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Quando futebol e política se conectam

Luciana Cirino Lages Rodrigues Costa 13 de dezembro de 2022

Ao longo do ano de 2022, de modo gradual, o país foi tomado pelo alvoroço das pessoas que manifestavam seus posicionamentos em relação aos candidatos e às candidatas que estavam participando do processo eleitoral, que nesse ano, estavam direcionadas para a definição de ocupantes para os cargos de Presidente da República, governador, senador, deputado federal e deputado estadual.

Com o avançar dos meses e à medida que a data de votação foi se aproximando, observamos a mobilização da população brasileira no campo da política. E, de modo mais intenso, durante o mês de outubro o país foi envolvido pela agitação em torno das eleições.

A expressão dos posicionamentos a favor de candidatos(as) podia ser observada em adesivos colados nos veículos circulando pelas ruas das cidades, em camisas com dizeres políticos impressos nos adesivos ou nas estampas das próprias roupas, que eram utilizadas pelas pessoas que manifestavam simpatia e apoio a muitos candidatos e candidatas. Tal apoio estava bem nítido quando se tratava dos dois candidatos que disputaram o segundo turno da disputa à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro.

Veículo com bandeira e adesivo apoiando Lula em Fortaleza. Foto: Luciana Cirino

Nos espaços públicos ou nos privados, no trabalho, na escola, em igrejas e em diferentes ocasiões sociais era possível identificar uma pessoa simpatizante ou mesmo aquelas que tinham uma admiração mais profunda por um por outro dos dois candidatos. Em algumas situações a dimensão da admiração era tão intensa que poderia ser comparada a um grande amor, ou mesmo a uma paixão.

Por vezes ocorreram excessos, que transformavam a paixão em ódio. O diálogo em silenciamento. Expressões de intolerância e ódio puderam ser observadas ao longo desses meses. Alguns casos tiveram repercussão nacional e evidenciaram a intolerância extrema no campo da política, que, infelizmente, terminavam em morte. Uma demonstração desse tipo de intolerância ocorreu em julho, no Paraná[1]. Durante a festa de aniversário de 50 anos do guarda municipal Marcelo Arruda, que tinha a temática do Partido dos Trabalhadores (PT), o agente penitenciário federal Jorge José da Rocha invadiu o local da festa gritando Bolsonaro e Mito (fazendo menção ao então presidente da república, também candidato à reeleição), ameaçou os presentes e saiu de lá, retornando pouco depois. Quando voltou, Jorge entrou em confronto armado com o aniversariante, Marcelo Arruda, que terminou baleado e lamentavelmente faleceu. Esse foi um entre outros incidentes que trouxeram à tona o extremismo político de uma parcela das pessoas e a violência manifestada por elas.

O envolvimento político da população também podia ser observado por meio da grande quantidade de bandeiras do Brasil circulando com as pessoas nas ruas, além daquelas que estavam expostas nas fachadas de prédios e nas janelas das casas. Algumas tinham, inclusive, toalhas temáticas de Bolsonaro e Lula.

As camisas da seleção brasileira também foram muito utilizadas por eleitores em eventos políticos e nos dias de votação. Foram tantas bandeiras e camisas expostas, que antes mesmo do início da Copa do Mundo de Futebol no Catar, que estava prevista para ocorrer entre novembro e dezembro de 2022, já parecia que a seleção brasileira estava na disputa.

Lula camisa amarela
Na imagem, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e a socióloga Rosângela da Silva. Foto: Ricardo Stuckert

Embora no contexto das eleições de 2018 o uso de bandeiras do Brasil e da camisa da seleção brasileira de futebol estivesse bastante conectado ao bloco de apoiadores de Bolsonaro, esse panorama se alterou nas eleições de 2022. Em especial nos dois dias de votação o que se viu pelas ruas foi um desfile de camisas verde e amarela e as da seleção, algumas delas também tinha adesivos de candidatos e candidatas de diferentes partidos, se destacando aqueles que faziam alusão ao candidato Lula. Assim, além de manifestarem em qual candidato votariam, ainda foi explicitado que os símbolos da pátria que na eleição de 2018 foram tomados por um bloco político, agora estava novamente ligada à coletividade.

Essa mobilização direcionada à política também agitou as redes sociais. No Whatsapp, no Instagram e no Facebook a grande quantidade de postagens relacionadas às eleições demonstrou a mobilização das pessoas, que investiam tempo significativo para dar maior visibilidade a seus candidatos. No meio virtual a presença da política extrapolou as redes socias, chegando também nas ligas do Cartola FC[2], demonstrando o envolvimento de jogadores desse jogo on line na movimentação relacionada às eleições.

Nesse jogo virtual, para participar, cada jogador(a) deve criar uma conta para escalar a sua própria equipe de futebol baseada nos jogadores dos 20 times que participam do Brasileirão masculino série A. Também existe a possibilidade de competir com outros jogadores nas ligas do tipo clássica ou mata-mata, que em ambas estão divididas em: pública, qualquer pessoa pode entrar; privada, só pode entrar que receber o convite enviado pelo moderador que a criou; e moderada, a pessoa interessada pode entrar, mas tem que aguardar a aprovação ou a rejeição da solicitação, que ocorrerá após a análise de quem criou a liga.

Uma vez criada uma liga o(a)s cartoleiro(a)s podem tentar ingressar em alguma de seu interesse. Na liga clássica, similar aos campeonatos de pontos corridos da vida real (mas sem disputa de partidas entre os times), o objetivo é somar o maior número possível de pontos até o final do campeonato. Para isso, a cada rodada o(a) jogador(a) deverá escalar o seu time, e os pontos alcançados são contabilizados até o final da temporada. Concluídas todas as rodadas, quem alcançar a maior pontuação será campeão/campeã da liga.

A liga mata-mata é a competição baseada em fases eliminatórias. Nela, a cada fase as equipes participantes disputam entre si, quem ganhar avançará para a próxima fase e quem perder será eliminado. A competição vai prosseguindo as fases até que na última, a decisão da final, se tenha um time campeão da liga. O número máximo de equipes que podem participar da liga mata-mata são 32 times.

No ano de 2017, estimulada por meu filho que baixou o aplicativo em meu celular e explicou a dinâmica do jogo, eu comecei a jogar o Cartola FC. Naquele ano eu levei um tempo para compreender o funcionamento do jogo, e por algumas vezes perdi cartoletas[3] com jogadores que tinham se valorizado em uma rodada devido à boa pontuação, e na outra se desvalorizaram por terem alcançado um rendimento mais baixo. No começo eu não compreendia que os critérios de avaliação do rendimento do jogador no Cartola eram diferentes dos critérios utilizados para avaliar o rendimento de atletas no futebol jogado no ambiente real, dentro no das quatro linhas. Um craque dos times do brasileirão poderia não ser um craque em pontuação nos times do Cartola.

No ano de 2022, acompanhando as novas dinâmicas de realização do Cartola durante a temporada do Brasileirão, por algumas vezes participei de disputas de ligas mata-mata. No segundo semestre, ao me questionar se haveria ligas criadas relacionadas às eleições, que tivesse nomes de candidatos, comecei a fazer buscas para identificar se haveria ou não. Para isso, entre os meses de setembro e outubro/2022 utilizei a ferramenta encontrar ligas e fiz a busca digitando, além da palavra eleição, os nomes de quatro candidato(a)s melhor colocados nas pesquisas de intenção de voto para presidente da República: Lula, Bolsonaro, Ciro e Simone. As buscas foram realizadas nas rodadas do final de semana, depois que o sistema de escalação e participação em ligas já estava fechado, quando já não era possível criar novas ligas.

A palavra eleição foi identificada e teve ocorrências que faziam menção tanto às eleições de 2022 quanto a outros tipos de eleições.

A eleição movimentando as ligas do Cartola FC. Fonte: cartola.globo.com/#!/competicoes
Quanto à busca relacionadas a candidato(a)s à presidência, não foi identificada menção explícita à candidata Simone Tebet. Entre as ligas criadas que tinham o nome Simone, se encontra uma que mencionava as duas cantoras da dupla sertaneja Simone e Simara, sendo utilizado também as denominações Simonésia e Simonte em outras ligas.
O nome Simone nas Ligas do Cartola FC. Fonte: cartola.globo.com/#!/competicoes

Em relação aos candidatos Lula, Bolsonaro e Ciro, as buscas evidenciaram que foram criadas ligas que utilizaram os nomes deles, sendo possível identificar em algumas ligas a relação entre a denominação e as eleições. Em uma das ligas mata-mata estava presente na denominação o nome dos três candidatos, a liga Bolsonaro x Lula x Ciro.

Ciro nas Ligas do Cartola FC. Fonte: cartola.globo.com/#!/competicoes

Um aspecto que foi possível inferir ao analisar as denominações dadas às ligas que mencionaram esses três candidatos foi que naquelas relacionadas ao candidato Ciro Gomes a proposta parecia ser de promoção positiva do candidato, sendo explicitado em algumas a possibilidade de voto neste candidato.

Em relação aos candidatos Lula e Bolsonaro, embora também existisse ligas que fizeram a promoção positiva desses candidatos, e em algumas também estivesse manifestada a intenção do voto neles, foi percebido também que havia ligas com manifestações negativas em relação aos dois candidatos, quando palavras tais como ladrão, imbecil, vagabundo e lixo foram utilizadas.

Bolsonaro nas Ligas do Cartola FC. Fonte: cartola.globo.com/#!/competicoes

 

Lula nas Ligas do Cartola FC. Fonte: cartola.globo.com/#!/competicoes

 

Apesar de não ser possível afirmar qual seria a real intenção que os criadores das ligas tiveram ao utilizar palavras com significação negativa, há que se considerar a possibilidade de influência do contexto de disputa acirrada que envolveu o ambiente político nas últimas três eleições (2014, 2018 e 2022) e de intolerância e de extremismo que se acentuaram nas eleições de 2022.

Tais aspectos relacionados aos possíveis posicionamentos políticos que foram expressos por meio das ligas no Cartola FC direcionam as reflexões para os antagonismos que podem estar presentes na política, conforme apresentado por Bobbio (1998)[4].  Parece razoável considerar que à medida que o processo eleitoral foi avançando também foi aumentando a rivalidade entre uma parcela dos eleitores que apoiavam Lula e Bolsonaro, que assumiram posturas de ataque e defesa, uns contra os outros.

Embora o extremismo não estivesse presente entre todos eleitores desses dois candidatos, esse comportamento poderia ser constatado entre alguns deles, tanto no ambiente real como no ambiente virtual. Até mesmo a manifestação da intenção de voto por parte de figuras públicas era recebida de modo que provocava ataques e defesas. A poucos dias das eleições e a poucas semanas da Copa, Neymar gravou um vídeo de apoio ao candidato Bolsonaro, que foi publicado em rede social no dia 29 de setembro de 2022. Conforme registrado no site Terra[5], a postagem do vídeo motivou comentários favoráveis e contrários a ele, entre os quais: “BANDIDOMAR VOTA NO BANDIDONARO 😂😂😂” e “Campeão!!! É isso aí Neymar!!!”

E se a disputa girava em torno da possibilidade do candidato ser eleito presidente, o panorama que estava traçado tendo por base as pesquisas eleitorais no começo de setembro de 2022 indicavam a baixa probabilidade de que Ciro Gomes e Simone Tebet alcançassem esse objetivo. Talvez por isso, nas ligas do Cartola FC, Ciro não tivesse sofrido o combate de eleitores opositores, e Simone não tivesse ligas criadas para promovê-la no espaço do jogo.

A disputa eleitoral para a presidência prosseguiu de modo acirrado até o dia da eleição, 02 de outubro de 2022. O resultado publicado naquele dia indicou que haveria segundo turno entre Lula (com 48,43% dos votos, totalizando 57.259.504 votos) e Bolsonaro (com 43,20% dos votos, totalizando 51.072.345 votos). E após a realização do segundo turno, que ocorreu no dia 30 de outubro de 2022, Lula venceu a disputa presidencial.

A eleição passou, mas as camisas da seleção brasileira continuaram em uso em novembro. Embora uma parte de eleitores pró Bolsonaro que ficaram insatisfeitos com a derrota tenham ocupado as portas dos quartéis vestidos com camisas da seleção pedindo intervenção militar (em atos antidemocráticos), o maior destaque para a camisa verde e amarela teve relação com o início da Copa do Mundo de Futebol no Catar, que começou no dia 20 de novembro. Na primeira fase, de modo especial nos dias de jogos do Brasil, as ruas foram tomadas por pessoas transitando com camisas da seleção de futebol.

Cresci ouvindo uma parte dos adultos dizendo que futebol e política não se misturam, que o esporte é uma coisa e que a política é outra. Mas, oportunamente, os eventos descritos nesse texto relativos ao contexto das eleições de 2022 evidenciaram que essas delimitações estão cada vez mais apagadas. Dentro ou fora dos campos, em ambientes reais ou virtuais, o futebol e a política são conectados com e pelas pessoas.

Notas

[1] Leia mais a respeito sobre o assassinato de Marcelo Arruda no artigo publicado no Uol. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2022/07/10/bolsonarista-invade-festa-de-aniversario-mata-petista-e-tambem-e-morto.htm. Acesso em: 20/11/2022.

[2] O Cartola FC é um jogo baseado nos times que disputam o Campeonato Brasileiro de Futebol Série A (masculino). Nesse fantasy game o objetivo é montar o próprio time de futebol, que é espelhado nas equipes do Brasileiro, podendo criar ou entrar em ligas para competir com outros jogadore(a)s. Em cada rodada é atribuído pontos aos jogadores que participaram das partidas pelos jogos do Brasileiro, e se estiverem no time escalado do Cartola, receberão uma nota de acordo com o rendimento em campo (de acordo com critérios pré-determinados). Leia mais sobre o Cartola FC em: https://www.cartolafcbrasil.com.br/tutoriais/7/como-funciona-o-sistema-de-pontuacao-do-cartola-fc

[3] Cartoleta é a moeda utilizada no jogo para definir o valor de jogadores. No começo da temporada cada participante inicia com 100 cartoletas. A cada rodada, dependendo da valorização/desvalorização dos jogadores escalados, a quantidade de cartoletas pode aumentar ou diminuir.

[4] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política11.ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

[5] Leia os comentários em: https://www.terra.com.br/esportes/neymar-posta-video-nas-redes-sociais-declarando-voto-em-bolsonaro,4c4d823c4c594855f59143e014a261074jh85izs.html. Acesso em: 22/11/2022.

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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Quando futebol e política se conectam. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 12, 2022.
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