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Quando jogar futebol é sonho realizado (astros da MPB)

Há poucas semanas li uma entrevista da pastora Sarah Scheeva, filha de Baby do Brasil e Pepeu Gomes, figuras estelares da Música Popular Brasileira (MPB). Entre afirmações diversas nas quais não é fácil encontrar um mínimo de racionalidade, ela lembra com pouco apreço de seus primeiros anos de vida, passados em um sítio em Vargem Grande, Rio de Janeiro, lugar que a família compartilhava com outros integrantes dos Novos Baianos. Era o início da década de 1970 e a experiência radical da vida em comunidade não era estranha ao Zeitgeist. Posso entender que parte dessa cultura tenha deixado marcas não tão boas em quem a experimentou em seus limites.

Nem todos têm só más lembranças daqueles anos. Um dos que tem boas histórias de décadas atrás é Eduardo Magalhães de Carvalho, o Dadi, multi-instrumentista presente em belos momentos da MPB. Depois da experiência comunitária em companhia de Baby (então Baby Consuelo), Pepeu, Paulinho e Moraes Moreira, ele acompanhou astros como Gilberto Gil, Jorge Benjor (então Jorge Bem), Caetano Veloso, Marisa Monte e Rita Lee, além de formar A cor do som e o Tigres de Bengala, compor o Barão Vermelho e o projeto Tribalistas, este com a própria Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown.

É dos tempos dos Novos Baianos que Dadi traz em seu livro de recordações (Meu caminho é chão e céu – memórias, 2014) uma história de futebol. Segundo escreve, praticar o esporte era atividade diária, junto com os ensaios, e lá pelas tantas apareceu no sítio o Botafogo de Futebol e Regatas, para um amistoso (melhor seria dizer que foi uma pelada) contra os donos da casa. Na primeira metade dos anos 1970 jogavam pelo clube da Estrela Solitária Ubirajara Alcântara, Carlos Roberto e Marinho Chagas, entre outros tantos do timaço que fez história. O jogo já ia para lá de uma dezena e meia de gols para os profissionais, quando se decidiu que os goleiros trocassem de time, mas mesmo assim a fatura seguiu alta. Do banco, Dadi foi chamado não para o seu time, mas para atuar pelo qual era fervoroso torcedor, uma glória para o garoto, mesmo quase sem ter tocado na bola. O músico conta sobre a sensação de dar-se conta da enorme diferença entre jogar bem e ser atleta profissional de futebol.

Novos Baianos
O grupo Novos Baianos, em sua formação original, em 1972. Foto: Wikipédia

Diferença que outro músico, Wilson Simonal, pôde sentir no México, em 1970, ainda que sem tocar na bola. São famosas as imagens do cantor junto aos jogadores em rodas musicais na concentração da seleção brasileira que seria tricampeã, ele que estava no país para uma série de espetáculos vinculados à Copa. No belo documentário sobre ele, um dos grandes astros marginalizados de nossa música popular (Ninguém sabe o duro que dei, de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, 2009), há um depoimento de Pelé contando que um grupo de jogadores provocou o cantor para que comparecesse ao treinamento do dia seguinte, já que o corte do atacante Rogério abrira uma vaga no escrete.

Simonal teria levado a sério o convite, talvez imaginando que pudesse mesmo integrar a seleção, e no dia seguinte apresentou-se paramentado para a sessão de exercícios junto ao elenco. Mal começaram os trabalhos e Simonal desmaiou, atacado pela insuficiência de oxigênio na grande altitude, obstáculo para o qual o time vinha se preparando havia meses. Segundo Pelé, todos os cercaram preocupados, mas o susto durou pouco e Simonal voltou à consciência meio sem saber onde estava, provocando o riso generalizado.

Também com o selecionado, mas na Copa de 1982, outro cantor e compositor conhecido teve seu papel. Então amigo de Zico e Sócrates, assim como fora de Geraldo, jovem craque do Flamengo morto em 1976, Raimundo Fagner andava pela concentração com o agasalho da delegação, chegando a participar de atividades de condicionamento físico e, não raro, servindo de elo entre Telê Santana e o grupo de jogadores. Como todos os outros, não escapou da tristeza de, por dentro, ter vivido o Desastre do Sarriá. Dizem que Fagner se destacava nos jogos festivos no campo de Chico Buarque de Holanda, mas, não, que se saiba ele não se aventurou nos coletivos daquela seleção de ouro.

Não foram só os artistas mais populares que se envolveram com o futebol. Arrigo Barnabé, o mais importante dos músicos que formaram a vanguarda paulistana entre os anos 1970 e 1980, conta que quando seu amigo e parceiro Itamar Assumpção veio de Londrina para São Paulo, pretendia atuar no Santos Futebol Clube, ainda nos tempos de Pelé. Para a sorte da música popular brasileira, e de todos nós, o insucesso relativo de Itamar nos deu a chance de acompanhar o desenvolvimento e a consolidação de uma obra singular e de grande qualidade, só interrompida com sua precoce morte em 2003, pouco antes de completar 54 anos.

Como tantos dos homens deste país, grandes artistas também sonharam em ser futebolistas de destaque, e é em geral sua notoriedade que permite que depois de adultos possam desfrutar da companhia dos astros da bola e eventualmente realizar o sonho de atuar, de forma lúdica, com eles. Faz sentido. Afinal, não são música e futebol duas das forças oníricas mais poderosas de nossa cultura?

Sob o signo da morte, maio de 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Quando jogar futebol é sonho realizado (astros da MPB). Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 27, 2021.
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