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Quando o erro é acerto: Dentinho, Taison e outras esperanças

Paulo César Carpegiani foi um excelente jogador de meio-campo cuja carreira foi breve, passando a treinador aos trinta e dois anos, no mesmo clube em que atuara em campo, o grande Flamengo do final dos anos 1970 e início da década seguinte. Na direção do time foi campeão, entre 1981 e 1982, estadual, nacional, das Copas Libertadores e Intercontinental. Na partida decisiva da competição sul-americana, em Montevidéu, contra o chileno Cobreloa, já nos estertores do combate, Carpegiani chamou o atacante Anselmo do banco de reservas e o orientou a, assim que entrasse em campo no lugar de Nunes, agredir o zagueiro Mario Soto. Conhecido no Brasil porque atuara no Palmeiras, o adversário, e não só ele, passara o jogo, como os dois anteriores, impetrando todo tipo de violência contra os flamenguistas. O brasileiro sequer tocou na bola antes de desferir um soco no adversário, o que gerou uma confusão generalizada e a expulsão dos dois. Já escutei treinador e jogador, separados, dizerem que não foi correto o que fizeram, mas que não se arrependem do gesto.

De lá para cá Carpegiani foi técnico de várias equipes, alternando ótimos trabalhos com vários insucessos. Do primeiro caso há que se lembrar da seleção do Paraguai, que na Copa de 1998, na França, foi eliminada pelo time da casa – que depois seria campeão – apenas na prorrogação da partida das oitavas de final. Pelos guaranis jogavam José Luis Chilavert, Chiqui Arce, Carlos Gamarra, Celso Ayala e Jorge Campos, entre outros futebolistas de sucesso internacional. Zinedine Zidane foi o nome daquele Mundial e oito anos depois, na Alemanha, apareceu novamente como protagonista, terminando sua participação no torneio com a expulsão motivada por uma cabeçada no zagueiro italiano Marco Materazzi no tempo suplementar da partida final, depois de ter sido por ele provocado. Os franceses perderam na disputa de pênaltis, e o grande craque fez falta. Nos dias seguinte, ele reconheceu que errara, mas foi firme em dizer que, frente ao que tinha ouvido do adversário, não se arrependia do que fizera.

Um dos trabalhos sem êxito de Carpegiani foi no Corinthians, em 2007, onde ficou apenas quatro meses. O pior ainda estava por vir, já que no final do ano, duas temporadas depois de ser campeão da primeira divisão, o Timão foi rebaixado para a Série B do Campeonato Brasileiro. Apesar da péssima campanha, o alvinegro teve a revelação do torneio, o meia-atacante Lulinha, de trajetória muito bem-sucedida nas categorias de base. Como coadjuvante, Dentinho, que atuava mais à frente, também viera da equipe de juniores. O treinador preferia que ele fosse chamado não pelo apelido, mas pelo nome, Bruno Bonfim. O garoto preferia Dentinho, denominação que prevaleceu. Em 2009 teve sua melhor temporada no Brasil, jogando ao lado do astro Ronaldo no bem montado time de Mano Menezes. No mesmo ano, em sua terceira temporada no elenco profissional, em partida contra o Vitória, no Pacaembu, Dentinho recebeu passe de Ronaldo e de dentro da área chutou forte, marcando o primeiro gol da vitória por dois a um. Na comemoração, tirou a camiseta e mostrou a térmica que levava escrito no peito “100% Lulinha”, homenagem ao amigo que deixava o clube para jogar, por empréstimo, na segunda divisão de Portugal. Recebendo o cartão amarelo, seria reprimido pelo treinador, que logo no intervalo mostrou em entrevista seu desagrado. Dentinho não se arrependeu: “Vale a bronca [do Mano Menezes]. O Lulinha é meu parceiro, meu irmão, desde a base jogamos juntos. Sei que ele vai voltar para jogarmos juntos no Corinthians” .

Amigos desde as categorias de base do Corinthians, Dentinho e Lulinha se reencontraram na Ucrânia. Foto: Reprodução.

Do Corinthians Dentinho foi para o Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, em 2011, onde até hoje atua, afora um interregno de um ano de empréstimo ao Besiktas, da Turquia, para a temporada de 2013. Desde 2014 ele tem a companhia do também atacante Taison, formado no Internacional de Porto Alegre, que chegou à equipe no ano anterior, vindo do também ucraniano Metalist Járkov. Como foi amplamente divulgado nos últimos dias, no domingo passado ambos foram vítimas de manifestação explícita de racismo, quando enfrentavam o Dínamo Kiev. Parte da torcida adversária gesticulou e vociferou tentando imitar primatas, dirigindo sua criminosa estupidez aos jogadores nascidos no Brasil, ambos negros. Antes de a partida ser paralisada até que cessassem as manifestações, Taison chutou uma bola com força na direção dos torcedores e fez-lhes um gesto obsceno. Teve muita coragem.

Segundo se lê na imprensa, nas redes sociais ambos se mostraram indignados. Depois de citar os Racionais MC’s (“Amo minha raça, luto pela cor, o que quer que eu faça é por nós, por amor”), Taison vaticinou:

“Jamais irei me calar diante de um ato tão desumano e desprezível. Minhas lágrimas foram de indignação, de repúdio e de impotência. Impotência por não poder fazer nada naquele momento. Mas somos ensinados desde muito cedo a sermos fortes e a lutar. Lutar pelos nossos direitos e por igualdade. O meu papel é lutar, bater no peito, erguer a cabeça e seguir lutando sempre! Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, precisamos ser antirracistas.”

Ademais, publicou uma foto repetindo o clássico gesto de protesto dos Panteras Negras: braço direito erguido, punho fechado, braço esquerdo nas costas.

Taison há poucas semanas comemorou gol no Campeonato Ucraniano com o punho direito erguido e cerrado, um gesto característico do movimento Black Power. Foto: Reprodução.

Ao ser reiniciada a partida em Donetsk, o árbitro mostrou o cartão vermelho a Taison, cumprindo o regulamento do futebol. O esporte é uma tecnologia disciplinar que não tolera qualquer ato que coloque em risco sua rigidez. É pavoroso que alguém seja penalizado ao legitimamente se defender de uma agressão. Mas isso, hoje, representa pouco. Os limites impostos pelo esporte, isso é que vale, não foram suficientes para Carpegiani, Anselmo, Dentinho e Taison. O ex-jogador do Colorado, mais que isso, defendeu a humanidade quando reagiu ao ataque racista. Cada qual a seu tempo e contexto, enfrentando situações mais ou menos graves, eles nos lembram que a vida digna é mais importante que os protocolos esportivos. Têm meu respeito.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Quando o erro é acerto: Dentinho, Taison e outras esperanças. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 22, 2019.
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