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Quando meu pai encontrou Lou Gehrig

Wagner Xavier de Camargo 7 de janeiro de 2018

Há exatos seis anos foi-se meu pai, ainda no início de seus sessenta anos. Deixou mulher, filhos e uma vida que poderia ter vivido, mas não viveu. A doença que o matou vitima milhares de pessoas, no Brasil e no mundo. Ainda sem cura, a esclerose lateral amiotrófica (ELA) ataca o sistema nervoso central e é responsável pela degeneração dos neurônios motores, apresentando um quadro complexo de debilidades fatais, associadas a perdas musculares progressivas. Em linguagem simples, a pessoa “vai murchando” e perdendo os movimentos característicos de membros e órgãos. ‘ELA’ também é conhecida como “Doença de Lou Gerigh”, em referência a um jogador de beisebol estadunidense que foi acometido pela mesma no auge da carreira, em fins dos anos 1930.

Hélio Rafael Xavier de Camargo era meu pai, um sujeito embrutecido pela vida. Perdeu a mãe ainda criança, foi criado aqui e acolá, aprendeu a domar o mundo na unha, como fazia com garrotes. Casou cedo, teve filhos, se virou para sustentá-los. Não falava muito de esportes. Dizia-se corinthiano, assistia a alguns jogos aleatórios de futebol, mas vibrava com a seleção brasileira de tempos em tempos. Seu hobby mesmo era a cerveja, uma companheira sempre presente nessas ocasiões de torcida esportiva esporádica. De beisebol, provavelmente, não conheceu nada, nem mesmo o jogo.

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Irmão (esquerda) e pai (direita) cavalgando num domingo de julho de 1983. Acervo pessoal.

Henry Louis Gehrig (ou Lou Gehrig, como passou a ser chamado no mundo esportivo) era filho de imigrantes alemães nascido nos Estados Unidos e teve uma vida curta. Morreu aos 38 anos de idade, em 1941. É lembrado pela ascensão meteórica no beisebol (esporte popular na América do Norte em fins do século XIX e início do XX), onde atuou profissionalmente por quinze anos entre as temporadas de 1925 a 1939, e segundo suas biografias, jogou impressionantes 2.130 partidas de forma consecutiva –  sequência só interrompida pelo diagnóstico precoce da doença neuromuscular degenerativa (EIG, 2005; ROBINSON, 2006).

Gehrig ficou eternizado num dos momentos mais sensíveis e marcantes da história do beisebol quando pronunciou, para um imenso público, um discurso de despedida do esporte devido, justamente, a enfermidade que o acometera. Isso foi em 04 de julho de 1939, no Yankee Stadium, do New York Yankees, equipe em que atuou a maior parte de sua vida profissional (1923-1939). O impressionante foi que, ao invés de lamentar a fatalidade da doença, agradeceu a dádiva da vida e de tudo o que pôde fazer como pessoa e jogador. Esse discurso é fácil de ser encontrado e está registrado no todo e em partes em vários canais na plataforma YouTube. Algo que também está disponível na internet é uma produção cinematográfica em preto e branco, realizada em 1942 por Hollywood, em homenagem ao atleta: The Pride of the Yankees foi produzida por Samuel Goldwyn, dirigida por Sam Wood e estrelada por Gary Cooper.

Meu pai, por sua vez, não foi esportista e nem teve carreira brilhante. Não se fez de herói aos filhos, porém sempre fora honesto. Não estimulou a mim ou aos meus irmãos a praticarmos esporte, não era torcedor empolgado de futebol, não lia muito e, infelizmente, trabalhava demais. Sempre sem tempo para as crianças, a esposa e as “coisas da casa”. Foi-se cedo; não como Gehrig, mas tão injustamente quanto. Entre as primeiras suspeitas sobre uma degeneração muscular progressiva e seu falecimento foram seis anos, tempo em que correu atrás da vida, dos aprendizados que não teve, das risadas perdidas, da reconciliação familiar e dos momentos de contemplação, tão necessários à existência. O embrutecido homem se sensibilizou, viu as cores do arco-íris tantas vezes ignoradas, desejou o mundo; aprendeu que homens também choram.

Se a degeneração provocada por ELA não tivesse levado meu pai a óbito, outra doença o teria (como cirrose, diabete ou outra qualquer decorrente de suas atitudes). O mesmo se pode dizer de Gehrig, que antes da prática do beisebol passou pelo violento futebol americano, ainda nos anos estudantis, e esse fato tem sido, ao menos recentemente, reportado como possível causa de sua morte prematura (McGREAL, 2010). Independente das especulações, ambos tiveram finais semelhantes.

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Lou Gehrig no Yankee em 1923. Foto: Pacific & Atlantic Photos, Inc. (Public Domain).

A tecnologia e a medicina estão aí para combater doenças como a ELA. E assim espero que logo descubram uma droga inibidora ou mesmo a cura. Não sou muito adepto de que a humanidade viva eternamente como preconizam algumas pessoas, para quem nós humanos deveríamos viver para sempre. O fato de ver meu pai definhar fisicamente em frente a meus olhos me mostrou que a vida tem (e deve ter) seu ciclo. Contudo, mortes relacionadas a tal doença, em que os corpos vão secando, definhando, perdendo as funções de dentro para fora, são muito cruéis, justamente porque mostram o lado vulnerável de todos nós.

Se não fosse pelo nome da doença, diria que talvez meu pai e Gehrig jamais teriam se encontrado. Talvez até estejam juntos, jogando beisebol ou cavalgando, atividades que ambos apreciavam. Sem vivenciar a história de um, eu jamais saberia da história do outro. Fico agradecido pelo aprendizado oferecido a mim pela vida. Este texto não é uma homenagem, muito menos um escrito melancólico. É tão somente uma reflexão sobre a existência e uma curiosidade sobre esportes, minha paixão.

Agradeço a meu irmão, Rafael Xavier de Camargo, pela sugestão temática da coluna de hoje.

Sugestões para conhecer mais:

EIG, Jonnathan. Luckiest man: the life and death of Lou Gehrig. New York: Simon & Schuster, 2005.

ROBINSON, Ray. Iron Horse: Lou Gehrig and his time. New York: W.W. Norton & Company, 2006.

McGREAL, Chris. “Lou Gehrig killed by baseball not Lou Gehrig’s disease, study findings suggest”. The Guardian, 17 ago 2010. Disponível em < https://www.theguardian.com/science/2010/aug/17/lou-gehrig-disease-baseball-death>, acesso em 21 dez 2017.

“The Greatest Speech in Sports History”. YouTube. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=xbaeBHEt5uk>, acesso em 20 dez 2017.

“The Pride of the Yankees”. Direção: Sam Wood. Ano: 1942. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=pE-iUZvu-NM> , acesso em 29 dez 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Quando meu pai encontrou Lou Gehrig. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 7, 2018.
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