo. […] Não havia pressão […] Nas conversas com Médici, pelo menos comigo, ele nunca tocou no assunto de política.[xxxvii] 

Fato é que a cúpula do governo procurou colar sua imagem à do triunfo da Seleção Brasileira, um exemplo patente dessa postura é a seguinte imagem, publicada na página 3 da edição 12963 do Jornal dos Sports, de 24 de junho de 1970, em matéria intitulada “Médici chora no abraço prolongado com Pelé”:[xxxviii]

Jornal dos Sports, n 12963, 24 jun. 1970, p. 3.

Porém, devemos ponderar que tal imagem estava condicionada a diversos fatores, incluindo o próprio êxito em campo. E a preparação foi um desses fatores decisivos. O que se deu, na formação da comissão técnica militarizada, foi o uso de diversos profissionais de renome, acadêmicos dos mais capacitados à época no Brasil, que utilizaram as técnicas mais avançadas que dispunham nas suas respectivas áreas de atuação para o máximo desempenho da Seleção.


Notas

[i] HOFMAN, Gustavo. 40 dias com a campeã do mundo: histórias e bastidores da Alemanha no Brasil. São Paulo: Via Escrita, 2014.

[ii] SOARES, Antonio Jorge Gonçalves; SALVADOR, Marco Antonio Santoro; BARTHOLO, Tiago Lisboa. O “futebol arte” e o “planejamento México” na copa de 70: as memórias de Lamartine Pereira da Costa. Movimento. Porto Alegre, v. 10, n. 3, p. 113-130, set./dez. 2004. Acesso em: 13 abr. 2020.

[iii] HELAL, Ronaldo; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves; LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

[iv] SALVADOR, Marco Antonio Santoro; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas: Autores Associados, 2009.

[v] MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Tese (Doutorado em História), Niterói: UFF, 2013.

[vi] SALVADOR, Marco Antonio Santoro; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas: Autores Associados, 2009, p. 18.

[vii] Idem, p. 27.

[viii] Idem, p. 28.

[ix] NASCIMENTO, Edson Arantes do. Pelé: a autobiografia. red. Orlando Duarte e Alex Bellos, Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 173.

[x] Idem, p. 177.

[xi] SOARES, Antonio Jorge Gonçalves; SALVADOR, Marco Antonio Santoro; BARTHOLO, Tiago Lisboa. O “futebol arte” e o “planejamento México” na copa de 70: as memórias de Lamartine Pereira da Costa. Movimento. Porto Alegre, v. 10, n. 3, p. 113-130, set./dez. 2004, aqui p. 117. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xii] Guanajuato já está reservado até maio. Jornal dos Sports, n. 12833, p. 5, 14 fev. 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xiii] TAKIZAWA, Hideki. João muda planos seguindo um bom conselho. Jornal dos Sports, n. 12824, p. 10, 05 fev. 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xiv] Programa no México sai logo. Jornal dos Sports, n. 12836, p. 5, 17 fev. 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xv] Esporte Interativo, 28. mar. 2012. Acesso em: 20 abr. 2020.

[xvi] Idem.

[xvii] MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Tese (Doutorado em História), Niterói: UFF, 2013, p. 215.

[xviii] RODRIGUES, Nelson. Guerra suja, tão suja [O Globo, 19 mar. 1970] In: RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 161-164, aqui p. 163.

[xix] COUTO, Euclides de Freitas. Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (1930-1978). Niterói: Editora da UFF, 2014, p. 154.

[xx] Idem, p. 154.

[xxi] Idem, p. 147.

[xxii] MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Tese (Doutorado em História), Niterói: UFF, 2013, p. 215.

[xxiii] TOSTÃO. Tempos vividos, sonhados e perdidosum olhar sobre o futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 49.

[xxiv] Idem, p. 61.

[xxv] NASCIMENTO, Edson Arantes do. Peléa autobiografia. Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 175.

[xxvi] Idem, p. 176.

[xxvii] Preparação vai a debate. Jornal dos Sports, n. 12886, p. 4, 08 abr. 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xxviii] Zagalo: Vamos à guerra armados. Jornal dos Sports, n. 12910, p. 5, 02 maio 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xxix] Idem.

[xxx] Feras vão a local mais alto. Jornal dos Sports, n. 12916, p. 3, 08 maio 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xxxi] FIFA. World Championship – Jules Rimet Cup 1970: Final Competition. Technical Study. Zürich: FIFA, 1972, p. 35. No original:

Acclimatisation will take place by degrees, an initial period of four weeks in Guadalajara (1,680 metres), and a period of three weeks at Guanajuato (2,050 metres), so that adaptation may be attained in case we reach the finals in Mexico City (2,240 metres) . It must be emphasized that the physiological adaptation acquired will be maintained for 20 to 30 days, and we will thus attain our objective . Furthermore upon returning to Guadalajara the team should be in excellent physical condition as this has been acquired at a high altitude.

[xxxii] SALVADOR, Marco Antonio Santoro; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas: Autores Associados, 2009, p. 29.

[xxxiii] Tostão divide opiniões sobre a escalação. Jornal dos Sports, n. 12918, p. 6, 10 maio 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

[xxxiv] SARMENTO, Carlos Eduardo. A construção da nação canarinho: uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, p. 139-140.

[xxxv] HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Uma efeméride esportiva em questão: os 50 anos da Copa de 1970 (parte I). Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 15, 13 abr. 2020. Acesso em: 16 abr. 2020.

[xxxvi] COUTO, Euclides de Freitas. Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (1930-1978). Niterói: Editora da UFF, 2014, p. 153.

[xxxvii] NORIEGA, Maurício. Rivellino. São Paulo: Contexto, 2015, p. 61.

[xxxviii] Médici chora no abraço prolongado com Pelé. Jornal dos Sports. n. 12963, p. 3, 24 jun. 1970. Acesso em: 13 abr. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Matheus Marinho

Graduado em Ciências Sociais e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da Faculdade de Letras da UFMG.

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

MARINHO, Matheus; CORNELSEN, Elcio Loureiro. Quando a preparação faz a diferença: o “Planejamento México” e a Seleção Brasileira de 1970. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 2, 2020.
Leia também:
  • 133.61

    A Copa de 1970 e seu uso político: a imagem do general Médici nas narrativas de três protagonistas da Seleção Brasileira

    Elcio Loureiro Cornelsen, Matheus Marinho
  • 128.30

    João Havelange: a vida do cartola mais poderoso e polêmico do futebol brasileiro

    Matheus Marinho, Elcio Loureiro Cornelsen
  • 126.22

    Juan Pablo Sorín, um lateral e um comunicador “anárquico”

    Matheus Marinho, Elcio Loureiro Cornelsen