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Quando minha mãe me levou ao estádio

Leila de Melo Universidade do Esporte 27 de setembro de 2020

O relógio marcava 20h, faltavam 30 minutos para a final do Campeonato Potiguar de futebol e, daquela vez, não encontrei minha mãe para irmos ao estádio. O ritual de preparação para a partida teve de ser alterado pela distância geográfica, pois ela segue morando no Rio Grande do Norte e eu, agora, no Rio de Janeiro, e pela realidade em que vivemos, sem torcida nos estádios em decorrência da pandemia do novo coronavírus.

Trocamos nossas impressões sobre a escalação e conversamos animadamente, via aplicativo, sobre a preparação dos times para àquela partida. O América-RN vinha de uma derrota por 2 a 1 para o ABC, e o rival tinha a vantagem do empate, por terem vencido o primeiro turno da competição, e ainda iriam jogar em casa, no estádio Maria Lamas Farache, popularmente conhecido como Frasqueirão.

Para minha mãe, a maior (e mais corneteira) torcedora que já conheci na vida, não havia nenhuma dificuldade que não pudesse ser vencida. Não importava se o retrospecto do Clássico-Rei favorecia o time alvinegro, nem mesmo a mudança no comando técnico do time americano, ou ainda a instabilidade emocional do Mecão após uma sofrida eliminação nos pênaltis na Copa do Brasil.

Só torcedores de verdade enxergam esperança e motivação no ato de torcer mesmo quando tudo parece desfavorável. Assim é minha mãe, Telma Lucia Ferreira de Melo, natural de Natal, Rio Grande do Norte. Mamãe herdou essa paixão pelo time e pelo esporte de seu irmão mais velho, Artur Ferreira de Melo Júnior, zagueiro do futsal do América-RN entre os anos de 1957 a 1977. Tio Arturzinho fora um jogador que marcou o clube, colecionando dezoito títulos como atleta e posteriormente como técnico do futebol de salão do time alvirrubro.

Paixão que seguiu de geração em geração, até chegar em mim. Eu poderia ter optado por outros times ou mesmo por não torcer por ninguém. Meu pai, um abcedista e botafoguense, até tentou, me levou ao estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado, o Machadão, para um Clássico-Rei. No primeiro tempo ficamos os três – eu, minha mãe e meu pai – na torcida do América.No segundo tempo, fomos para o lado abcedista. O placar foi favorável para o Mais Querido do RN, meu pai alegre me fintou, mas eu chorava copiosamente.Não deu certo.

A partir daí, eu e mamãe nos tornamos cúmplices de arquibancada e pudemos apreciar de pertinho um dos momentos de maior glória do nosso Mecão. Eu tinha sete anos em 1996 quando o time potiguar foi vice-campeão da série B e conseguiu o acesso à elite do futebol brasileiro.

Na temporada seguinte, de 1997, Telma e eu íamos a todos os jogos dos finais de semana. Lembro do caminho até o estádio, de sempre ouvirmos o hino extraoficial do clube, “Vermelho”, cantado por Márcia Freire, de estacionarmos o velho fusquinha nas proximidades do estádio e nos juntarmos à multidão alvirrubra.

Apesar do título estadual em 1996, a soberania abcedista imperou nos anos subsequentes. Nada que abalasse a Telma, embora abalasse a mim que era alvo de zombação dos amiguinhos da escola a cada título estadual perdido.

Nada que o tempo não sanasse. Em 1998, tive a oportunidade de sentir pela primeira vez o gostinho de conquistar um título de expressão regional, a Copa do Nordeste.

América-RN, Campeão da Copa do Nordeste 1998 [Foto: Divulgação/América-RN]

Naquele 4 de fevereiro, minha mãe, em sua melhor veia torcedora, me vestiu de vermelho dos pés à cabeça e me carregou para o estádio. Embora parte do Machadão estivesse interditada, a torcida se fez presente, preencheu as áreas acessíveis e empurrou o time em campo.

Era o jogo da volta entre América e Vitória. O time baiano vencera a partida de ida pelo placar de 2 a 1 e a imprensa especializada acreditava num triunfo do time comandado por Petkovic. Mal sabiam eles que Telma estava no estádio naquele dia e confiante num placar que nos garantiria levantar o caneco.

Até hoje sinto calafrios em lembrar da bola na trave que Petkovic chutou no finalzinho do segundo tempo, se ela tivesse entrado eu possivelmente não teria sido tão feliz. Mas, tudo saiu conforme o script, vencemos por 3 a 1, com gols de Biro Biro, Paulinho Kobayashi e Carioca pelo lado do Mecão. Flávio marcou o único tento do time visitante.

Se em algum momento minha mãe duvidou de que eu seria americana, ali já não havia mais dúvidas. Eu gritei, cantei e festejei como nunca, aos dez anos eu me tornara uma torcedora convicta e uma apaixonada pelo América Futebol Clube.

Enquanto acessava o link da plataforma de streaming que iria transmitir a partida do Campeonato Potiguar deste ano, eu me lembrava com saudades dos momentos que vivenciei no finado Machadão e posteriormente na suntuosa Arena das Dunas, com minha mãe.

Independentemente do resultado do estadual deste ano, quero poder voltar ao estádio (assim que for seguro e viável, obviamente), porque uma das minhas maiores alegrias em vida é poder torcer ao lado de Telma, de vê-la gritar, vibrar e festejar, no ápice de sua passionalidade, todos os lances da partida. O futebol tem dessas coisas inexplicáveis que formam amigos, unem famílias e conectam gerações. Obrigada, mãe.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leila de Melo

Ex-atleta frustrada e jornalista por vocação. Fã de Kobe Bryant e de esquema 4-4-2. Escreve sobre esporte, porque a vida não  é o bastante. Jornalista formada em comunicação social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Como citar

MELO, Leila de. Quando minha mãe me levou ao estádio. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 63, 2020.
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