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Quando o futebol, o estádio e a cidade viram objetos de estudos: um breve relato

Receber o convite para compor a equipe responsável por dar continuidade à coluna Futebol e Cidade me deixou muito agradecida e também com um frio na barriga, afinal, não se trata de qualquer coluna, mas a iniciada pelo querido Gilmar Mascarenhas, uma pessoa que mesclava conhecimento científico e histórias do cotidiano com uma naturalidade incrível. Jogar em time grande tem dessas coisas, não dá para amarelar. Assim, aceitei o convite.

Nesse texto que marca a minha estreia nessa coluna (mas não na comunidade ludopédica, já que tenho textos publicados pelo GEFuT), gostaria, primeiramente, de me apresentar, por meio de um breve memorial, relatando a trajetória que me fez me interessar pelo futebol, o estádio e a cidade como tema de pesquisa. Assumo que essa experiência é, ao mesmo tempo, catalizadora e limitadora do meu olhar sobre o fenômeno e o objeto estudado, assim como o era do próprio Gilmar e de todos os que estudam o futebol e tem um pertencimento clubístico.

Tive conhecimento do estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão, localizado na Região da Pampulha, na cidade de Belo Horizonte (MG), na infância quando ia com a minha família levar a nossa cachorra ao Hospital Veterinário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), localizado em frente a ele. Aquela grandiosa construção chamou a minha atenção. Naquela época, entretanto, aos 10 anos de idade, não tinha a dimensão do seu tamanho físico e muito menos o simbólico. Meus interesses eram outros e estavam longes do futebol.

Mais tarde, já na adolescência, por questões familiares e escolares, desejei muito conhecê-lo. Meu pai é cruzeirense e, embora estivesse afastado do seu torcer clubístico, eu tinha conhecimento de sua história e dos feitos para ver o Cruzeiro Esporte Clube jogar. Já na escola, começava uma fase de demonstração do pertencimento clubístico e, às vezes, era cobrada por isso. Afinal, a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro também perpassava o ambiente escolar, principalmente nas segundas-feiras após os clássicos ou jogos importantes.

Meu pai até tentou, mas não teve escapatória. Assim, no ano de 1997, me apresentou ao Mineirão na condição de torcedora, em uma quarta-feira, à noite. Ele me levou para assistir à partida entre Cruzeiro Esporte Clube e Club Social y Deportivo Colo Colo, válida pela semifinal da Copa Libertadores da América, coincidentemente realizada no dia do meu aniversário. Vale ressaltar que, naquela época o Colo Colo era um gigante do futebol Sul-americano e havia disputado partidas memoráveis contra o Cruzeiro (CRUZ, 2021). Por tudo isso, as expectativas com o jogo eram enormes.

Nunca tinha ido a um estádio de futebol. Chamou a minha atenção a quantidade de pessoas e as motivações divergentes que estavam presentes naquele contexto: torcedores comuns, torcedores organizados, ambulantes, barraqueiros, policiais militares, organizadores do evento, flanelinhas, entre outros. Enquanto nos direcionávamos ao portão de entrada, havia barraquinhas que vendiam tropeiro, sanduíche de pernil, espetinhos, cerveja, refrigerante e água. O cheiro da comida se misturava com o de suor, o de urina e o de estrume de cavalo. Além disso, a iluminação não era muito boa, o que dificultava a visualização do espaço, pois, além disso, havia as árvores do lado de fora do estádio.

Mineirão
O Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como Mineirão. Fonte: Wikipédia

Depois dessa experiência sensorial, uma nova experiência: a corporal. Meu pai dizia: “─ Anda com o cotovelo aberto para aumentar o seu espaço e presta atenção onde está andando”. Isso era questão de sobrevivência naquele local, já que o fluxo contínuo não tinha um sentido de ida e o outro de volta, era tudo misturado – pessoas indo em direção à bilheteria, outras, ao portão de entrada, outras às barraquinhas e aquelas que, simplesmente, paravam repentinamente. Além disso, era necessário se desviar dos que andavam em grupo e das poças de água, estrume de cavalo, copos e outros elementos que estivessem no chão.

Depois disso, já nos degraus do portão de entrada, outra experiência corporal: empurra-empurra para entrar no estádio e ser revistada pela policial militar. Foi tudo muito intenso. Já, dentro do estádio, uma nova descoberta: encontrei uma multidão, composta por 31.246 torcedores[1]. Quando os jogadores do Cruzeiro entraram em campo, fogos de artifícios foram soltos, saudando a equipe. Que emoção! Após os fogos, os torcedores saudavam cada jogador escalado, cantando os seus nomes e, logo depois, entoaram o hino do Clube. Novamente, uma emoção muito forte.

Início de partida, cânticos e coreografia das torcidas organizadas. Grito de gol, comemoração, festa. Ninguém sentava para assistir ao jogo, apenas no intervalo, para descansar as pernas. Fim de jogo, hora de ir embora e o mesmo procedimento: prestar atenção onde se está andando, aumentar a área corporal, ficar atenta ao entorno. Embora tudo isso, a partir desse momento, tive vontade de voltar mais vezes ao Mineirão para assistir aos jogos do Cruzeiro. E assim o fiz. Meu segundo jogo foi contra o Sporting Cristal, do Peru, pela final da Libertadores. O Cruzeiro sagrou-se campeão e a ida ao Mineirão junto com o meu pai transformou-se , durante muito tempo, na minha principal vivência de lazer.

Além da questão pessoal, o Mineirão atravessou a minha formação acadêmica. Quando estudante de graduação do curso de Educação Física da UFMG, tive a oportunidade de me aproximar da formação do jogador de futebol. Foi enriquecedor ir além das arquibancadas e vivenciar uma das nuances do universo futebolístico. Entretanto, isso começou a alterar a minha percepção sobre o futebol e a influenciar no meu torcer. O limite dessa experiência foi quando me vi vaiando um jogador por não jogar tão bem como treinava e, também, em alguns jogos, ter a minha atenção e emoção concentradas nas manifestações da torcida do que na partida em si. Via que deveria mudar o meu caminho de estudo.

Ao final da graduação, ingressei no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), pelo qual tive a oportunidade de cursar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer (2008 – 2010). Meu estudo teve por objetivo traçar o perfil sociológico das mulheres torcedoras do Cruzeiro, presentes no Mineirão, bem como analisar a relação que elas estabeleciam com o clube e com o estádio, entendendo o estádio enquanto um equipamento de lazer para essas mulheres (CAMPOS, 2010). Defendi meu mestrado em 2010, no mesmo ano em que o Mineirão fechou as suas portas para o público, encerando, assim, um ciclo de 45 anos de sua história.

O Mineirão ficou fechado por dois anos, sendo reaberto, em 2012, apresentando a configuração necessária para sediar os jogos da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 e sendo denominado, naquela época, Novo Mineirão. Percebi nesse momento que o Mineirão que conheci havia se modificado, existindo apenas na minha lembrança (e na de muitos torcedores que se viram órfãos desse equipamento de lazer). Nesse mesmo ano, ingressei no Curso de Doutorado em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Nesta etapa, eu e o Mineirão nos aproximamos novamente. Ele se tornou meu objeto de estudo, tendo por objetivo compreende-lo enquanto espaço e equipamento de lazer da cidade de Belo Horizonte, analisando suas formas de uso e apropriação após a reforma, tanto em dia de jogos de futebol, quanto em dias sem jogos (CAMPOS, 2016).

Pela UNICAMP também tive a oportunidade de fazer o doutorado sanduíche na Espanha. Tendo como objetivo conhecer o “moderno” futebol europeu, visitei estádios, assisti às partidas e observei o modo de torcer. Dessa experiência, muitas reflexões e comparações com o futebol brasileiro (SILVA, CAMPOS, 2020).

Hoje, mãe de três filhos pequenos, trabalhando na Universidade Federal de Ouro Preto e morando em Ouro Preto (MG), estou com a minha participação no Mineirão reduzida. Entretanto, esse campo de estudo continua latente.

Ao longo dessa coluna procurarei trazer minhas análises, observações e as experiências de todo esse processo vivido, discutindo as formas de uso e apropriação do Mineirão, às manifestações do torcer, a participação das mulheres e os temas que forem surgindo nesse processo dinâmico que envolve/m o/os futebol/futebóis e a/as cidade/s e que esse pequeno relato possa inspirar outras pessoas.

Notas

[1] http://www.hojeemdia.com.br/esportes/cruzeiro/14-jogos-que-levaram-a-raposa-ao-titulo-dalibertadores-1.2183920

Referências

CRUZ, Vinícius. Especial de centenário do Cruzeiro (parte 2): La Bestia Negra, Libertadores, Sorín y Perfumo. Passe Longo. Anchorfm, Jan.,2021. Podcast. Acesso: 30 ago. 2022

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. Mulheres torcedoras do Cruzeiro Esporte Clube presentes no Mineirão. 2010. 144 f. Dissertação (Mestrado em Lazer) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. As formas de uso e apropriação do estádio Mineirão após a reforma. 2016. 313 f. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.

SILVA, Silvio Ricardo da; CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. A experiência do torcer no (dito) futebol moderno. In: GIGLIO, Sergio; PRONI, Marcelo. O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2020, p.702-720.

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Priscila Augusta Ferreira Campos

Professora do Centro Desportivo da Universidade Federal de Ouro Preto - CEDUFOP; Doutora em Educação Física/UNICAMP, Mestre em Lazer/UFMG; Graduada em Educação Física/UFMG, Membro do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas - GEFuT/UFMG; torcedora do Cruzeiro Esporte Clube e frequentadora de estádios.

Como citar

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. Quando o futebol, o estádio e a cidade viram objetos de estudos: um breve relato. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 14, 2022.
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